Outro aspecto relatado pelas famílias é o desconhecimento da doença pelos profissionais de saúde. Não conhecem a doença, tratamento, nem o protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde para atendimento em caso de crise. Uma das possíveis justificativas é o racismo institucional, a doença não tem a atenção necessária por indicar incidência, prevalência e mortalidade na população negra e pobre (Brasil, 2017; Soares Filho, 2012).
O desconhecimento pelos profissionais de saúde não se deu por falta de estudos ou de literaturas. De acordo com Cavalcanti (2007), estudos realizados pela área médica dos anos de 1960 e 1970 já usavam referências bibliográficas das décadas de 1930 e 1940. “A análise preliminar dos trabalhos médicos encontrados confirmou que a pediatria e a hematologia eram as especialidades médicas que se ocuparam com o estudo da anemia falciforme no Brasil” (Cavalcanti, 2007, p. 9). Neste sentido, a autora aproxima o desconhecimento da doença a questões raciais.
Tendo em vista que a falta de conhecimento da doença pelos profissionais de saúde não está atrelada à falta de produção científica sobre a enfermidade, acredita-se que o desconhecimento da DF está, de fato, associado ao racismo institucional que, segundo López (2013), é um conceito que emerge no Brasil por parte do movimento negro e tem sido legitimado historicamente pelo Estado. O termo não é utilizado pelas(os) interlocutores, mas o racismo institucional aparece em forma de preconceito. Emicida (7 anos) sempre utilizou a rede pública de saúde. Quando estava com 10 meses, teve broncopneumonia e, em busca de socorro para o filho, Bia Ferreira (mãe de 3 crianças com DF) se deparou com a seguinte situação:
Ele estava no hospital daqui [Areia-PB]. Passou o dia todinho e médico nenhum foi olhar ele. Quando foi no outro dia, ele fazia só gemer… aí o pai dele se revoltou quando viu ele. O pai dele quis brigar lá dentro, eu disse: “não, se for brigar aqui é pior”. Mas ele fez um escândalo lá, o médico falou: “não, espera que eu vou olhar ele”. Tinha chegado já o médico. Aí, olhou ele e disse: “mãezinha, você quer ir para Campina Grande?” Se você quiser mandar, a gente vai agora. Aí pronto, a gente foi. Chegou lá, o hospital da criança não aceitou a gente, mandaram para o Trauma, porque parece que não tinha vaga no HU. No outro dia, foi que ele foi transferido para o HU. Aí quando chegou lá no HU, eu contei e quando eu disse o sistema já todinho, aí pronto. Lá mesmo eles fizeram o exame e comprovaram. Aí quando chegou lá era broncopneumonia. Às vezes eu só me preocupo, assim, com o futuro deles, porque, infelizmente, o povo é muito preconceituoso (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).
Nessa fala, a mãe associa a dificuldade de conseguir atendimento ao preconceito atribuído à doença, o que mostra a presença do racismo institucional no sistema de saúde brasileiro, tendo em vista que a anemia falciforme tem sido considerada “doença de preto” pelo índice de prevalência (Silva, 2014). De acordo com Almeida (2019), os conflitos raciais também estão presentes nas instituições, a consequência disso:
[…] é que o racismo pode ter sua forma alterada pela ação ou pela omissão dos poderes institucionais – Estado, escola etc. –, que podem tanto modificar a atuação dos mecanismos discriminatórios, como também estabelecer novos significados para a raça, inclusive atribuindo certas vantagens sociais a membros de grupos raciais historicamente discriminados (Almeida, 2019, p. 28).
O racismo institucional carrega características de ser menos evidente, mais difícil de ser identificado, o que torna o combate mais difícil e a punição aos atos menos condenável (Almeida, 2019). Por esse fator, as famílias não conseguem identificar o racismo institucional e usar esse termo para os problemas enfrentados.
