Damos destaque, nesta edição, ao dossiê sobre a “Infância na América Latina” organizado por três pesquisadores argentinos: Pablo de Grande, da Universidade San Salvador; Valeria Llobet, da Universidade de San Martin; e Carolina Remorini, da Universidade Nacional de La Plata. A seção Espaço Aberto apresenta a entrevista de Kelly Russo com Gabriela Novaro sobre crianças e adolescentes imigrantes e indígenas no contexto escolar argentino. Duas resenhas e o levantamento bibliográfico de publicações sobre infância e juventude na América Latina referentes ao último trimestre compõem este número da revista.
Lucia Rabello de Castro
Editora Chefe
Editorial “Dossiê Infância na América Latina”
Nas últimas três décadas teve lugar um contínuo crescimento do campo dos estudos sobre infância a partir de aportes de diversas disciplinas (antropologia, psicologia, sociologia, filosofia, história), tanto no plano teórico-conceitual como no metodológico. Nesse contexto, tem-se destacado com insistência a omissão dos sujeitos infantis em algumas teorias sociais clássicas e contemporâneas, sendo oferecidos argumentos para revisar e questionar essas omissões a partir de novos olhares dos diversos desenvolvimentos teóricos.
Em especial, entre os debates e novos olhares, destacam-se as discussões sobre a agência infantil –especialmente no caso de sujeitos juridicamente menores; a cidadania e a participação das crianças em contextos públicos e privados; a temporalidade supostamente linear da subjetividade que emerge das concepções tradicionais do desenvolvimento infantil; os direitos humanos na infância, levando em conta a diversidade e a desigualdade de contextos e situações em que as crianças moram e transitam; e o papel da infância como instituição social e cultural nos processos políticos contemporâneos.
A vigência e necessidade desses debates materializou-se na proliferação de espaços acadêmicos de discussão no nível internacional (simpósios, congressos, cursos, seminários, publicações periódicas) de caráter disciplinar e também transdisciplinar. A construção do campo de estudos da infância permitiu ampliar o olhar para sujeitos e espaços antes invisibilizados, ao mesmo tempo que levou –como contrapartida – a um certo isolamento das produções específicas sobre a infância em relação a aquelas que abordam “o mundo adulto”. Nesse sentido, ao mesmo tempo que a consideração das crianças como agentes e participantes plenos nas sociedades e comunidades tem sido documentada e defendida por numerosos pesquisadores, a focalização nas crianças conduz, em alguns casos, a perder de vista a perspectiva intergeracional e contextual, tão importantes para a análise da vida social.
Constatar esse perfil em numerosas pesquisas e enfoques sobre a infância nos levou a propor uma mesa redonda no marco do Primeiro Congresso Latino-americano de Teoria Social. Por que a Teoría Social? As possibilidades críticas das abordagens clássicas, contemporâneas e emergentes1 (Buenos Aires, agosto de 2015). Essa mesa redonda, denominada “As crianças nos debates teóricos clássicos e contemporâneos nas ciências sociais (ou o que podem ensinar as crianças aos cientistas sociais?)”2, teve como intuito central lançar um diálogo sobre as preocupações teóricas suscitadas a partir da problematização da infância e de suas singularidades, sem renunciar à necessária integração dos estudos com e sobre crianças em debates mais amplos em torno de diversos processos e problemáticas socioculturais. Os intercâmbios e discussões que ali se geraram deram lugar a este dossiê, que reúne alguns dos trabalhos apresentados nessa oportunidade.
Em cada um deles reconhecemos um eixo diferente de discussão teórica e empírica que aporta à consideração da infância nas suas dimensões temporal e espacial, e que representa, ao mesmo tempo, problematizações que surgem da pesquisa num campo particular (filosofia, etnografia, trabalho social, entre outros). Não obstante, essas problematizações se nutrem de disputas teóricas que transpassam os limites disciplinares e obrigam a pensar os desafios da construção de teorias sociais com o intuito de dar conta de processos contemporâneos no nível macro e micro que se articulam em contextos particulares. Se algo é essencial e particular nos estudos de infância, é seu caráter interdisciplinar e a luta por constituir objetos que expliquem adequadamente o dinamismo dos processos sociais que procuram compreender.
