Introdução
O ano de dois mil e vinte será inevitavelmente lembrado por dados estatísticos que traduzem a violenta ascensão do COVID-19, resultando em centenas de milhares de mortos pelo país e pelo mundo. Até o presente momento, mais de duzentas e trinta mil vidas foram ceifadas pelo vírus no Brasil, gerando um cenário de medo e incertezas sobre o que nos aguarda num momento futuro.
No final de dezembro de 2019, um novo tipo de pneumonia – Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) – foi identificada, causada pelo vírus Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2, Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2) (Huang et al., 2020; Li et al., 2020; Wang et al., 2020b; Wu et al., 2020 citados por Zanon et al., 2020). Devido à sua rápida propagação, vários países adotaram o isolamento social como medida para reduzir a dispersão do vírus, o que envolveu mudanças na rotina e perda de liberdade dos indivíduos. Evidências recentes indicam impactos psicológicos devido à determinação do isolamento social como medida de contenção a epidemias (Desclauxet al., 2017; Jeong et al., 2016, Wang et al., 2020a citados por Zanon et al., 2020).
Há quem possa contribuir com o apelo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e permanecer em suas casas em regime de quarentena, evitando ao máximo que o vírus se alastre ainda mais. No entanto, uma parcela considerável da população brasileira se faz presente na linha de frente dos serviços essenciais e de outros tipos de serviços que exigiram a volta ao trabalho, muitas vezes pelo peso da dificuldade financeira. Além disso, a imprudência observada em vários pontos do país (praias lotadas, festas clandestinas, entre outros) demonstram o descaso por uma parcela da população que menospreza a gravidade sanitária que o mundo inteiro vem enfrentando.
O fato é que, confinados ou não, nossa rotina e hábitos diários têm sido alterados ao longo desse ano que se arrasta, numa mistura de tentativa em seguirmos com nossas obrigações (mesmo que remotamente, através das reuniões e atividades online) e mantermos corpo e mente sãos. Tarefa árdua, tendo em vista que a pandemia, além de agravar a crise global, preocupa os estudiosos em relação à saúde mental.
O objetivo desse artigo consiste em uma experimentação no campo interdisciplinar entre Arquitetura e Psicologia a partir de uma discussão sobre a influência da iluminação e da qualidade do lugar nas emoções de jovens que vêm enfrentando a rotina de confinamento.
As emoções humanas e o cenário pandêmico
A emoção é uma das experiências mais marcantes do ser humano. É uma construção neuropsicológica na qual interagem diversos e complexos componentes cognitivos, fisiológicos e subjetivos (Freitas-Magalhães, 2013). Ainda de acordo com Freitas- Magalhães (2013), a emoção é um estado complexo de sentimento que inclui experiência consciente, respostas internas e explícitas e energia para motivar o organismo para determinada ação. Desse modo, o autor conclui que a emoção constitui a fonte primária da motivação do homem.
O termo também é definido como uma condição complexa e momentânea que surge em experiências de caráter afetivo, provocando alterações em várias áreas do funcionamento psicológico e fisiológico, preparando o indivíduo para a ação (Atkinson, 2005; Atkinson, Smith, Bem & Nolen – Hoeksema, 2002; Davis & Labg, 2003; Frijda, 2008; Gazzaniga & Heatherton, 2005; Levenson, 1999 citados por Miguel, 2015).
Smirnov (1969) afirma que a maneira de reagir do homem ante as coisas, os acontecimentos e as pessoas são definidos por emoções e sentimentos. De acordo com o autor, tais emoções e sentimentos consistem numa atitude subjetiva de sentir do homem que se origina a partir da realidade objetiva, das relações estabelecidas na realidade objetiva com outros homens. Smirnov (1969) diferencia emoções e sentimentos do seguinte modo: enquanto as emoções correspondem mais à satisfação de necessidades orgânicas e estão relacionadas com sensações, os sentimentos, por sua vez, correspondem a necessidades culturais e espirituais, as quais dependem das condições de vida do homem e de suas relações e necessidades de um ser social. Além de possuir um caráter histórico, as emoções e os sentimentos estão estritamente relacionadas com o modo de viver da sociedade, da classe social a qual o indivíduo pertence e de sua educação.
Estudos recentes na fase inicial da pandemia na China mostraram que 13,8% dos entrevistados manifestaram sintomas depressivos leves, 12,2% apresentaram sintomas moderados e 4,3% sintomas graves de depressão (Informe, 2020).
