Entrevista de Fabiana de Amorim Marcello com Camilo Bácares Jara
Fabiana de Amorim Marcello – Boa tarde, Camilo. Quero te pedir, por gentileza, para que tu fales um pouco da tua formação, da tua trajetória em cinema, em cinema e educação, em cinema e infância. E também, é claro, sobre o teu livro La infancia en el cine colombiano: miradas, presencias y representaciones1. Quero que tu fales um pouco sobre como foi o trabalho de elaboração do teu livro.
Camilo Bácares Jara – Eu fui parar no cinema por acaso, em Lima, em 2012, quando eu estava estudando com o Alejandro Cussiánovich, pois nessa época eu morava a duas ruas de uma cinemateca. Às vezes, eu até faltava o trabalho para ver filmes, e foi vendo filmes que eu comecei a dar conta de que neles apareciam muitas crianças. Sempre apareciam crianças no cinema. Eu nunca tinha percebido isso. Aí surgiu então uma pergunta sociológica que era: por que tem crianças no cinema? É uma pergunta muito simples, muito básica, mas que é muito complexa de se responder. E também: o que acontece quando se encontram a categoria cinema e a categoria infância? Acontecem mil coisas, que em geral não foram escritas, não foram trabalhadas, e isso me chamava muito a atenção. Principalmente em relação ao olhar. Por isso, no livro, o capítulo que eu mais gosto é o primeiro, porque quando se dá o encontro entre o cinema e a infância, surgem de imediato discursos de controle desse olhar. Para mim, isso era fascinante: encontrar uma quantidade de cientificidades, de correntes científicas que acreditavam que ver cinema era perigoso para a criança porque podia deixar ela cega, segundo o discurso médico, podia provocar alterações, gerar crises nervosas etc.; ou segundo o discurso teológico, com as encíclicas papais, se acreditava que o cinema poderia converter a criança em um sujeito sem moralidade. Além disso, era muito interessante também descobrir o que acontecia sociologicamente quando as crianças iam, em massa, sozinhas ao cinema (pensemos nos anos 1910, 1920): nesse momento, se rompia a categoria moderna que temos sobre infância.
Essa categoria moderna sobre a infância se baseia em duas coisas, fundamentalmente: espaços diferenciados, onde só existem crianças, e, por outro lado, uma relação tutelar com o adulto. Então, quando, por exemplo, as crianças que são trabalhadoras, que têm o seu próprio salário, o seu próprio dinheiro, começam a ir às salas de cinema, se dá a ruptura. Porque a criança ia sozinha ao cinema. Ela não precisava do adulto para ir e, ao assistir ao cinema, terminava coabitando com os adultos. E isso era bastante interessante, por isso se dava a discussão de “o cinema é perigoso, é amoral, a criança não deve entrar” que produziam e continuam produzindo diferentes cientificidades. E eu imagino que, no Brasil, elas também devem ser vistas através da regulamentação das idades, isto é, pela classificação do olhar para entrar no cinema. Isto é, esses discursos que dizem que existem filmes aptos para pessoas a partir dos oito anos de idade, a partir dos doze, filmes a partir daí para o público todo etc. Isso é uma coisa muito, muito relativa e, além disso, fundada num discurso meramente desenvolvimentista.
Mas voltando à questão do cinema, eu acho que isto é uma coisa infinita, principalmente por algo que é maravilhoso: todos os movimentos cinematográficos se fundam na infância. Isso é algo que em geral foi pouco investigado. Isto é, não pode haver neorrealismo sem crianças. Seria totalmente impossível pensar um filme como Ladrões de bicicleta (1948) sem crianças, Vítimas da tormenta (1946) sem crianças, Paisà (1946) sem crianças. Seria impossível pensar em Truffaut e a Nouvelle Vague sem essa criança maravilhosa que é Antoine em Os incompreendidos (1959). E isso acontece com um monte de correntes cinematográficas.
Fabiana de Amorim Marcello – Tu extrais do Jorge Larrosa uma discussão sobre a gestualidade da infância no cinema. E aí eu pergunto: como que tu percebes a diferença entre uma gestualidade da infância que lhe seria singular, se os filmes são feitos e pensados por adultos? As crianças ali são dirigidas pelos adultos. Que gestualidade é essa? Como a gente pensa em uma singularidade e em uma gestualidade da infância, quando ela é produzida imageticamente por adultos?
