Foto: Pxhere

Violência autoinfligida: jovens indígenas e os enigmas do suicídio

Tema espinhoso, difícil, mas necessário atualmente, visto que os dados apontam para um aumento dos casos de suicídio entre jovens no mundo, no Brasil e, neste país, em relação aos povos indígenas. Os dados que serão apresentados neste artigo estão contidos no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Os registros mostram a evolução das ocorrências, em âmbito do território brasileiro, porém, não esgotam plenamente a realidade. Mesmo que parciais, os dados revelam tendências, provocam dúvidas e muitos questionamentos. Gostaria de poder esclarecer todas as interpelações, mas temo que isso não será possível, pela própria impossibilidade de se conhecer o assunto suicídio em toda sua complexidade.

O suicídio é um fato social, assim dizem todos os que estudaram o fenômeno, desde Émile Durkheim, que o estudou e o classificou em tipos: suicídio egoísta; suicídio altruísta e suicídio anômico, acrescentando o tipo fatalista. São tipos referentes ao contexto social e aos propósitos dos sujeitos que os cometem. Podemos dizer que o suicídio é um fato social total, complexo, pois ocorre no âmbito do livre arbítrio e envolve muitos fatores: psíquicos; sociais; familiares; econômicos; políticos; existenciais; escolares; por adicção ao álcool e outras drogas; exposição a agrotóxicos, enfim, todos juntos ou enfatizados caso a caso. Não se trata de uma relação de causa e efeito, mas de uma constelação de fatores que permitem estabelecer uma associação entre estes e as condições que cercam o indivíduo suicida. Certamente existem razões que levam ao suicídio, no entanto, há sempre um contexto variado em que a ocorrência de casos pode ser compreendida histórica e socialmente, em que o efeito se torna causa e a causa se torna efeito.

Entre os povos indígenas que habitam o território brasileiro, há uma recorrência de situações violentas, pressões sociais e racismos que podem estar associados a práticas suicidas, envolvendo alguns ou muitos indivíduos de uma mesma localidade e ao mesmo tempo. Na tabela a seguir, pode-se ver a evolução de casos nos diversos estados da federação brasileira. O caso mais agudo refere-se ao povo Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul que, no espaço de 19 anos, apresenta uma média aproximada de 45 ocorrências por ano. Em seguida, há o estado do Amazonas, cujos casos afetam os povos Ticuna, do Alto Solimões, e os moradores de São Gabriel da Cachoeira, cidade que abriga 95% de população indígena, envolvendo os povos do Alto Rio Negro. Nota-se que, ao longo dos anos, há alguns episódios significativos, como os 11 casos em 2006; no entanto, a incidência de casos a partir de 2014 revela uma situação recrudescente. Também em Roraima, há casos expressivos a partir de 2014. No Tocantins e no Paraná, foram registrados casos em anos recentes, e o fenômeno se torna presente no Acre, no Maranhão, no Ceará, no Mato Grosso, além de registros feitos em Pernambuco, Minas Gerais e casos pontuais em Alagoas, Bahia, Goiás e Rondônia. A observação que deve ser feita é a de que, possivelmente, exista uma subnotificação de ocorrências tanto por parte dos órgãos de saúde, quanto pelas equipes do CIMI que atuam nas áreas indígenas.

Além disso, o que foi reunido na tabela a seguir omitiu alguns dados importantes, tais como a sequência de atos entre os Karajá da Ilha do Bananal, que entre 2010 e 2016 cometeram 42 suicídios por enforcamento, em um total de 95 tentativas. Em 2010/2011, há um primeiro enforcamento, de um jovem recém-casado que, ao que tudo indica, comete o ato por estar infeliz, sentindo-se muito pressionado por ter de cumprir as obrigações de genro (ir morar na casa da sogra e trabalhar para o sogro). A prescrição determina que, se o noivo falhar em seu compromisso, será espancado por seus cunhados e sua família sofrerá muita humilhação. Este jovem noivo recorre ao suicídio para escapar da situação e, assim, livra sua família da humilhação. Ele inova na técnica e se enforca. Logo em seguida, seu melhor amigo faz o mesmo e daí se seguem muitos casos de enforcamento, como em um efeito dominó.