De acordo com Moretti, Guedes-Neta e Batista (2020), a nova configuração da nossa experiência de vida no cenário de pandemia, com o silêncio do mundo externo, trouxe à tona nossos ruídos internos e, juntamente a eles, todo o nosso falatório mental que passa a emergir com grande ênfase. Isso porque a ruptura das conexões sociais e físicas impactam diretamente em efeitos psicológicos negativos (Centers for Disease Control and Prevention, 2020).
Shigemura et al. (2020) afirmam que o medo gerado por um cenário de pandemia é capaz de aumentar os níveis de ansiedade e estresse de indivíduos considerados saudáveis, além de intensificar os sintomas daquelas pessoas que possuem transtornos psiquiátricos pré-existentes. De acordo com Garcia (2017) e Shin e Liberzon (2010), para entender as repercussões psicológicas e psiquiátricas de uma pandemia, as emoções envolvidas devem ser consideradas e observadas: o medo é um mecanismo de defesa fundamental para a sobrevivência animal, que engloba diversos processos biológicos de reparação para uma resposta a eventos potencialmente ameaçadores. Quando crônico e desproporcional, pode ser um componente essencial no desenvolvimento de vários transtornos psiquiátricos.
Reis (2020) descreve essa nova realidade do mundo pandêmico: se, por um lado, a velocidade do contato virtual com os outros, sejam eles pessoas, sejam objetos ou símbolos transmite intensidade; por outro, a paralisia do confinamento produz desalento. O autor ainda ressalta que a sensação de velocidade deixou de ser uma característica do corpo em movimento e passou para os ecrãs da televisão e dos monitores do smartphone e do computador. Ou seja, a velocidade das pernas deslocou-se para a ansiedade óculo-manual dos teclados.
Em revisão recente sobre pesquisas que avaliam o estado psicológico de pesquisados em quadros de quarentena ao longo de epidemias prévias, Brooks e Smith (1987) verificaram efeitos psicológicos negativos e alguns principais fatores de estresse, tais como: o medo da infecção; sentimento de frustração; aborrecimento; informação inadequada sobre a doença e seus cuidados; perdas financeiras; estigma da doença. Indivíduos com transtornos mentais tendem a apresentar níveis mais elevados de estresse e sofrimento psicológico ao longo da quarentena provocada pela COVID-19 ao compará-las a pessoas sem esses transtornos, fato que se deve à dificuldade de acesso a tratamentos, por exemplo (Iasevoli et al. 2020; Shigemura, 2020 citados por Barros et al. 2020).
Um certo grau de medo, ansiedade e preocupação se faz importante no cenário pandêmico, pois nos auxilia na ativação do sistema de alerta diante dos riscos que o vírus coloca para a preservação de nossas próprias vidas e de nossos familiares. Todas essas emoções, tanto positivas quanto negativas (compaixão, piedade, empatia, medo, preocupação), cumprem uma tarefa importante, pois capacitam as pessoas a perceberem ameaças, precauções e os contornos morais da crise da COVID-19. Uma vez com a ausência dessas emoções, não seríamos capazes de enxergar e avaliar toda essa situação global (Estado da Arte, 2021).
Em relação à infância e juventude, Gastaud et al. (2020) apontam as diversas manifestações de sofrimento das crianças ao longo desse período, a depender de fatores como recursos sociais, psicológicos e financeiros de cada família. Os autores enfatizam que o confinamento doméstico pode trazer riscos ao desenvolvimento psicológico, visual, neurológico social e pedagógico às crianças e jovens. Os efeitos indiretos da COVID-19 na criança e no adolescente podem ser ainda maiores que o número de mortes causadas pelo vírus de forma direta. Isso porque o impacto da pandemia tem efeitos indiretos, tais como: prejuízos no ensino, socialização e desenvolvimento; afastamento do convívio familiar ampliado, com amigos e redes de apoio; o estresse e sua toxicidade, aumentando sintomas de depressão e ansiedade; exagero no uso de mídias/ telas, tais como televisão, computadores, tablets e smartphones; perdas nas receitas familiares e aumento da fome e do risco alimentar em parte pelo fechamento das escolas e creches; dentre outros (Meirelles et al., 2020).
Jiao et al. (2020) e Órgiles et al. (2020) realizaram pesquisas a partir de questionários online com pais de crianças e adolescentes a respeito de mudanças de comportamento e observância das emoções de seus filhos ao longo da pandemia. Como resultados obtidos, foram revelados os seguintes sintomas e condições: dependência excessiva dos pais; desatenção; irritabilidade; medo de adoecimento de familiares; insônia; desconforto e agitação; tédio; sentimentos de solidão e preocupações.