Camilo Bácares Jara – Essa é uma pergunta muito complexa. Porque acontece a mesma coisa no campo das Ciências Sociais. Nós estamos pesquisando a infância, mas, no fim das contas, nós mesmos é que definimos as conclusões sobre a infância. Isso é um debate tão difícil que, se levarmos, por exemplo, para o cenário editorial, eu te pergunto: quantas revistas com artigos acadêmicos você conhece nas quais os autores são crianças? As próprias revistas acadêmicas não permitem isso, apesar de a criança ser a fonte para nos aproximarmos de um determinado fenômeno ou chegar a uma conclusão x ou y sobre algo relativo à infância. No campo do cinema é igual, e é dificílimo, porque uma das coisas mais importantes que se produzem nesse encontro é que, no cinema, também se reproduz o adultocentrismo. E é algo que os próprios criadores não pensam ou não veem. Isto é, quando eu falo de adultocentrismo, me refiro à centralidade do adulto no relato, na configuração, na execução e na direção desse relato.
Apesar de existir um poder imperante do adulto, ocorre algo que por sua vez é muito interessante: me refiro ao conflito geracional entre crianças e adultos nesses processos cinematográficos. É como quando o diretor diz “a criança tem que me obedecer, porque eu estou dizendo que ela tem que fazer aquilo, tem que ter esta gestualidade”, e a criança produz outra coisa. Aí tem uma forma de resistência nesse processo cinematográfico. O que eu quero dizer é que, apesar de ser um cinema adultocêntrico, isto não quer dizer que o cinema não tenha incorporado a criança na sua narração de uma forma verídica, escutando a criança, falando com a criança, enfim, levando em conta a criança. Um exemplo disso é La vendedora de rosas (1998), de Víctor Gaviria. Não estou dizendo que o filme não seja dele, mas de certa forma é um filme das crianças que estão nessa narração, na medida em que elas é que elaboram todos os diálogos, contando histórias, contando anedotas, e o que ele faz é organizar isso, e construir uma espécie de sequência, uma espécie de história. Em que medida o Gaviria se impõe? Sim, possivelmente através da câmera. Mas em que medida as crianças se impõem? Totalmente. Através da execução do relato, da veracidade do relato. É muito importante levar isso em conta. Isso acontece também quando existem coisas que não são de adultos nem de crianças, mas que estão numa fronteira. Eu penso, por exemplo, no filme A maçã (1998), de Samira Makhmalbaf, feito quando ela tinha dezoito anos. Como lê-la a partir de uma infância claramente jurídica? Ela é uma criança, uma adolescente, é uma jovem – porque aparece outra categoria sociológica também – ou é uma adulta, porque atingiu a maioridade no ocidente, que é de dezoito anos? Talvez não no mundo árabe de onde ela vem. E esse filme que ela filma com dezoito anos, há quanto tempo ela estava pensando nele? Como estava desenvolvendo ele? Acontece a mesma coisa com a irmã dela quando faz E Buda desabou de vergonha (2007), com dezenove anos. Ou o que faz Xavier Dolan, o canadense, que no seu primeiro longametragem, Eu matei minha mãe (2009), tinha vinte anos.
Frente a isso da gestualidade, o que acontece é que, no domínio cinematográfico, na minha opinião, a narração do adulto está muito mediada pela autobiografia. E a autobiografia é um dos eixos fundamentais de configuração da categoria infância. Este tipo de cinema é muito anedótico, é um cinema baseado na memória individual. É o que a gente vê em filmes como Cinema paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, ou no mais recente Roma (2018), de Alfonso Cuarón. Este último, no fim das contas, se baseia na memória de Cuarón quando era criança, não tanto para falar de si mesmo, mas para falar da empregada doméstica, mas é a memória da sua infância que guia esse relato.
Tem outra coisa que também é fundamental, que são os adultos. Quando eles fazem esse processo de elaboração de uma narração, é difícil evitar as representações oficiais que eles mesmos têm sobre a infância, e isso é uma coisa que eu acho que, em geral, eles não se dão conta. Quando eu estava fazendo entrevistas com diretores, eles não se davam conta de que eles têm uma ideia, ou de que eles têm saberes cristalizados em torno do que é uma criança e de como ela deve se comportar. Assim, aparecem essas representações oficiais sobre infância que, claro, determinam o olhar, por isso existem muitos filmes dirigidos por adultos que determinam uma gestualidade que é fingida, que é falsa. Basicamente, é falsa, porque estão cerceando a criança, estão obrigando-a a ser um anjo, a ser inocente, cândida, pura. E isso é muito difícil, porque todas as infâncias são diferentes segundo o contexto de onde vêm. Ou a ser simplesmente – e isso também acontece muito neste cinema adulto – um simples recurso narrativo. E, quando isso acontece, aparece o paternalismo ou o tutelarismo aplicado ao cinema. A criança não pode estar sozinha porque é perigoso, até na tela, tem que ter um adulto acompanhando, é uma categoria muito velha, mas que continua presente até hoje. Por exemplo, em O garoto (1921), de Chaplin. O filme se chama “O garoto”, mas o garoto não é o protagonista. O protagonista é Chaplin e como cuida dele, como o protege. É uma tradição que você pode encontrar até hoje em inúmeros filmes: A voz do coração (2004), Herói por acaso (2001), até em um filme do qual eu gosto muito, como Central do Brasil (1998), de Walter Salles, onde a criança não pode estar sozinha, porque não é a protagonista, a protagonista é esta senhora, que estava escrevendo na estação, nessa velha profissão de escrever cartas.