Este Dossiê começa com o artigo de Patricia Ames, que nos permite questionar as imagens contemporâneas da “novidade tecnológica” refletida na representação das crianças como “novidade geracional”. A autora reflete, a partir de sua pesquisa com docentes e crianças de escolas peruanas, sobre a caracterização contemporânea da infância na sua relação com as TICs e, em especial, sobre os limites dos conceitos “nativos digitais” e “imigrantes digitais”. Em que medida certas visões essencialistas da infância, da adultidade e da tecnologia tornam-se obstáculos para a formação em espaços educativos contemporâneos? Seu argumento parte das abordagens socio-históricas da aprendizagem e do desenvolvimento cognitivo para chamar a atenção sobre a necessidade de analisar as aprendizagens das crianças como resultantes da sua participação e interação com outros sujeitos, pares ou adultos. A autora enfatiza os perigos que representam certas visões essencialistas e próximas dos determinismos biopsicológicos da infância e adultidade, “apesar do longo percurso teórico que permitiu estabelecer que a infância é uma construção social”. Assim, seu artigo está em consonância com posturas contemporâneas que consideram as competências humanas como resultantes da participação dinâmica dos sujeitos em contextos caracterizados pela complexa interação de oportunidades e limitações para o desenvolvimento e a aprendizagem.
Os debates referentes aos vínculos entre infância e Estado conformam outro eixo produtivo e dinâmico nos estudos da infância, o qual é abordado tanto do ponto de vista da análise histórica como a partir de perspectivas socioantropológicas que focalizam as relações entre crianças e políticas públicas, assim como as experiências infantis de participação em instituições estatais. O artigo de Alejandra González Celis realiza uma avaliação dos contrastes das políticas públicas no Chile sobre a infância, desde 25 anos de sua ratificação na Convenção dos Direitos da Criança. A infância, no marco do estado moderno, não somente funciona como um ator perante o Estado, envolvido ao mesmo tempo em diferentes tipos de relações intergeracionais, mas também funciona como recurso classificatório e de normatização utilizado pelo próprio Estado. A infância, como categoria classificatória no marco do Estado moderno, leva-nos ao necessário debate sobre a vigência de uma plena cidadania infantil e os alcances do enfoque de direitos das crianças, assim como à discussão em torno dos desafios que impõe estender o conceito de cidadania às crianças. Segundo a autora, os estudos com uma perspectiva crítica
“constituem o lugar a partir do qual parece existir maior oportunidade de analisar a cidadania infantil como uma forma de reconhecer a capacidade de disputa das crianças, para daí deslocar o lugar que nos foi dado – tanto a elas como a nós (adultos) – nessa relação, já que a cidadania é concebida como um processo que requer uma análise histórica das lutas e conflitos cujos objetos de disputa se condensam nos direitos resultantes, dando conta de que as mudanças nas ordens jurídicas não mostram as mutações complexas e as relações de poder nas dinâmicas sociais particulares”.
Niño Vega, por seu turno, no seu artigo sobre as trajetórias de crianças e jovens na Colômbia, traz luz sobre como as experiências de “vida na guerrilha” interpelam os papéis e modelos de infância “normal”, indagando como essa tensão busca resolver-se na trajetória dos que se veem envolvidos nessas experiências durante a infância. As experiências infantis consideradas “inapropriadas” e a infância como categoria normativa aparecem como problemas concretos para os atores na hora de dar um novo significado a seu passado. O retorno das crianças à vida civil mediante a “reintegração da infância” supõe um desafio complexo para o Estado e para os demais atores da sociedade civil, devido ao predomínio de ideias normativas sobre infância e juventude:
“na reintegração à vida civil, as jovens não logram desfazer-se do discurso social que configura sua experiência na guerrilha como sujeitos com perdas. Elas foram poupadas da possibilidade de experimentar-se a si mesmas a partir das expectativas sociais do que é ser menina e jovem na vida civil, inclusive a ideia de um etos particular e de limites e lugares atribuídos socialmente: um espaço moratório para a socialização e a aprendizagem das regras do jogo da vida social. A passagem pela vida na guerrilha lhes roubou sua infância e juventude, significou para elas uma perda que não é possível recuperar no futuro, já que, no fundo, o que sustenta essas noções é o seu caráter transitório”.
