Convocatória Infâncias cuidadoras em contextos latinoamericanos.

O fenômeno das crianças que cuidam de outras pessoas e/ou do ambiente nos contextos familiares e comunitários em que vivem tem mobilizado cada vez mais investigações e debates em torno dos papéis sociais que as crianças assumem em seus cotidianos. Por visões hegemônicas da infância, as crianças são aquelas que se encontram na posição exclusiva de receber o cuidado de adultos e não de exercê-lo. Entretanto, o cuidado praticado pelas crianças é significativo e muito frequente em diversas localidades da América Latina e territórios do Sul do Globo, apresentando-se como um fenômeno relacional complexo, produzido sócio-culturalmente e muitas vezes referido a condições de desigualdades sociais em que vivem determinados grupos sociais (ZELIZER, 2009; COLONNA, 2015; DAY, 2017; HUNLETH, 2017;HERNÁNDEZ, 2019; LARA et CASTRO, 2021; LEAVY et SZULC, 2021; LEAVY et SHABEL, 2022).

Na atualidade, a temática mais ampla do cuidado é discutida por campos diversos de atuação e saber, como aqueles que se debruçam sobre questões do trabalho, economia política, gênero, saúde e direitos (PAUTASSI, 2016). Segundo Sorj (2021), essa prática, que coloca em evidência o emaranhado de redes de pessoas envolvidas com o atendimento das necessidades de outras pessoas, e que revela que somos vulneráveis e dependentes uns dos outros, foi, durante muitos anos, negligenciada. Por compartilhar, em larga escala, da matriz da modernidade, a teoria social negligenciou a análise crítica do que sustentaria a narrativa do cuidado, como o trabalho reprodutivo de mulheres, realizado na esfera privada (SORJ, 2021).

Na América Latina, conforme menciona Batthyány (2020), os debates atuais colocam uma forte ênfase do cuidado como um dos componentes centrais de uma economia alternativa e feminista, mas também como um elemento considerado “chave” do bem-estar social. Embora o tema do cuidado seja amplo e esteja em contínua construção teórica, Joan Tronto e Berenice Fisher definem essa atividade como: “Uma atividade da espécie que inclui tudo o que fazemos para manter, continuar e reparar nosso ‘mundo’ para que possamos viver nele o melhor possível. Esse mundo inclui nossos corpos, nós mesmos e nosso ambiente, todos os que procuramos entrelaçar em uma complexa teia de sustentação da vida (FISHER et TRONTO, 1990 apud TRONTO, 1998, p. 15).

No campo da infância, apesar de o cuidado praticado por crianças ser largamente conhecido em determinados lugares, e considerado um contributo essencial para a subsistência de muitas famílias e comunidades, as experiências das crianças e os seus pontos de vista acerca desse fenômeno têm sido estudadas em maior profundidade apenas recentemente. Weisner e Gallimore (1977), a partir de evidências transculturais, são um dos primeiros a indicar que o cuidado não parental é norma ou uma forma significativa de cuidado na maioria das sociedades, mas que, durante a maior parte do século XX, a atenção das pesquisas se destinou quase exclusivamente sobre os cuidados maternos, marginalizando todos os cuidadores diferentes das mães, incluindo uma variedade de crianças, especialmente irmãos. O fenômeno do cuidado praticado por crianças adquire formas e relacionalidades diversas, mas pode ser observado, de forma contínua ou pontual, em crianças que assumem a supervisão ou orientação de outras crianças em casa e/ou nas ruas, ajudam parentes doentes ou com deficiência, desempenham tarefas domésticas e comunitárias que auxiliam outras pessoas e o ambiente/natureza, participam das redes de subsistência de suas famílias e/ou comunidade, contribuem para a manutenção do território em que vivem, dentre outros.

Com o intuito de contribuir para o debate deste tema fértil e em construção no campo da infância, esta Seção Temática procura produzir um espaço onde artigos possam fornecer análises e discussões aprofundadas das práticas de cuidado das crianças de diversas perspectivas disciplinares, favorecendo a troca entre pesquisadores/as que se interessam pelas questões do cuidado e da infância. Além disso, espera-se com esta Convocatória que esse tema deixe de ser negligenciado em pesquisas sobre a infância, e também ressoe nas políticas públicas destinadas à vida das crianças e suas famílias.

