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Belo Horizonte, uma cidade educadora(?): uma análise das ações e políticas públicas voltadas para a infância

Luciano Silveira Coelho
Universidade do Estado de Minas Gerais, Departamento de Ciências do Movimento Humano, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1203-7826

Túlio Campos
Universidade Federal de Minas Gerais, Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4686-1514

Sheylazarth Presciliana Ribeiro
Universidade do Estado de Minas Gerais, Departamento de Ciências do Movimento Humano, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4768-9135

Éder Fernando Souza Cruz
Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-8906-7137

Introdução

Estabelecer a relação entre infância e espaços urbanos implica considerar sua inclusão com base no exercício e na construção da cidadania. Por isso, o presente trabalho se propõe a identificar e analisar as ações do Poder Público e da Sociedade Civil para garantir a presença da criança nos espaços públicos de Belo Horizonte, Brasil, com base na perspectiva do Movimento das Cidades Educadoras. Considerando as cidades como contextos privilegiados dessa construção social, o espaço público urbano possibilita os diversos modos de interação, de encontro com o diferente e de conflito que, consequentemente, resultam em processos de aprendizagem da cidadania. No entanto, as interações entre a criança e a cidade nem sempre são harmoniosas e positivas. Lansky (2012, p. 76) afirma:

A cidade é vista […] como uma entidade à parte de seus moradores e de suas culturas, é pensada como resultado de forças econômicas e políticas, e a serviço delas, sob uma ótica excludente. As crianças, muitas vezes, são vítimas dessa percepção “autocêntrica”, que considera as ruas espaços inseguros, inadequados à apropriação infantil.

Trata-se de um pensamento urbanista hegemônico, resultante de uma dinâmica complexa dominada pelos “produtores das cidades” que as projetam, discutem e executam. A produção dos espaços das cidades resulta em disputas políticas e econômicas que transformam o espaço público em territórios de dominação social.

Partindo da premissa de que a criança se relaciona com os espaços por meio do brincar, compreende-se que essa atividade é fundamental na infância. No entanto, faz-se necessário ressaltar que, ao nos referenciarmos aos contextos urbanos contemporâneos, é preciso cautela para evitar generalizações precipitadas. Em pesquisa realizada em dois bairros de Belo Horizonte, Debortoli et al. (2008) chamam a atenção para as particularidades dos diferentes espaços da cidade. No bairro Belvedere, considerado um refúgio da elite econômica belorizontina, as relações adulto/criança são marcadas pelo distanciamento. Segundo o autor, a lógica dos edifícios opulentos, com diversos equipamentos de lazer, deixa em segundo plano a reunião das pessoas (Ibid.). Sobre a apropriação do espaço público neste contexto abastado, o autor destaca ainda a escassez de relações espontâneas, de atividades que não acontecem fora de espaços e horários predeterminados. Fazendo um contraponto a isso, o bairro Confisco, constituído pela periferia deserdada da cidade, tem suas ruas como um espaço público, com possibilidade de encontro e trocas, mesmo que de forma e sentido nostálgico (Ibid.).

Ainda sobre o brincar, Vigotski (2007) afirma que essa prática é a própria essência da cultura infantil, capaz de transformar o espaço vivido em espaço afetivo e em espaço de cidadania. É necessário, portanto, discutir a criação de espaços públicos infantis. Esse debate de teor urbanista foi desenvolvido a partir do século XIX, tendo como referências a construção de espaços públicos infantis na Alemanha e nos EUA (LEFEBVRE, 2009). O urbanismo, associado ao avanço das teorias pedagógicas centradas na relação brincadeira e aprendizagem, disseminou-se pelo mundo ao longo do século XX, configurando um modelo na área infantil.

De acordo com Miranda (1941), no Brasil, há registros das primeiras áreas públicas infantis em 1930, quando Mário de Andrade dirigia o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Os ideais de cultura e cidadania para todos eram uma pauta do Movimento Modernista, levado a efeito por ele em sua passagem pela Prefeitura de São Paulo. Os princípios da Escola Nova1, da importância dos jogos e da atividade lúdica para o aprendizado, bem como os princípios higienistas da época contribuíram para o estabelecimento de espaços educativos e culturais nas praças e parques da cidade de São Paulo, atendendo à demanda de uma forma de proteção para as crianças da crescente população proletária. A partir dos 3 anos, as crianças tinham a oportunidade de brincar, desenvolver atividades recreativas e socializar-se com seus pares. O Programa Paulista de Parques Infantis se tornou referência para a disseminação desses espaços por todo o País (Ibid.).

