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Adoção e circulação de crianças na atualidade

Entrevista de Agostina Gentili com Claudia Fonseca

Agostina Gentili – Já se passaram 25 anos desde a publicação do seu livro Caminhos da adoção1. Esse é um livro central para a compreensão da infância na América Latina. É uma leitura ainda vigente, não só pela sua temática, mas também pelo modo como nos ensina a olhar as relações entre adultos e crianças e, especialmente, entre as dinâmicas familiares populares e os anseios jurídicos em torno da família. Como foi que você chegou a esse tema central do seu livro sobre a circulação de crianças?

Claudia Fonseca – Bom, meu interesse foi despertado em 1978, logo que me mudei, com toda a família, da França para o Brasil. Morava numa casa num bairro classe média e fui visitada diariamente por meninos e meninas que vinham da favela do lado pedindo comida. Fui profundamente incomodada pela desigualdade escancarada entre essas crianças e as minhas, e pensei que precisava entender sua experiência, justamente para poder conviver com elas de forma minimamente sensata. A pesquisa etnográfica com as famílias daqueles meninos e meninas era, para mim, algo necessário. Eu, enquanto residente deste País, tinha quase a obrigação de conhecer melhor a vida desses jovens – oriundos de uma situação que parecia ser representativa de boa parte da população. E, quando comecei a conhecer melhor as famílias, a questão da “circulação” foi uma coisa impossível de ignorar, a ideia de que havia uma certa maneira –, eu não quero romantizar, mas a palavra que me vem à cabeça é “quase coletiva” – de cuidar das crianças. Essas crianças muitas vezes não viviam com as suas mães, eram crianças muito ativas e, de certa forma, também muito independentes e, a partir de certa idade, elas decidiam por onde se locomover. Por outro lado, parecia sempre ter um vizinho ou parente pronto para acolhê-las.

Naquele momento, a literatura (principalmente na Sociologia) que eu procurava para tentar colocar essas práticas em perspectiva era dominada por uma imagem absolutamente normalizada da família nuclear, conjugal e euro-americana. Era uma imagem tão hegemônica que parecia cegar as pessoas para a realidade que estava à sua frente. A única maneira que essa literatura normativa tinha para analisar as práticas que eu observava era como algo anômalo, para não dizer patológico. Era evidente que essa forma de análise acadêmica extremamente limitada só podia desembocar na construção do objeto enquanto “problema social”.

Foi nesse momento que fui para a Antropologia clássica e para a História. Inclusive, peguei o termo “circulação de crianças” de um antropólogo que também trabalha com história2. Insisto em ressaltar isso, pois ele estava escrevendo sobre as crianças da nobreza da Inglaterra tudoriana. Naquele contexto, a circulação nada tinha a ver com “sobrevivência”, era um mecanismo para garantir a educação – a socialização adequada – de novas gerações. Então, para que essa expressão “circulação das crianças” não seja reificada, pensada sempre como “estratégia de sobrevivência”, era para mim essencial enfatizar a variabilidade complexa dos processos históricos. Antes de tudo, queria usar a análise comparativa para escapar da camisa de força da ideia de uma família “natural” – uma ideia que apresentava praticamente qualquer desvio do padrão “ideal” como um problema.

De fato, as Ciências Sociais estavam evoluindo, e muito, nessa época. No decorrer dos anos 80 e 90, em todas as áreas, a hegemonia do modelo familiar nuclear e conjugal (típico e “normal” de um contexto particular) estava sendo seriamente revista. Tinha tanta novidade – novas tecnologias reprodutivas, o aumento da expectativa de vida, a revolução sexual, divórcio, famílias gay e lésbicas – que teria sido delirante tentar se agarrar a um modelo tão estreito quanto aquele consagrado pela Sociologia anglo-saxã da época pós-guerra. O problema é que aquele modelo parecia continuar a dominar o imaginário de muitos políticos e gestores e até de alguns pesquisadores. É por isso que, em anos subsequentes, tomei como tarefa ajudar a disseminar para a esfera das políticas estatais as excelentes análises acadêmicas sendo realizadas em todas as áreas disciplinares sobre dinâmicas familiares diversas.

Agostina Gentili – Em meio a essa pesquisa, quais foram as suas outras descobertas no seu campo de estudo? Quais foram os outros temas que você trabalhou?

Claudia Fonseca – Bom, uma pesquisa geralmente leva a outra. Minhas primeiras experiências me levaram para uma variedade de instituições estatais por onde as crianças perambulavam. Essas instituições também faziam parte da dinâmica das famílias. Assim, despertei para as questões de políticas públicas no campo da proteção da infância. Aliás, acabo de participar de uma banca com Maria Filomena Gregori, que tem um livro muito instigante dessa época, Viração: experiências de meninos de rua3. O foco dela não era, como o meu, em jovens que circulavam entre famílias, mas os que giravam entre as instituições. Como no caso de Gregori, o próprio campo acabou me arrastando para o estudo da rede pública de acolhimento, as políticas públicas e, também, a questão das leis.