Essa dificuldade, que também está atrelada ao desconhecimento da doença, não acontece apenas na rede pública de saúde, tendo como consequência o agravamento do quadro clínico das crianças e adolescentes em momentos de “crises”. Negra Li (12 anos) nos relatou que utiliza a rede privada de saúde. No entanto, quando buscou o serviço em situação de “crise” de dor, não foi realizado o procedimento adequado, de modo que as dores voltaram ainda mais intensas, fazendo-se necessária a internação. A partir de então, a adolescente descreveu sua vivência com as dores da seguinte maneira:
Quando eu começo a sentir, eu já sei que vem. Quando começa assim, sabe? A me incomodar. Ou, às vezes, é só um jeito assim. Mas aí, na maioria das vezes é quando vem, mas aí demora para vir. Mas quando vem, vem assim, muito forte. Então, dessa vez aí eu estava sentindo assim, aí eu comecei a chorar, aí eu chamei minha mãe e a gente foi para a Unimed. Chegando lá assim, me examinaram e eu chorando, né? Me deram um remédio e eu fui para casa. Cheguei em casa aí eu pensei que eu posso dormir. Eu deitei, começou a vir a dor forte, forte, forte. E aí eu fui para o hospital, aí foi quando a mamãe falou que praticamente não sabia o que fazer, que teve que ligar para minha médica mesmo e tudo mais. E aí foi nesse, por causa que quando veio a dor forte, eu tive que internar na Unimed, que aí eu fiquei lá (Negra Li, 12 anos).
O relato de Negra Li (12 anos) mostra o desconhecimento da doença e, consequentemente, os agravamentos do quadro por falta do tratamento adequado que, nesse caso, o atendimento se deu na rede privada de saúde, mostrando que, quando se trata da DF, o desconhecimento da doença não é exclusividade do cuidado ofertado na rede pública de saúde.
Flora (tia de Criolo de 15 anos) passou pela experiência de ter acompanhado o tratamento de Criolo (15 anos) por 12 anos no SUS e, há pouco mais de 3 anos, está sendo acompanhada na rede privada de saúde. Sobre a diferença percebida, pontua:
O atendimento é o mesmo, só que a facilidade dos exames para você fazer é que muda, porque assim, na questão de exame, eu passava nela e passava no PSF para deixar o papel para agendar aquele exame para não sei quanto tempo, quase um mês depois. Às vezes, exames que precisava com urgência, o pai dele dava um esforçozinho e pagava, mas assim, às vezes, era quase um mês para fazer um exame. Às vezes, para marcar um retorno também, demora muito no PSF, um raio-X, essa questão dos exames é que demorava, e hoje em dia assim não, com o plano é rápido, né? Você pega, autoriza os exames hoje, você vai fazer amanhã. Ou agenda. Então a facilidade nos atendimentos, a rapidez… Para conseguir exame era muito difícil, mas graças a Deus, hoje em dia tem, e facilita muito as coisas (Flora, tia de Criolo de 15 anos).
Outras mães/responsáveis também falaram sobre a situação dos usuários da rede pública de saúde, quando se trata de marcação de exames. Eis alguns desses relatos:
A médica disse que precisa fazer um exame, porque ela viu um negócio no olho dele, aí disse que acha que é da anemia, só que tem que fazer um exame, é… Esqueci o nome agora, só que esse exame eu não faço a mínima ideia de onde faz, disseram que era em Campina Grande. E quanto é também eu não faço a mínima ideia, aí eu já fui lá na secretaria. Me disseram simplesmente que não fazia. Aí, a hematologista fez o seguinte: você pega esse papelzinho e vai lá na secretaria, fale com eles. Se eles disserem que não vai fazer, aí entre com uma ação no Ministério Público, que eles pagam. Aí eu fui lá e me negaram, aí eu vou fazer isso (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).
Eu ia de seis em seis meses [Entrevistadora: ao médico em João Pessoa-PB], quando eu estava no interior, agora aqui [Entrevistadora: em Campina Grande – PB] eu vou de quatro em quatro meses, e levo uma lista de exame. Um monte de exame, aí eu pago caríssimo por esses exames, porque aqui para esperar o SUS é mais difícil. Sai a consulta e não sai os exames. Aí eu pago tudo particular e levo. Eu vou de quatro em quatro meses agora. Eu já paguei até consulta particular aqui, porque quando eu vou, eu perco a vaga. Aí para mim conseguir uma vaga para ela [Soffia] novamente, eu vou ter que fazer uma consulta particular com ela, pegar um encaminhamento, ir no SUS e depois desse SUS, esperar uma vaga com ela. Mas eu consigo, que a próxima consulta com ela é só em julho. Aí eu vou fazer isso para voltar (Preta Rara, mãe de Soffia de 15 anos).