No entanto, como informa Bauman (2001), nas décadas seguintes (1940 a 1980), a sociedade e as cidades passaram por um profundo processo de transformação social. A lógica racional e desenvolvimentista começou a guiar as prioridades urbanas, e a infância foi excluída das ruas/calçadas, outrora lugares de encontros e brincadeiras. Isso leva a perceber que as mudanças espaço-temporais e socioculturais acarretaram consequências na realidade das infâncias urbanas contemporâneas. Ocorreu uma inversão do papel histórico da cidade. A vida pós-industrial, urbana e capitalista, produziu uma cultura de isolamento, cultivando o individualismo, o hedonismo e o consumismo, em detrimento das interações sociais e do contato com a natureza. A sociedade começou a ver a cidade pelo filtro da “cultura do medo”. Uma cultura criada por interesses políticos e econômicos e apoiada pelos meios de comunicação de massa constituía-se mais num discurso do que em uma realidade concreta. A violência e o medo do outro são reafirmados cotidianamente, produzindo uma nova relação com a sociedade (Ibid., p. 317-318).

Nas décadas de 1980 a 2000, verificou-se um intenso movimento migratório do ambiente rural para o urbano, demandando um aumento de habitações e demais obras. As migrações brasileiras, vistas pelo ângulo da sua causa, são verdadeiras migrações forçadas, provocadas pelo fato de que o jogo do mercado não encontra qualquer contrapeso nos direitos dos cidadãos, sendo também ligadas ao consumo e à inacessibilidade a bens e serviços essenciais (SANTOS, 2013). O processo de urbanização, portanto, intensificou-se no Brasil com grande crescimento de edificações sem um proporcional acompanhamento dos espaços livres. Isso, associado aos problemas de trânsito, poluição, ruído e escassez de áreas para lazer, comprometeu o bem-estar de algumas camadas sociais das populações urbanas. Os espaços públicos livres, tais como largos, praças, parques e áreas de jogos, têm perdido para espaços privados e comerciais seu valor e potencial lúdico no cotidiano das crianças. Há pouco investimento em lazer e recreação, espaços lúdicos e culturais, além dos naturais. Os espaços públicos como lugares de encontro, de convívio, de vivências, de aprendizagens, de brincadeiras e contatos com a natureza vêm perdendo sua importância, impactando no desenvolvimento e bem-estar biopsicossocial (MALHO, 2004).

Pode-se apontar como efeitos da urbanização o distanciamento da natureza, a falta de segurança em espaços públicos, sendo as ruas planejadas com prioridade para o tráfego de carros, o que induz a uma vida frequentemente confinada em ambientes fechados, isolados. A invisibilidade das crianças nos espaços públicos da cidade é contundente, revelando uma sociedade que prioriza o interesse dos adultos. Como afirma Debortoli (2008), conceber o espaço como prática social é pensar em sua apropriação, e essa se refere ao sentimento de pertencimento, à compreensão do vivido para além do espaço geográfico. De acordo com Garcia (1996, p. 21), os espaços públicos livres acabaram sendo “simbolicamente” recuperados, higienizados e tornados seguros na atemporal cartografia urbana dos shopping centers. As crianças, sobretudo as crianças das classes média e alta, perderam sua liberdade e, em prol da segurança, foram confinadas a espaços especializados, com tempos “privatizados”, controlados por adultos em ambientes pouco diversos. O tempo livre espontâneo, do imprevisível, da aventura, do risco do encontro com o meio natural cedeu lugar ao tempo organizado, planejado, uniformizado (ALMEIDA, 2012). Na prática, ocorreu que os espaços urbanos se reconfiguraram, assumindo como valores básicos o consumo e a segregação.