Foi assim que cheguei ao estudo da Antropologia do Direito. Na época, se falava muito do hiato que existe entre as leis e as práticas. Parece que os governantes que faziam as leis estavam completamente alheios a qualquer prática das pessoas “comuns”. Ao longo da história da América Latina, encontramos leis que seguiam esse formato: ver, por exemplo, os estudos sobre o México4, o Chile5, o Peru6… Será que você mesma, Agostina, na sua pesquisa sobre a adoção nos anos de 1960 na Argentina7, não constatou esse mesmo descompasso entre as perspectivas de quem faz as leis e os entendimentos das pessoas às quais essas leis são aplicadas? Então, isso é algo que eu enfatizava nas minhas primeiras análises: como as leis sobre adoção se ajustavam melhor aos valores e práticas (considerados pelos legisladores como “modernos” – isto é, da Europa e dos USA) do que aos valores e práticas do povo local.

Em tempos recentes, tenho observado muitas mudanças – o que é sempre um desafio para nós, pesquisadores. As estruturas mudam, as políticas mudam, os estilos de governança mudam. E temos novas entradas metodológicas que também nos permitem ver sutilezas maiores. Eu diria que, hoje no Brasil, quando olho para a área legal de adoção e proteção à infância, vejo um campo extremamente heterogêneo. Há uma influência internacional, mas não é uma influência monolítica. Também existe uma certa abertura incipiente e seletiva para práticas locais. Vou te dar apenas um exemplo, porque são muitos. Escrevi muito sobre a “adoção à brasileira” (que vocês na Argentina chamam de “inscripción falsa”, não é?), que ocorre quando um padrasto ou qualquer outro pai adotivo resolve tirar a certidão de nascimento da criança como se fosse ele o pai biológico. Durante muitos anos, eu lia artigos de juristas lamentando essa prática fraudulenta (que estimavam ser até dez vezes mais comum do que a adoção legal). Agora, a partir de 1º de janeiro de 2018, o Conselho Nacional de Justiça forneceu uma maneira de regularizar essa “adoção à brasileira”. No seu Provimento 63, o Conselho facilita o registro em cartório de paternidade de três tipos de pais que não precisam mais passar pelos tribunais – pais vivendo em casais homossexuais, pais de bebês nascidos das novas tecnologias reprodutivas e padrastos. Nessa terceira categoria, o alvo é aquele pai “socioafetivo” que já cria algum enteado há tempo. Nestes casos, não é necessário fazer uma adoção. É só ir ao cartório e declarar a paternidade socioafetiva. Esse processo cria direitos e obrigações irrevogáveis, iguais à adoção que passou pelo Juizado. Não sei se o Provimento vingou, pois houve uma reação… mas representa uma tentativa de regularizar práticas que já são amplamente difundidas na sociedade.

Portanto, sugiro que a própria dinâmica da lei brasileira está mudando. Podemos dizer que, cinquenta anos atrás, políticos da elite faziam uma lei, sabiam que ela não iria ser aplicada, mas a aplicação pouco importava. Tinham se mostrado progressistas, proclamando seus princípios iluministas e a história terminava ali. Hoje em dia, existe a tentativa de uma maior aproximação entre lei e prática. Não digo que a mudança seja sempre pelo melhor, mas é interessante notar como essas coisas mudam. Em suma, a circulação das crianças me levou a examinar as regras impostas pelo governo em termos de lei e esse interesse pela lei me levou a repensar o problema da “governança” da infância8.

1 – FONSECA, C. Caminhos da adoção. São Paulo, Editora Cortez, 1995.
2 – MCKRACKEN, G. The Exchange of Children in Tudor England: an Anthropological Phenomenon in Historical Context. Journal of Family History, v. 8, n. 4, p. 303-313, 1983.
3 – GREGORI, M. F. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
4 – BLUM, A. Domestic economies: family, work, and welfare in Mexico City, 1884-1943. Lincoln: University of Nebraska Press, 2009.
5 – MILANICH, N. Children of fate: childhood, class, and the state in Chile, 1850-1930. Durham: Duke University Press, 2009.
6 – LEINAWEAVER, J. El desplazamiento infantil: las implicaciones sociales de la circulación infantil en los Andes. In: FONSECA,C.; MARRE, D.; UZIEL,A.; VIANNA, A. (Org.), El principio del ‘interés superior’ de la niñez: adopción, políticas de acogimiento y otras intervenciones. Perspectivas espaciales y disciplinares comparativas. Scripta Nova, v. XVI, n. 395, mar. 2012.
7 – GENTILI, A. Maternidades públicas y adopción legal en Córdoba, 1957-1974. Anuario del Instituto de Historia Argentina, v. 17, n. 2, p. 1-22, dez. 2017
8 – Aproveito o gancho para lembrar que eu, junto com Fernanda Rifiotis e Diana Marre, estamos organizando um número da revista Horizontes Antropólogicos sobre a Governança Reprodutiva. A submissão de manuscritos será bem-vinda até 31/5/2020. A publicação está prevista para maio de 2021.
Claudia Fonseca claudialwfonseca@gmail.com
Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e do Doutorado em Antropologia (IDAES) pela Universidad Nacional de San Martin, Argentina. Seus interesses de pesquisa incluem parentesco, gênero, ciência e direito, com ênfase particular nos temas de direitos humanos e tecnologias de governo. 
Agostina Gentili agosgentili@gmail.com
Historiadora e docente da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Integra o grupo de pesquisa Historia de las Familias y las Infancias en la Argentina Contemporánea do Instituto de Estudios de Género da Universidad de Buenos Aires, e a Red de Estudio de Historia de las Infancias en América Latina.