Por sua vez, Leandro Drivet repõe elementos para construir uma história cultural na qual à infância foi designado, em repetidas ocasiões, um lugar marginal e subalterno. Centrado na discussão em torno das relações intergeracionais, dos princípios de autoridade e das formas de dominação, o autor, a partir da leitura da obra de Nietzsche – e da figura de Zaratustra –, convida a hierarquizar a infância. Informado dos desenvolvimentos psicanalíticos, permite fazer uma ponte entre as novas epistemologias do feminismo e a incorporação da crítica sobre a eficácia do patriarcado nos estudos da infância. Assim, assinala que “se pode contribuir questionando o crime adicional que se perpetra quase anonimamente quando as crianças são convertidas em objetos do consumo e a materialidade em objeto da repressão”. Propõe “incorporar a perspectiva do sorriso, lúdica e dançarina, que as crianças atualizam quando são vítimas da opressão adulta, o que é ainda uma tarefa pendente”.
Finalmente, os debates sobre a construção de uma ideia central no ordenamento estatal da proteção social – desenvolvidos profusamente pelos estudos sobre o Estado de Bem-estar, tanto tradicionais como na sua versão crítica feminista – consideraram escassamente o papel central que as ideias sobre a “infância normal” adotaram na hora de institucionalizar esses acordos de proteção. O artigo de Suzana Libardi incursiona nessas complexas relações entre as ideias sobre a infância e os debates sobre sua proteção, a partir de uma pesquisa no contexto brasileiro que aborda “como sujeitos da geração mais velha veem a aplicabilidade da ideia de proteção e como se posicionam diante disso”, problematizando a imbricação entre cuidado e controle, na medida em que os adultos imaginam a proteção das crianças “por meio da regulação adulta sobre a vida das crianças e por meio da instrução fornecida a elas sobre os assuntos e as experiências aos quais elas têm acesso. A proteção, portanto, estaria diluída no cuidado doméstico que adultos têm com crianças”.
Acreditamos que os trabalhos aqui apresentados permitem construir um prisma de aportes que, a partir dos estudos da infância, se pode fazer a outros campos de pesquisa e debate, ao mesmo tempo que convidam a não esquecer o papel das crianças na compreensão de complexos processos contemporâneos, tais como a violência na vida cotidiana, as transformações da regulação estatal e a compreensão do sujeito humano nos contextos culturais e sociais contemporâneos.
Pablo De Grande – Instituto de Investigación en Ciencias Sociales – Facultad de Ciencias Sociales – Universidad del Salvador, Buenos Aires, Argentina/Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (CONICET)
Valeria LLobet – Centro de Estudios en Desigualdades, Sujetos e Instituciones – Universidad Nacional de San Martín, Buenos Aires, Argentina / Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (CONICET)
Carolina Remorini – LINEA – Facultad de Ciencias Naturales y Museo – Universidad Nacional de La Plata, Argentina / Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (CONICET)
1 N. T. Primer Congreso Latinoamericano de Teoría Social ¿Por qué la Teoría Social? Las posibilidades críticas de los abordajes clásicos, contemporáneos y emergentes.
2 N. T. Los niños en los debates teóricos clásicos y contemporáneos en ciencias sociales (o qué pueden enseñar los niños a los científicos sociales).