Contrapondo essa lógica capitalista, pode-se retornar à proposta de Lefebvre (2009), do direito à cidade, à sociabilidade e ao encontro nos ambientes urbanos. Trata-se, portanto, de uma proposta de urbanismo de integração. Para Lefebvre, o urbanismo de integração se pauta na industrialização, que desencadeou um processo de urbanização da sociedade, implicando uma divisão social e técnica do trabalho, das práticas e dos saberes. Como exemplo, têm-se os grandes conjuntos habitacionais, difundidos na França após a Segunda Guerra Mundial, cujos aspectos de arquitetura refletem uma concepção funcionalista que reordena a vida da sociedade em razão da organização técnica do trabalho.

Historicamente, as cidades, que eram tecidas de forma espontânea e orgânica, deixaram de sê-lo, passaram a ser projetadas isoladamente sobre seus territórios e construídas alheias às identidades de seus habitantes. Em suma, o denominado urbanismo dos canos, como se refere Lefebvre (Ibid.) em relação à forma como a cidade é pensada, retratando a emblemática concepção de cidade como uma organização de redes de infraestruturas, serviços públicos e circuitos de produção e consumo de mercadorias em detrimento de práticas sociais que se instauram historicamente. Estas últimas são tratadas sob a ótica capitalista como processos sociais patológicos, requerendo, portanto, tratamentos médicos, tais como controle, higiene e reorganização.

Nesse sentido, o modelo de organização capitalista desenvolvido na segunda metade do século XX produziu um processo antiurbano, caracterizado pelo segregacionismo. Neste início de século XXI, permanece o grande desafio: fazer das escolas e das cidades o lugar das crianças. Por isso, o propósito deste trabalho foi identificar e analisar as ações do Poder Público e da sociedade civil para garantir a presença da criança nos espaços públicos de Belo Horizonte, com base na perspectiva do Movimento das Cidades Educadoras.

Ações e políticas públicas em Belo Horizonte

Belo Horizonte passou a ser reconhecida formalmente como uma cidade educadora ao se tornar signatária na Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE) em 2000. Dessa forma, assumiu o compromisso de destinar um montante mínimo de seu orçamento para respaldar a criação de diferentes programas e ações educativas em diálogo com a cidade, cujo principal compromisso circundou pela qualificação da educação pública na capital. Assim, o Município assumiu também a responsabilidade de concretizar uma política de atendimento à infância e à juventude. Entretanto estava posto que a garantia e defesa dos direitos dessa parcela da população era, também, compromisso de toda a sociedade. Uma tarefa que traz em si um desafio: mobilizar toda a sociedade, organizações governamentais e não governamentais, movimentos sociais, fóruns e conselhos, lideranças e o público em geral na construção de uma educação de qualidade e defesa dos direitos da infância e da juventude.

Historicamente, o compromisso do Município em relação às crianças e adolescentes já existia. Pode-se verificar que o reconhecimento de crianças e jovens como sujeitos de direito e não como objeto de tutela dos adultos se encontrava na pauta das diversas políticas sociais desenvolvidas pelo Município. Entre essas políticas, identifica-se o Programa de Socialização Infantojuvenil, resultante da articulação entre a Assistência Social e Educação, caracterizado pela oferta de atividades socioeducativas em horário complementar ao da escola. É preciso citar também o Programa Escola Plural2 que, na década de 1990, em diálogo com uma política da cidade, gerou significativas mudanças nos processos escolares, trazendo, em sua concepção, a promoção dos direitos, a formação integral e o diálogo com as famílias e a comunidade escolar.

O desafio do Município foi, a partir de então, construir uma gestão de acordo com os compromissos assumidos como cidade educadora. Possibilitar a construção de uma cidade que reconhecesse a pluralidade étnica e cultural dos sujeitos e se apresentasse como um espaço educativo, garantindo a participação de diferentes atores do Estado e da sociedade civil nos processos educativos.

Para o desenvolvimento de uma política de cidade educadora, os gestores realizaram várias ações. Em 2002, foi criado o Programa BH Cidadania, um novo modelo de gestão das políticas sociais pautado nos princípios de descentralização, intersetorialidade, territorialidade e participação cidadã (MOURÃO, 2007). Esse projeto visava a promover ações integradas, descentralizadas e de impacto social nos territórios em que se encontrava a população de maior vulnerabilidade e risco. Apontava para a construção de uma agenda de inclusão social, integrando ações de todas as secretarias e tendo como foco direto a família e não o indivíduo, isoladamente.