Observa-se que a falta de acesso aos exames pode prejudicar também no acesso à consulta, sabendo que as pessoas com DF precisam ser acompanhadas por diversas especialidades médicas e realizar exames periodicamente. Em alguns casos, até a marcação da consulta pela rede pública de saúde se torna um processo difícil:
Até para fazer uma consulta, muitas das vezes eu vou a Campina Grande, porque eu espero aqui, oh… Eu passei um ano, um ano certinho para marcar para ir para hematologista. Com um ano certinho. Só não tenho o papel para comprovar, porque foi pedido lá. Inclusive esse daqui [Djonga, 9 anos] tá com uma inflamação no olho. Eu ia levar ele ontem, só que não teve oftalmologista (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).
A dificuldade de acesso ao sistema de saúde público no momento de crise também é notada pelas crianças. Em uma conversa sobre uma crise de dor, Emicida lembrou “quando foi isso [se referindo ao momento da crise], mãe me avisou que a ambulância estava quebrada, aí a gente teve que ir no carro [alugado pela família]” (Emicida, 7 anos). A criança lembra que, em um momento de enfrentamento das chamadas crises, precisou de transporte para buscar atendimento médico em outra cidade – a família é de Areia-PB, e precisava ir a Campina Grande-PB – e não conseguiu pela prefeitura, pois a ambulância estava quebrada. Assim, para que conseguisse ser atendido, a família precisou alugar um carro alternativo.
Além de enfrentar os problemas voltados aos sistemas de saúde que envolve o racismo institucional, outros tipos de preconceito são pontuados pelas crianças e adolescentes, principalmente no ambiente escolar, o que pode ser denominado de bullying. A aparência física é um dos aspectos que se tornam significativos para Criolo (15 anos). Segundo ele, uma diferenciação percebida pelos colegas são os olhos amarelados. Sobre isso, Flora (tia de Criolo de 15 anos) afirmou: “Criolo (15 anos) tem muita hemólise, a crise, as hemácias dele, a crise silenciosa se mostra pelas hemólises que destrói as hemácias, aí fica essa pigmentação amarelada”. E isso já foi motivo de bullying na infância, quando cursava o ensino fundamental:
Aí na época que ele estudava aqui [no bairro], em outra escola aqui, ensino fundamental, aí os meninos, às vezes, praticavam bullying com ele por causa do olho, porque, às vezes, fica muito [amarelo], aí ele fica: “olha, titia, os meninos ficam me chamando de olho amarelo”. Mas ele aparentemente, eu não sei por dentro, se ele quer mostrar, aí eu dizia: “Criolo, como tu se sente quando eles te chamam e falam isso contigo?” Ele disse assim: “eu não gosto, mas eu também não me importo muito, porque eu não tenho culpa que meu olho fica amarelo, é da doença que eu tenho” (Flora, tia de Criolo de 15 anos).
A estatura menor esperada para a idade também é uma das consequências da doença. É sobre essa experiência com sua própria estatura que Flora (Tia de Criolo de 15 anos) reflete:
Os meninos tinham muito um negocinho, porque ele era pequeno, né? Para idade que tem… Aí, na sala dele, tinha um menino bem grande. Agora mesmo na formatura que teve do nono ano, o menino enorme e ele pequeno, aí eu disse: o exemplo de pequeno e grande homem… só que na escola o povo lá na escola chamava ele de pequeno homem, pequeno e grande homem, e ele gostava, porque ele é muito amostrado, aí, às vezes, ele via que tinha um carinhozinho, que quando chamavam ele de pequeno homem, aí, às vezes, ele se amostrava com isso, mas, ele dizia que não se importava (Flora, tia de Criolo de 15 anos).
Sobre essas vivências no ensino fundamental II, Criolo (15 anos) não emitiu comentários, mas falou sobre sua experiência durante o ensino médio12: “O povo diz que eu sou um guerreiro…” [Entrevistadora: por que?] “Sei não, por causa da minha doença mesmo, porque eu bebo muito líquido, [mas] o povo diz que não consegue, não”.
Os olhos amarelados causados pela icterícia é algo que também se destaca no ambiente escolar por ser percebido pelos colegas, e isso aparece também na fala de Emicida (7 anos): “É… Eles me falam que fica amarelo. Eu fui ver no espelho e meu olho não tá amarelo”.