I Hate Flash

Jovens nas ruas: as manifestações no Chile, México e Brasil

Entrevista de Claudia Mayorga com Rogelio Marcial e Oscar Aguilera

Na última década temos presenciado, com periodicidade e constância, a ocupação das ruas e de espaços públicos por jovens estudantes do Chile, México e Brasil. Seja por questões ligadas à estatização do ensino universitário e à resistência à privatização da educação pública de nível médio e fundamental (Chile), seja pela bandeira da democratização das instituições e por melhores condições de educação (México), seja por uma variedade de pautas relacionadas a direitos – transporte, liberdade de expressão, moradia popular – temos visto as multidões de jovens e estudantes que tomam ruas, ocupam prédios públicos e universidades e reivindicam direitos.
No Brasil, mais recentemente, presenciamos as manifestações ocorridas no último mês de junho, durante a realização da Copa das Confederações da Fifa. As ruas foram tomadas por uma efervescência de manifestações populares, com uma participação expressiva e majoritária de jovens. Inicialmente, as reivindicações aconteceram em torno das exigências pelo passe livre, mas ao longo dos dias muitas outras causas foram sendo especificadas. Com jargões como “queremos saúde e educação padrão Fifa” ou ainda “um professor vale mais que o Neymar”, que se misturaram entre as demandas pelo fim da corrupção, pelos direitos humanos, por uma reforma política imediata, milhares de jovens brasileiros interpelaram e buscaram interditar aquele que foi forjado como o grande evento da identidade nacional brasileira, a realização de uma Copa de futebol.
Embora grande parte da mídia oficial tenha se ocupado em diferenciar manifestantes “do bem” dos manifestantes “vândalos”, os acontecimentos colocaram mais uma vez em pauta questões importantes: a relação da juventude com a política, suas formas empíricas de atuação, sua relação com possíveis projetos de sociedade que estariam em formulação e em disputa, e a capacidade e legitimidade da juventude para participar da construção desses projetos. Na pauta, também, interrogações sobre a relação da juventude com a educação, a família, com instituições centrais da sociedade.
Ao mesmo tempo, temos acompanhado em outras partes do mundo, a ocupação intensa das ruas com bandeiras e reivindicações por vezes bastante semelhantes ao que presenciamos no Brasil. Movimentos como o Occupy Wall Street, 15 M, Primavera Árabe são alguns exemplos. Em países da América Latina, a efervescência de manifestações juvenis nas ruas e em ocupações de edifícios públicos também tem acontecido, com forte repressão policial e repercussão midiática.
Para conversarmos sobre as experiências contemporâneas de ativismo juvenil no México, Chile e Brasil, convidamos dois pesquisadores que têm se dedicado aos estudos sobre juventude: Oscar Aguilera Ruiz e Rogelio Marcial.
Acadêmico da Universidad Católica del Maule (Chile) e doutor em Antropologia pela Universidad Autónoma de Barcelona, Oscar Aguilera trabalha há seis anos, aproximadamente, em pesquisa sobre movimentos juvenis no Chile. É membro do grupo de trabalho do Clacso (Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales) Juventud y Tácticas Políticas en América Latina. Atualmente, através de uma bolsa acadêmica do Clacso, vem trabalhando para concluir uma pesquisa sobre o movimento estudantil no Chile entre 2006 e 2011. Desenvolve também uma pesquisa, apoiada pelo Fondo Nacional de Ciencia y Tecnología do Chile, sobre o modo como se constrói a ideia de juventude no século XX.
Nosso segundo convidado, Rogelio Marcial, é professor investigador do Departamento de Estudos de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidad de Guadalajara no México, à disposição no Colegio de Jalisco. Doutor em Ciências Sociais, há 20 anos trabalha temas relacionados com as expressões da juventude e há quatro anos com temas sobre as expressões culturais da diversidade sexual. É membro do Sistema Nacional de Pesquisadores, Consejo Asesor del Sistema Estatal de Juventud de Jalisco e Consejo Estatal para la Cultura y las Artes de Jalisco. Pertence ao Consejo Iberoamericano de Investigadores en Juventud como representante do México. Entre suas publicações, destacamos Desde la esquina se domina, Jóvenes y presencia colectiva, La banda rifa y Andamos como andamos porque somos como somos: culturas juveniles en Guadalajara.
Aproveito também para apresentar-me como entrevistadora. Sou doutora em Psicologia Social pela Universidad Complutense de Madrid, professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Coordeno o Centro de Pesquisa Conexões de Saberes e, nos últimos anos, dediquei parte dos meus trabalhos ao estudo sobre participação política juvenil, com atenção especial para a juventude negra e da periferia. Recentemente, participei de uma pesquisa que foi desenvolvida com a participação de pesquisadores de cinco estados do Brasil e culminou na publicação do livro Juventude e a experiência da política no contemporâneo (2012).
A conversa teve como tema central as manifestações juvenis com reflexões sobre quem são esses jovens, quais são suas bandeiras, como se articulam e qual a sua relação com as instituições políticas. Falamos também sobre as noções de juventude e política que podem estar emergindo nesse contexto efervescente e sobre qual tem sido o papel do Estado, da mídia e dos próprios jovens nessa redefinição. Conversamos ainda sobre o papel e importância das ciências sociais e humanas nesse contexto.