Atualmente, o Programa BH Cidadania vem atuando por meio do orçamento participativo, obras do PAC3 do governo federal e do Programa Vila Viva4. São 33 núcleos, atendendo 165 mil famílias, em 5 espaços que funcionam como ponto de apoio para as famílias: os telecentros, oficinas de cultura, Programa Segundo Tempo5, Programa Academia da Cidade6, entre outros.

Verificou-se que a intersetorialidade na Administração de BH ficou evidenciada pela organização das seguintes instâncias: Secretaria Municipal de Políticas Sociais, (englobando as secretarias adjuntas de Assistência Social, Abastecimento, Esportes, Trabalho e Direitos de Cidadania), Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Saúde, Administração Regional e Fundação Municipal de Cultura. Esses segmentos encontram-se representados numa câmara intersetorial de políticas sociais, objetivando desenvolver discussões e articulações entre as diversas políticas setoriais. De fato, a intersetorialidade constitui a base para que todas as atividades de planejamento, acompanhamento, execução, monitoramento e avaliação não se tornem fragmentadas.

O ponto de partida para esse novo modelo de gestão e promoção de políticas públicas do Município se pautou pela articulação de vários atores sociais e pela busca das demandas e expectativas das mais diversas comunidades que coexistem na cidade, buscando alcançar prioritariamente as crianças e os adolescentes. Dessa forma, uma cidade educadora busca uma gestão local que promova e garanta condições de desenvolvimento integral de cada indivíduo, descobrindo potenciais e agregando recursos do próprio território para uma ação educativa.

1 – Escola Nova é um movimento de renovação do ensino, surgido no fim do século XIX e fortalecido na primeira metade do século XX. Propõe uma nova compreensão das necessidades da infância e questiona a passividade proposta pela escola tradicional.
2 – A Escola Plural propôs o rompimento com a concepção tradicional de ensino e aprendizagem, passando a incorporar a realidade social e considerando as questões e os problemas enfrentados pelos homens e pelas mulheres de nosso tempo como objeto de conhecimento. Os conteúdos escolares foram repensados e ressignificados. Propôs-se o abandono do modelo compartimentado em disciplinas isoladas, para que se passasse a trabalhar com a interdisciplinaridade e com temas transversais. A inserção dos temas transversais como conteúdos curriculares possibilitou relacionar as disciplinas do currículo à realidade contemporânea, dotando-as de valor social (MIRANDA, 2007).
3 – PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), criado em 2007, representa um novo modelo de planejamento, gestão e execução do investimento público. Articula projetos públicos e privados de infraestrutura e medidas institucionais para aumentar o ritmo de crescimento da economia.
4 – Programa Vila Viva é um conjunto de intervenções financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e a Caixa Econômica Federal, baseadas em três eixos: urbanístico, social e jurídico.
5 – O Programa Segundo Tempo é um projeto estratégico do governo federal, que objetiva democratizar o acesso à prática e cultura do esporte, de forma a promover o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens.
6 – O Programa Academia da Cidade é composto por uma rede de academias desenvolvida pela Secretaria Municipal da Saúde, com incentivo do Ministério da Saúde, disponíveis em todas as regionais do Município de Belo Horizonte, com o objetivo de promover a saúde por meio da atividade física.
Luciano Silveira Coelho luciano.coelho@uemg.br

Mestre em Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Professor do Departamento de Ciências do Movimento Humano (DCMH) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Brasil, e líder do grupo de pesquisa Ciranda.

Túlio Campos tulio.camposcp@gmail.com

Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, e professor do Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG.

Sheylazarth Presciliana Ribeiro sheylazarth.ribeiro@uemg.br

Doutora em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Professora do Departamento de Ciências do Movimento Humano (DCMH) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Brasil, e vice-líder do grupo de pesquisa Ciranda.

Éder Fernando Souza Cruz edercruz73@gmail.com

Licenciado em Educação Física pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Brasil, e integrante do grupo de pesquisa Ciranda.