Leo Lopes

A judicialização da infância e seus impactos na vida das crianças e suas famílias.

Equipe Editorial: Pode dar exemplos que estão relacionados a este processo no Brasil?

Flavia Cristina Silveira Lemos: Podemos citar o Conselho Tutelar, conforme especificado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um órgão administrativo que pode funcionar como receptor de notificações de ameaças e violações dos direitos das crianças e adolescentes e, então, encaminhá-las para o Ministério Público. Apesar de ampliar a proteção em certos aspectos, o Conselho Tutelar aumenta a regulação da vida das crianças, dos adolescentes e de seus familiares, pois pode receber as notificações até mesmo por telefone e anônimas. Antes da criação do Conselho Tutelar, abrir um processo era um procedimento moroso e só poderia ocorrer após a violação acontecer e não antecipadamente, por meio de uma suspeita, como é o caso agora. Instala-se um paradoxo: amplia-se o cuidado por meio do paradigma da proteção integral, porém, aumenta-se a normalização e a encomenda ao Poder Judiciário, após serem realizadas as denúncias ao Conselho Tutelar. O aumento da criminalização das drogas e o acirramento da política criminal punitiva para aqueles que vendem drogas consideradas ilegais implicaram na intensificação da privação da liberdade de adolescentes legitimada pelas medidas socioeducativas de internação.

Equipe Editorial: Como podemos perceber os efeitos desse fenômeno na vida cotidiana, por exemplo, através de leis como a da alienação parental ou do projeto de lei que restringe a comercialização de bebidas e comidas não saudáveis em escolas públicas?

Flavia Cristina Silveira Lemos: O filósofo Michel Foucault, em muitos de seus escritos já nos alertou para o fato de que, quanto mais buscamos formular leis em nome da segurança da infância, mais penas, crimes e intervenção criamos do Poder Judiciário na vida das famílias, dos adultos, das crianças e dos adolescentes. Assim, na articulação entre normas e leis, que são operacionalizadas em estabelecimentos, organizações, equipamentos, grupos, profissões e espaços arquitetônicos ditos de proteção e de segurança, mais modalidades de julgamentos e de maneiras de punir são forjadas com vistas a aumentar a regulação e a regulamentação do que é objetivado como violência, violação e problema de governo da vida da infância. Em nome da proteção, paradoxalmente, amplia-se a judicialização com legalismos e inflação jurídica referentes ao cotidiano nas escolas, nas famílias, nas tensões sociais, nos espaços de convivência social, nas ruas e no comércio. Esquadrinhar e controlar cada detalhe se tornou um projeto de segurança, em que custos e benefícios são calculados o tempo todo, atrelados à noção de Estado de Direito e à racionalidade de ordem e lei como estilo de existência no mundo contemporâneo.

Equipe Editorial: Qual o impacto que a judicialização da infância produz na forma como nos relacionamos, como adultos, com as crianças?

Flavia Cristina Silveira Lemos: Toda vez que criamos leis e normas, alteramos as práticas que fazem operar as relações sociais e familiares entre adultos e crianças e entre diferentes grupos e estabelecimentos de cuidados. Assim, os saberes e os poderes andam juntos com os processos de subjetivação, ou seja, as regras e as leis criam assujeitamentos que normatizam e normalizam cada vez mais em nome do aumento da segurança frente ao que passa a ser designado como risco e perigo. A vulnerabilidade de crianças e adolescentes se torna objetivada a partir desse campo relacional de forças heterogêneas. Um exemplo são as normas forjadas pelos saberes médicos e psicológicos que embasam a criação de leis de proteção e cuidado com crianças e adolescentes. As normas são transformadas em leis e poderão trazer todo um campo de punições se os pais não as cumprirem. Ou seja, condutas que antes eram operadas pela mediação da cultura passam para a instância legislativa e judiciária, tais como as que afirmam que crianças e adolescentes estarão em risco se os pais e responsáveis não cumprirem as normas de saúde e de educação em saúde produzidas pelos saberes médico-psicológicos. Assim, práticas de poder poderão ser materializadas na punição disciplinar da família, como um encaminhamento à psicoterapia e a programas sociais. Também práticas de poder jurídicas poderão ser efetivadas, como a perda de poder familiar e envio de filhos para abrigos, entre outras.

Equipe Editorial: Na sua opinião, o processo de judicialização afeta diferentemente as diversas infâncias, ou seja, a vida de crianças de contextos socioeconômicos e culturais diferentes?

Flavia Cristina Silveira Lemos: Sim. Algumas infâncias são mais punidas do que outras, algumas são menos protegidas do que outras, ou seja, a balança da justiça tem cor, lugar, grupo, escolaridade, etnia, raça, gênero e configuração familiar. Isto passou a ser chamado de seletividade penal pela criminologia crítica. Em uma sociedade, como a nossa, marcada pelo racismo, pelas desigualdades socioeconômicas, pelo acesso desigual às políticas públicas, pela maneira de organizar as relações e decidir sobre o orçamento, a balança pode pender para um lado ou para outro conforme os interesses em jogo e os grupos que estão disputando os mesmos. É uma sociedade que seleciona quem deve responder e quem não deve, sendo que a retribuição penal é dirigida para a infância e família advindas dos segmentos mais pobres, negros, com baixa escolaridade, moradora de bairros mais distantes, sem acesso às redes de proteção ou com acesso precário às mesmas. Um exemplo dessa prática é a prisão em massa de pessoas negras, pobres e com baixa escolaridade. Outro é a notificação massiva de famílias pobres ao Conselho Tutelar, que funciona como uma polícia desse grupo social. Ora, se acontece violência e violação de direitos independentemente de classe social e raça/etnia, por que somente famílias pobres são reguladas pelo Conselho Tutelar? Se brancos e negros, ricos e pobres cometem crimes, por que, em geral, são os negros pobres que são presos? Aí está a seletividade penal.

Flavia Cristina Silveira Lemos Flavia Cristina Silveira Lopes é Psicóloga graduada pela UNESP, Mestre em Psicologia Social e Doutora em História pela UNESP. Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Pará/UFPA.
Equipe Editorial .