Claudia Mayorga: Nos últimos anos, os jovens da América Latina foram às ruas e espaços públicos com diversos protestos. Com reivindicações pela democratização e a não privatização da educação, a expansão do transporte público, a liberdade de expressão, a rejeição da corrupção na política e outras causas, a juventude está na rua. Como vocês viram as manifestações dos jovens no Chile e no México?

Oscar Aguilera: O primeiro ponto que poderia destacar é que a pergunta sobre o vínculo entre juventude e política havia praticamente desaparecido da pauta de pesquisa e reflexão nas ciências sociais e humanas. Poderíamos sustentar uma breve tese de que, de 1995 a 2005, na América Latina, se produz um tipo de invisibilidade de práticas políticas juvenis. Esta invisibilidade, obviamente ocorre em um contexto de auge do neoliberalismo na América Latina e, em paralelo, acompanha um relato sobre a sociedade que vai despolitizando-a progressivamente e isso atinge basicamente os jovens e o mundo infantil. Parece que os jovens, nesse período, não estavam preocupados com a sociedade e isso impactou a própria forma de compreender a juventude daqueles que estavam realizando estudos sobre ela. De fato, chegou-se a sustentar que este momento era como 68, mas ao contrário – enquanto 1968 marca o auge do compromisso político, de transformação social pela juventude, o período entre meados de 1990 e meados de 2000 constituiria sua outra face: o mínimo compromisso político com a sociedade e com a transformação das estruturas políticas e econômicas. Acho isso muito interessante, porque no Chile, assim como em outros países da América Latina, significa uma compreensão do mundo juvenil distanciado, apático com a política. Esse é o contexto em que eu, a partir do meu trabalho, tento começar a responder. O que eu observava em meu dia a dia de trabalho era que os jovens, homens e mulheres, estavam de alguma maneira constituindo, reconstituindo, um tecido associativo com forte territorialidade, ensaiando formas de gestão e organização que não reproduzissem modelos verticais ou adultocêntricos em um processo que é lento e vai se desenvolvendo em diferentes âmbitos. Um primeiro âmbito é o dos próprios movimentos estudantis. No Chile começa a se desenvolver um tipo de ciclo de manifestação social que chamo de movilización callejera (mobilização de rua), a partir do ano 2000, mostrando, basicamente, um aumento da massa, ou seja, muitos jovens protestando nas ruas. É, na verdade, um episódio, com duração limitada, no início do ano escolar, basicamente março-abril, e muito instrumental, ou seja, com reivindicações e petições muito específicas, nada estruturais. Esse processo se inicia em 2000 e vai crescendo como um repertório específico de protestos, impactando outros movimentos, nos quais os jovens também começam a participar. São exemplos o movimiento de pobladores (movimento popular pela moradia), que também desenvolve novas formas de mobilização, e, particularmente, todo um sindicalismo jovem concentrado em torno dos subcontratados das empresas mineiras de cobre. Dessa maneira, este ator jovem que vinha ensaiando formas de organizações, de mobilizações etc, começa a se expressar simultaneamente entre diferentes atores sociais: o mundo do trabalho, o mundo sindical, o mundo estudantil e o mundo dos sem-teto. O que acabou ganhando maior visibilidade e capturou o sentido global de tudo isso foi o movimento estudantil, que é onde se expressam como jovens esses sujeitos.
Rogelio Marcial: Aqui no México existem diversas manifestações juvenis centradas, em sua maioria, nas questões de democracia e inclusão. No entanto, há outros temas com os quais os jovens mexicanos também se preocupam, como a falta de oportunidades no sistema de educação pública, média e superior, as tentativas de privatizar esse sistema, a corrupção associada à presença de empresas multinacionais que não cuidam do ambiente e não outorgam direitos aos trabalhadores (através do outsourcing), a mobilidade urbana, a falta de espaço para as manifestações dos jovens, entre outros. As mobilizações são muito espontâneas, com críticas fortes ao sistema que costumam ser reprimidas pelo Estado mexicano.

