Foto: Leo Lopes

Crianças, jovens e suas famílias nas esquadrias da epidemia do HIV/AIDS

Abrir portas e janelas

Os processos de institucionalização, desinstitucionalização e relações familiares vividos por crianças e jovens com HIV/AIDS encontram similitude com os processos experienciados por qualquer criança que, por algum motivo, tenha sido institucionalizada (violência, abandono etc.). Entretanto, a infecção pelo HIV/AIDS agrega um elemento substancial em termos de tratamento, perspectivas de vida e possibilidades de adoção, principalmente pela questão do estigma e discriminação. Não é a mesma coisa ser uma criança que mora no abrigo e ser uma criança que mora no abrigo e tem AIDS, especialmente considerando o preconceito que existe em relação às pessoas que tem HIV/AIDS.

Observei ainda que a instituição tem múltiplos sentidos para os diferentes sujeitos envolvidos no processo, podendo se configurar como substituta da família, colégio, espaço de apoio e cuidado, local de restrições, local de possibilidades. O que se percebe é que é preciso tomar cuidado com definições consensuais – por exemplo, que a instituição é benéfica, “mal menor”, e espaço de garantia de direitos humanos. Ou, por outro lado, colocar a família como vilã, ou como incompetente para cuidar da criança ou jovem, ou como local idealizado e porto seguro. É preciso observar que a institucionalização é algo complexo, com vários matizes. Pontos de destaque desta reflexão são a reprodução de um modelo assistencialista para o cuidado de crianças pobres e doentes e as concepções de família capturadas pelo modelo de família nuclear – que conferem um lugar idealizado para a maternidade e, consequentemente, implicam forte culpabilização das mulheres que enfrentam desafios nos processos de cuidado com os/as filhos/as.

O balanço que consigo fazer é que há uma delicadeza na tessitura destes saberes e vários afetos, responsabilidades e incertezas envolvidos. E o mais importante: existem vidas e histórias de vida em jogo nos processos de decisão. Por isso, ao invés de formulações de prescrições universais e fixas (a instituição é melhor, a família é melhor), o que precisamos fazer é desenvolver a capacidade de ouvir, observar, perceber os movimentos e fluidez dos vínculos e, junto com as pessoas envolvidas (inclusive as crianças e jovens), construir os caminhos para que a história da criança e dos jovens seja escrita com sua participação e ancorada no arcabouço do cuidado, proteção e da garantia de direitos. Mais do que isto, podemos voltar ao início do que argumentei neste texto e pensar se somos capazes de interpelar e desconstruir nossas verdades e ainda lidar com a alteridade e com os diferentes sentidos e produções discursivas, inclusive a respeito de o que é cuidado, proteção e garantia de direitos.

É preciso observar que, nesta teia, as relações são também relações de poder e que existe governamento e regulação da população8 (Foucault, 2003). Cabe ainda estarmos atentos para os elementos que nos põem a rodar, numa maquinaria nem sempre visível, para fazermos muitas vezes mais do mesmo, pensando que fazemos “o novo” ou “o melhor”.

Fecho este texto com a vivência que me tocou profundamente, a imagem da menina negra, angustiada, pulando rapidamente para fechar a janela e o choro de tristeza por viver com HIV. Esta imagem, se por um lado reflete o mundo interno da casa, reflete também o que está para fora dali. Janelas e portas fechadas falam muito mais de todos nós que habitamos este mundo do que daqueles que nomeamos como outros e sentem que precisam fechar as janelas para se proteger desse mundo. O caminho para a transformação desta imagem/realidade passa necessariamente pela construção das possibilidades de resistir e transformar o fascismo cotidiano que se apresenta traduzido como estigma e discriminação. Tal construção tem como trilha a desconstrução da fixidez das identidades e da colocação do “outro”, da diferença, como anormalidade ou problema. Na concepção foucaultiana de poder, a resistência tem um papel importante. Precisamos resistir e persistir no enfrentamento do preconceito, na busca de um mundo capaz de abrir janelas e portas. E quem sabe até possamos chegar à questão de por que, afinal, inventamos as paredes?

8 – Governamento, população, relações de poder, produção do sujeito, fascismo, são ideias que podem ser encontradas em várias obras de Foucault, como, por exemplo, Foucault 2002, 2003, 2004a e 2004b. Sobre governamento da infância, ver Bujes, 2003.

Referências bibliográficas

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FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 15. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

______. Microfísica do poder. Organização e tradução Roberto Machado. 20. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004a.

______. Por uma vida não fascista. Organização Coletivo Sabotagem. Edição Virtual, 2004b.

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Resumo

Este artigo problematiza a questão de crianças e jovens vivendo com HIV/AIDS. O texto aponta o impacto negativo que o estigma e a discriminação em relação a AIDS trazem para vida das crianças e jovens e a necessidade de enfrentamento desta dimensão. Debate a institucionalização e desinstitucionalização a partir de uma perspectiva teórica baseada em Foucault, nos estudos culturais e pós-estruturalismo, sinalizando a necessidade de repensarmos os regimes de verdade que sustentam conceitos de infância, juventude, família, instituição e AIDS para, consequentemente, mudar as práticas neste campo.

Palavras-chave: AIDS, infância, juventude, casas de apoio, família.

Data de recebimento: 18/04/2015
Data de aceitação: 20/05/2015

Elizabete Franco Cruz betefranco@usp.br

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutora em Educação. Professora do Curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.