Entrevista de Sonia Borges Cardoso de Oliveira com Volnei Antonio Dassoler
Volnei Dassoler: De acordo com indicadores apresentados pelos Médicos Sem Fronteiras, o incêndio na boate Kiss reuniu num só evento as três situações com maior potencialidade traumática: atingir um público jovem, ter sido em larga escala quanto ao número de vítimas e ter ocorrido de forma violenta. Tal fato assume coloração traumática por promover uma ruptura radical, inesperada e intensa na rotina que construímos, onde passado, presente e futuro se ligam e elaboram um tipo particular de ficção, que designamos como a “história de vida de cada um”. Nesse sentido, pensar a dimensão temporal exclusivamente na perspectiva cronológica não nos é suficiente. Por outro lado, reconhecemos que o tempo atua como facilitador dos processos subjetivos e das articulações coletivas diante de grandes tragédias ou dramas humanos.
Após o impacto das primeiras semanas, a reação ao evento se processou de maneiras distintas conforme cada sujeito foi elaborando sua relação com o incêndio. Parte da população jovem, em especial aqueles que não tiveram envolvimento com o incêndio, incluíram o acontecido como parte da vida, situando-o no passado. Essa postura estava em conformidade com parte da população que considerava exagerado continuar dando ênfase ao acontecimento. Para outros, entretanto, o que aconteceu permanece vivo, sendo possível identificar, a partir das narrativas nos atendimentos psicológicos, a repercussão desse evento em falas como: “depois dessa coisa que aconteceu comigo na Kiss”, “antes do negócio da Kiss”, “em função do que houve na Kiss”, “por causa do incêndio na Kiss”. Entendemos que aqueles que viveram a experiência de sobreviver ao incêndio tiveram a sua relação com a vida alterada no que diz respeito às formas de diversão, à importância dos laços de amizade, de família, aos projetos de futuro e à noção da finitude humana. Nesse sentido, trabalhamos na perspectiva de que 27 de janeiro é um dia que ainda não terminou e que deverá marcar toda uma geração de jovens e crianças da cidade e da região de Santa Maria.
Volnei Dassoler: Em decorrência do caráter de imprevisibilidade do incêndio, a cidade não tinha estrutura nem expertise para fazer frente às demandas que surgiram de maneira tão intensa. Nesse sentido, tivemos auxilio importante de profissionais voluntários que, assessorados pela equipe dos Médicos sem Fronteiras e por representantes da gestão pública na área da saúde mental, definiram uma organização inicial do processo de trabalho. No termo de compromisso assinado pelos três entes federados, o cuidado psicossocial ficou sob a responsabilidade do Município de Santa Maria e já na madrugada de 28 de janeiro de 2013 foi implantado o atendimento em saúde mental em caráter de 24 horas.
Tínhamos o desafio de elaborar um projeto clínico levando em conta o caráter de urgência dos acontecimentos, a comoção coletiva e a diversidade de ofertas de apoio advindas de instituições do país inteiro. Assim, as ações foram distribuídas em sete grupos de trabalho: acompanhamento em ritos e funerais, apoio nos hospitais, apoio na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), apoio à atenção básica, atendimento 24 horas, supervisão clínica dos atendimentos e gestão. Avaliamos que, nesse primeiro momento, a escuta seria feita individualmente ou junto a familiares e amigos, e que os encaminhamentos seriam definidos em cada caso. Entendemos que o dispositivo de grupo não seria indicado para essa fase do tratamento aos sobreviventes e familiares, exceto rodas de conversa pontuais com os profissionais dos serviços de resgate e dos serviços hospitalares.
Dessa forma, as intervenções contemplavam as diferentes necessidades que surgiram a partir das prioridades para cada tempo de cuidado, ou seja, inicialmente, projetamos o cuidado na urgência com atendimento 24 horas, com equipe multiprofissional, possibilidade de visitas domiciliares, avaliação das situações mais graves e contato telefônico diário para esses casos, garantia de leito hospitalar em caso de necessidade. Nos atendimentos das primeiras semanas, os jovens que haviam sobrevivido relatavam que sentiam o toque das pessoas durante a fuga da boate, ouviam as vozes e os gritos daquela noite, sentiam cheiros, tinham flashback de inúmeras cenas vividas naquela madrugada. Atordoados, se viam impotentes e desesperados, repercutindo em problemas de sono, de alimentação, irritabilidade, apatia e angústia.
Como a escuta psicológica, no seu formato clínico convencional, requer um tempo de fala e de elaboração e esse cenário não se apresenta disponível nos quadros psíquicos de crise, observamos, por parte dos profissionais envolvidos nos atendimentos, dificuldades quanto ao manejo dessas situações, o que acarretava em inúmeros pedidos de avaliação psiquiátrica que se mostravam, posteriormente, desnecessários. Esse cenário justifica a supervisão clínica como um dispositivo importante de apoio à equipe e que, ainda hoje, permanece como suporte clínico dos atendimentos psicoterapêuticos no Acolhe Saúde.
Até o presente momento, aproximadamente mil pessoas receberam algum tipo de atendimento através da Psicologia, Psiquiatria e de outros núcleos profissionais, além de visitas domiciliares, rodas de conversa, entre outros. Também disponibilizamos uma equipe de profissionais para acompanhar os familiares nos depoimentos junto ao Fórum, nas manifestações públicas e nos eventos de integração entre os membros promovidos pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).