Claudia Mayorga: As formas empíricas através das quais os jovens fazem política no México, Chile e Brasil têm elementos em comum… [Utilizo aqui a expressão de Oscar Aguillera em seu Tan jóvenes, tan viejos: los movimientos juveniles en el Chile de hoy (2003)]  Há, na sua opinião, alguma relação das manifestações no México, Chile ou Brasil com os movimentos como Occupy Wall Street, 15M ou a Primavera árabe? Vocês identificam aspectos específicos da juventude latino-americana nesse processo?

Rogelio Marcial: Eu penso que a conexão com esses fenômenos está relacionada com a imposição autoritária dos modelos neoliberais de desenvolvimento econômico que precisam, para funcionar, de medidas sociais e políticas impopulares por parte dos governos locais. Ainda que essas medidas possam se referir a temas muito diferentes, segundo os contextos históricos, sociais e culturais de cada nação, a indignação da população civil se manifesta nas praças e ruas frente à obstinação de sistemas políticos estagnados e antidemocráticos, nos quais os políticos, os sindicatos oficiais, a Igreja católica (no México) e outras instituições não aceitam novas propostas, canais reais de debate e tomadas de decisões que afetam a todos e todas, como também a responsabilidade e a punição dos que, desde estas instituições, atuam afetando o bem-estar social. Vejo que as decisões centrais são tomadas nos lobbies da política formal, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelos órgãos mundiais (OCDE, FMI, BID etc.) a fim de permitir que as nações sejam avaliadas positivamente e mantenham uma relação perversa de financiamento/endividamento que, finalmente, cobrará as faturas à população civil mediante a privatização de serviços, a falta de representação de todas as forças sociais na política formal, a alienação dos bens públicos, a retirada do Estado de suas obrigações inerentes a favor do bem-estar social, o desenvolvimento integral da população e o sistema de segurança contra o crime organizado, o investimento na saúde pública, educação, arte e cultura, geração de empregos dignos, com prestações de segurança social e, inclusive, delegação de decisões que afetam diretamente a soberania de cada nação. É cada vez mais evidente que as instituições formais do governo que tomam as decisões políticas (Congressos, Câmaras, Comissões) são meros “teatros” onde “encenam” processos democráticos e representativos de todas as forças sociais para legalizar decisões tomadas de antemão por um número reduzido de personagens políticos com interesses particulares, ligados, muitas vezes, aos interesses provenientes do outro lado da fronteira nacional, mas que são impostos como da população como um todo. Dentro de todo esse contexto, os jovens latino-americanos atuam dentro dos limites do possível sob pena de serem violentamente reprimidos se os transgridem; o que acontece cada vez com mais frequência. A história dos movimentos juvenis em nosso subcontinente, pelo menos daqueles em que a presença de jovens é significativa (trabalhadores, estudantes, guerrilheiros, grupos culturais indígenas, alternativos, dissidência sexual etc.), contêm uma herança radical política que em ocasiões é retomada, reelaborada e colocada em prática por alguns grupos e movimentos sociais.

Oscar Aguilera Ruiz Acadêmico da Universidad Católica del Maule (Chile)
Rogelio Marcial Professor e pesquisador do Departamento de Estudos de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidad de Guadalajara (México).
Claudia Mayorga Professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.