Desse modo, os contextos familiares e ambientais estão intrinsecamente relacionados aos sintomas infanto-juvenis, uma vez que as privações sociais e a redução de atividades ao ar livre vêm influenciando diretamente a saúde mental de crianças e adolescentes, como uma experiência traumática (Bronfenbrenner, 1996; Huang et al., 2020).
Investigar o impacto da pandemia e as consequências de um ano inteiro de confinamento, em especial no universo da juventude1, faz-se prudente, uma vez que é
nesse período da vida que o indivíduo firma a imagem que ele tem de si mesmo diante dos outros, ocorrendo a construção de sua identidade.
Entende-se por identidade a concepção de si mesmo, composta de valores, crenças e metas com os quais o indivíduo está solidamente comprometido (Erikson, 1972). De acordo com o autor, a construção da identidade implica definir quem a pessoa é, quais são seus valores e quais as direções que se deseja seguir pela vida. A construção da identidade é influenciada por fatores intrapessoais (as capacidades do indivíduo e demais características advindas de sua personalidade), de fatores interpessoais (identificações com outras pessoas) e de fatores culturais (valores sociais, seja eles de ordem global ou comunitária).
O sentimento de identidade pessoal pode ser dado de duas formas: percebendo-se como sendo o mesmo e contínuo no tempo e no espaço; percebendo que os outros reconhecem essa semelhança e continuidade (Schoen-Ferreira, 2003). Para Kimmel e Weiner (1998), quanto mais desenvolvido o sentimento de identidade, mais o indivíduo valoriza o modo em que é parecido ou diferente dos demais ao seu redor. Além disso, ele reconhece suas limitações e habilidades mais claramente. Do contrário, quanto menos desenvolvida a identidade, mais o indivíduo necessita do apoio de opiniões externas para se auto avaliar e compreende menos as pessoas como distintas.
De acordo com Marcia (1966), existem duas dimensões essenciais na formação de identidade: uma crise (ou exploração) e um comprometimento (ou compromisso). A primeira dimensão pode ser explicada como o período de tomada de decisão, em que antigos valores e escolhas são reexaminados, podendo ser de forma tumultuada ou ocorrer gradualmente. Já na segunda dimensão, a autora supõe que o indivíduo tenha realizado uma escolha relativamente firme, que irá servir de base ou guia para sua ação. O resultado esperado da dimensão da crise/exploração seria o comprometimento com algum papel específico, alguma determinada ideologia, enquanto que a dimensão do comprometimento/compromisso corresponde às questões que o indivíduo mais valoriza e com as quais mais se preocupa, refletindo o sentimento de identidade pessoal.
Em seu trabalho, Marcia (1966) propôs quatro estados de identidade: execução (onde o indivíduo persegue metas ideológicas e profissionais eleitas por outros e não experimenta nenhuma crise de identidade); moratória (quando os comprometimentos são postergados e o jovem passa por uma crise de identidade, uma vez que não definiu suas escolhas e se debate constantemente com temas profissionais ou ideológicos); difusão (quando o indivíduo não se encontra nem em meio a uma crise nem a um comprometimento de fato) e construção (quando o jovem faz suas escolhas e persegue metas profissionais ou ideológicas).
O estado de construção de identidade juntamente com o de moratória são considerados os mais elevados no processo de desenvolvimento da identidade pessoal, pois são considerados autoconstruídos (Marcia, 1966). Logo, quando esse processo sofre algum tipo de perturbação, como a rotina inteiramente modificada nesses tempos pandêmicos, é possível que o senso de identidade do jovem seja comprometido, alterando todo o restante de sua vida.
Em recente pesquisa realizada com jovens entre 15 a 29 anos, Possa et al. (2020) apontam o impacto gerado pelo Coronavírus no cotidiano e nas emoções desses indivíduos. O estudo consistiu em 48 perguntas distribuídas em blocos temáticos: informação; hábitos; educação e aprendizado; economia; emprego e renda; saúde e bem-estar; contexto e expectativas; perfil socioeconômico. Dentre os resultados obtidos, destaca-se os efeitos negativos na condição física e emocional dos jovens devido ao isolamento social. Fatores como relacionamentos, alimentação, qualidade do sono, atividades de lazer e cultura, condicionamento físico, estado emocional e recurso financeiro foram prejudicados. Por um lado, o estudo apontou como sentimentos negativos mais comuns durante o isolamento a ansiedade, o tédio e a impaciência; por outro lado, o acolhimento foi o sentimento positivo mais presente durante o período da pesquisa.