Alguns aspectos gerais nesse caso chamam atenção, pois a maior parte dos atos é cometida por jovens entre 14 e 29 anos. A maior parte são rapazes solteiros ou recém-casados, embora nos últimos anos haja um aumento de vítimas do sexo feminino. Para Otoniel Guarani-Kaiowá, o motivo de tantos jovens cometerem suicídio é a falta de perspectiva: “não têm futuro, não têm respeito, não têm trabalho e nem terra para plantar e viver. Escolhem morrer porque, na verdade, já estão mortos por dentro” (Conselho Indigenista Missionário, 2013, p. 79). Talvez isso possa ser verdade para um determinado contexto, porém, nem sempre há falta de terras de forma tão brutal quanto no Mato grosso do Sul, afinal, a opressão atinge as comunidades de diversas maneiras.

Há uma reserva, uma atitude reticente de muitas lideranças e membros das comunidades indígenas em falar desse assunto abertamente. Por um lado, há a ponderação de que, ao falar demais, pode haver risco de disseminação da ideia e influenciar as pessoas. Por outro lado, parece haver uma reserva religiosa que não é muito bem explicitada. Do mesmo modo, a explicação sobre as razões das ocorrências recai principalmente sobre a feitiçaria, o poder do feitiço que encarna as pessoas e as levam a cometer o ato extremo.

As análises a respeito da situação em Mato Grosso do Sul apontam para o cenário de genocídio que afeta os povos que vivem nessa região: são os Guarani e Kaiowá, os Terena, os Kinikinao e os Kadiwéu. Entretanto, é sobre o povo Guarani e Kaiowá que recai a maior tragédia: população confinada em territórios exíguos, cujas consequências maiores são os conflitos internos, as desavenças familiares, os comportamentos violentos devido ao alto consumo de bebidas alcoólicas, o envolvimento com o mundo das drogas, estupros, roubos. Das 31 terras reconhecidas pelo Estado brasileiro, os Guarani-Kaiowá e Ñhandeva estão em posse de apenas 29,04% delas. Com uma população de 54.658 pessoas, segundo a Funai, as comunidades ocupam 70.370 dos 242.370 hectares reconhecidos oficialmente como territórios tradicionais. Tem-se, desse modo, que a ocupação de terras para esse povo representa 1,2 hectares por pessoa. Isso significa mais do que limites estreitos para viver. Certa vez, em um acampamento de beira de estrada, o senhor Hamilton Lopes, já falecido, afirmou: “o que faz um homem sem terra para plantar? Bebe”.

A falta de terra é a própria impossibilidade de reprodução da vida. Um homem Guarani (Kaiowá, Ñdeva, Mbya) torna-se adulto quando faz um roçado para oferecer à mulher com quem vai se casar, como parte final do ritual de iniciação. A dificuldade em tornar-se adulto levou os jovens a irem trabalhar no corte de cana; muitos deles falsificavam o documento para comprovar que estavam em idade de trabalhar. Assim, tornavam-se homens: passavam a semana no corte de cana, ganhavam um dinheiro, e antes de chegar a casa, consumiam o dinheiro em forma de pinga, como faziam todos os adultos.

Segundo o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Mato Grosso do Sul, nos últimos 13 anos, cerca de 611 indígenas suicidaram-se, isto é, 1 a cada 7,7 dias. O que está em causa nessa quantidade absurda de enforcamentos e envenenamentos? A falta de acesso aos territórios tradicionais gera a impossibilidade de vivência plena dos usos e costumes, conforme garante a Constituição Federal de 1988; gera também números assustadores de violência física, ataques a comunidades que tentam retomar suas aldeias e um número muito alto de assassinatos. Em menos de um ano, entre 2015 e 2016, foram registrados 33 ataques de natureza paramilitar contra comunidades Guarani e Kaiowá. Entre 2001 e 2018, foram assassinados 14 líderes indígenas em represália às tentativas de retomar pacificamente terras já reconhecidas pelo Estado. Esse é o contexto mais violento em território brasileiro; se acrescentarmos os números da mortalidade na infância (de 0 a 5 anos), da subnutrição, dos maus-tratos e do racismo, teremos um contexto no qual a quantidade de suicídios de jovens está ancorada.

Lucia Helena Rangel lucia.rangel@uol.com.br

Professora doutora do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil; pesquisadora no campo da etnologia indígena; assessora antropológica do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Brasil.