Convidamos para submissão de propostas de artigos que incluam os seguintes subtemas:

1) Discussão teórico-conceitual sobre crianças cuidadoras e/ou infâncias cuidadoras;
2) Crianças/infâncias cuidadoras em suas redes familiares;
3) Crianças/infâncias cuidadoras na relação com o território em que vivem (rural, indígena e/ou urbano);
4) Crianças cuidadoras em contextos de institucionalização;
5) Desigualdades de gênero, classe e raça em articulação com as crianças/infâncias cuidadoras;
6) Organização social e cultural do cuidado praticado por crianças;
7) Crianças/infâncias cuidadoras, moralidade e diversidade cultural;
8) Crianças/infâncias cuidadoras, relacionalidade e solidariedade;
9) Crianças/infâncias cuidadoras e escolarização;
10) Crianças/infâncias cuidadoras, trabalho infantil e políticas públicas;
11) Crianças/infâncias cuidadoras, direitos e deveres das crianças.
12) Crianças/infâncias cuidadoras e pandemia;

Editoras:
Juliana Siqueira de Lara (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Pía Leavy (CONICET- Universidad de Buenos Aires)
Lucia Rabello de Castro (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Sobre a revista DESIDADES

DESIDADES é uma revista científica na área da infância, adolescência e juventude latino americanas, com periodicidade quadrimestral. Publica textos em português ou espanhol. É uma publicação do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a Infância e Adolescência Contemporâneas, NIPIAC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Está comprometida em divulgar a pesquisa científica para além dos muros da Universidade, estabelecendo um diálogo com pesquisadores, profissionais, estudantes e demais interessados na área de infância e juventude.

Processo de submissão

Todos os trabalhos deverão ser submetidos pelo sistema OJS da revista DESIDADES, sob a designação Seção Temática, e estar inteiramente ajustados ao modelo informado nas diretrizes para autores.

Término da submissão: 02/10/2022
Publicação: Abril de 2023

Link das diretrizes para autores: https://revistas.ufrj.br/index.php/desidades
E-mail de contato: submissaodesidades@gmail.com

Referências Bibliográficas

BATTHYANY, K. Miradas latinoamericanas al cuidado. In: ______ (Org.) Miradas latinoamericanas a los cuidados. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; México DF: Siglo XXI, 2020, p.11-52.

COLONNA, E. Tenho de fazer tudo para o meu irmão: crianças que cuidam de crianças. In: Arroyo, M. G., Viella, M. D. A. L., & da Silva, M. R. Trabalho infância: Exercícios Tensos de ser Criança Haverá Espaço na Agenda Pedagógica?. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, p. 85-129, 2015.

DAY, C. Children and young people as providers of care: perceptions of caregivers and young caregiving in Zambia. In: Horton, J. and Pyer, M. Children, Young People and Care, edited by John Horton and Michelle Pyer, p. 144-158, 2017.

HERNÁNDEZ, C. Experiencias de niñez en la pobreza. Una cartografía de cuidados. Runa, v. 40, n. 2, p. 93-111, 2019.

HUNLETH, J. Children as caregivers: the global fight against tuberculosis and HIV in Zambia. New Brunswick, New Jersey : Rutgers University Press, 2017.

LARA, Juliana Siqueira de; CASTRO, Lucia Rabello de. Children’s responsibilities in a Brazilian community: Citizenship as care practices. Global Studies of Childhood, p. 1-11, 2021.

LEAVY, P.; SZULC, A. Cuidando a los niños y niñas, cuidando el territorio. Una mirada etnográfica sobre comunidades rurales mapuche y ava-guaraní en Argentina. INDIANA, v. 38, n. 1, p. 79-101, 2021.

LEAVY, P; SHABEL, P. N. Child care and participation in the Global South: an anthropological study from squatter houses in Buenos Aires. Third World Thematics: A TWQ Journal, p. 1-16, 2022.

PAUTASSI, L. Del “boom” del cuidado al ejercicio de derechos. Sur – Revista Internacional de Derechos Humanos. v.13 n.24, p. 35-42, 2016.

SORJ, B. Estudos sobre o cuidado na sociologia: a Contribuição de Nadya Araujo Guimarães e Helena Hirata. Sociologia & Antropologia, v. 11, n. 3, 2021.

TRONTO, J.C. An ethic of care. Generations: Journal of the American Society on Aging, v. 22, n. 3, p. 15-20, 1998.

WEISNER, T. S. et GALLIMORE, R.G. My brother’s keeper: Child and sibling caretaking [and comments and reply]. Current anthropology, v. 18, n. 2, p. 169-190, 1977.

ZELIZER, V. La economía en el hogar. En: La negociación de la intimidad, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2009, p. 231-307.