Esta replicação das ideias oficiais sobre a infância aplicadas no cinema também acontece em fenômenos muito específicos, por exemplo, na infância vinculada à guerra. A criança na guerra sempre é vulnerável, sempre é vítima, ou, ao contrário, é mostrada como sádica, como violenta por natureza. Mas, nesse processo cinematográfico dominado pelo adulto, o adulto não é capaz de pensar que a criança, por exemplo, pode ter militância política. Essas coisas não são apresentadas. Apesar de que, em alguns casos, existem resistências que são muito interessantes, porque apesar de existir um domínio adulto, o cinema é tão mágico que consegue enganar os adultos quando estão dirigindo e sai outra coisa. É o que acontece, por exemplo, quando você está vendo um filme de Clint Eastwood: você sabe que ele é uma pessoa muito conservadora, muito de direita, mas ele é enganado pelo próprio cinema. Quando ele faz os próprios filmes, existe outro Clint Eastwood que fala. Isso também acontece quando vemos o cinema e a infância.
Paul Vandromme escreveu um livro nos anos 60 que se chama Los niños en la pantalla2, e ele dizia que o cinema feito sobre a guerra e as crianças, até 1950, era um cinema que não mostrava as crianças como vítimas, era um cinema onde as crianças apareciam fascinadas pela guerra, e isso é outra coisa totalmente diferente. Esses diretores tiveram outra visão porque os paradigmas sobre infância da época eram diferentes. O paradigma de agora é que a criança é vítima. Se você pegar os filmes mais recentes, você vai ver. Claro, também tem filmes que se rebelam contra essa definição. Por exemplo, você se lembra de Império do sol (1987), de Steven Spielberg, no qual Christian Bale é uma criança que, apesar de tudo que ele passou, de viver a invasão japonesa sobre a China, de estar num campo de concentração, a única coisa pela qual se interessa são os aviões e os pilotos. Mas não é porque seja um sujeito inocente, e sim porque está lendo a guerra sob outro código, que não é o código dos adultos. É totalmente diferente. Tem outro filme que se chama A feiticeira da guerra (2012), de Kim Nguyen, que é fantástico para continuar falando disso, porque nesse filme vemos uma menina combatente numa guerra africana, ou seja, todo o contrário do que sempre nos mostrou o cinema e os livros a partir de uma perspectiva masculina. E essa menina tem uma forma de resistência impressionante para encarar a guerra, apesar de ter que matar os pais, apesar de ter que matar o casal na guerra, de passar por umas coisas terríveis. Ela acredita que é uma bruxa, porque os outros disseram para ela que ela é uma bruxa e, a partir disso, ela aproveita essa identidade para deixar de ser só uma vítima, se convertendo em uma menina com agência, com coragem, com a sua própria interpretação e ação diante da guerra que ela está vivendo.
Eu diria, por último, uma coisa que também chama muito a atenção: apesar de existir um cinema feito e decidido por adultos, nele mesmo se faz presente a alteridade da infância para resistir a esse mandato. E essa alteridade da infância é inalcançável, não se pode tomar, não se pode pegar. No cinema, existem formas de resistência, há alteridades que não conseguimos compreender, quando as crianças enfrentam essa centralidade do adulto no relato. Um exemplo é o filme Gente de bem (2015), de Franco Lolli. Para mim, Franco Lolli é o futuro do cinema da Colômbia porque ele entende que sem infância não existe cinema. Nesse filme, no roteiro, o menino protagonista, um ator natural, tinha que chorar dez vezes, onze vezes, não sei quantas, não lembro. No filme, no fim das contas, ele chora uma vez. Porque ele sempre resistiu à ordem do diretor de que ele tinha de chorar. Não porque ele achasse que soasse falso no relato cinematográfico, talvez ele não se importasse com isso, não sei. Mas o que estava presente ali era uma resistência a esse mandato, a essa centralidade do adulto dizendo “é o meu filme”. Aí aparece, talvez, essa gestualidade sobre a qual você me perguntava. Há pouquíssimos diretores que levaram em conta isso que o Truffaut dizia, que só é possível fazer filmes de crianças falando e escutando as crianças, porque senão tudo vai ser fingido, falso, espúrio, não vai ser real.
1 – A infância no cinema colombiano: olhares, presenças e representações (tradução livre).
2 – Título original Le cinéma et l’enfance, tradução livre “O cinema e a infância”.