Na adolescência, identifica-se uma maior probabilidade de envolvimento em atos infracionais (Cauffman et al., 2016), associada aos processos de mudanças neurobiológicas (Sharma et al., 2013; Komatsu et al., 2018) e sociais (Kazemian et al., 2019) desta fase que se expressam pela impulsividade, busca por estimulação, falta de orientação para o futuro e suscetibilidade à influência dos pares (Sweeten; Piquero; Steinberg, 2013). Os estudos com adolescentes em conflito com a lei comumente abordam as condutas do espectro antissocial, que compreendem as atividades ilegais e as desviantes, como consumo de substâncias, envolvimento em brigas, rebelião familiar/escolar e absenteísmo escolar (Kazemian et al., 2019).
Moffitt (2018), em sua taxonomia do desenvolvimento da conduta antissocial, apresenta que cerca de 90% dos jovens com idades entre 15 e 19 anos cometem atos desta natureza de forma pontual, constituindo um grupo cuja trajetória infracional é conceitualmente denominada circunscrita à adolescência, pois declina naturalmente na passagem para a vida adulta (Moffit, 2018). Em inglês, esse grupo recebe o nome de adolescence limited (AL), e sua trajetória pode ser em parte explicada pelas próprias mudanças desenvolvimentais. Considerando-se a mesma faixa etária, há um grupo menor, cuja trajetória não apresenta declínio natural. Segundo Moffitt (2018), ela é conceitualmente denominada persistente – traduzido do inglês Life Course Persistent (LCP) – e, para além das mudanças desenvolvimentais associadas à idade, somam-se fatores de risco que aumentam as chances de o adolescente cometer delitos. Contudo, esses fatores são suscetíveis a mudanças, o que pode favorecer o declínio da trajetória de conduta delituosa (Asscher et al., 2016).
Evidências como essas endossam as normativas que regulamentam os sistemas de justiça juvenil (Brasil, 2006; Regras de Beijing, 1985), segundo os quais a sanção que resulta de um ato infracional deve ter caráter prioritariamente socioeducativo, com vistas à redução de risco da reincidência ou de persistência na prática infracional (Cauffman et al., 2016). Estas sanções, em termos legais, são aplicadas a indivíduos adolescentes (com idades entre os 12 e 18 anos incompletos), de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/1990). Contudo, no sistema socioeducativo, há a aplicação da excepcionalidade, que abrange os indivíduos de até 21 anos, na execução da Medida Socioeducativa (MSE).
Este grupo com idades entre 18 e 21 anos já é considerado constituído por jovens de acordo com o Estatuto da Juventude, que entende o jovem como um indivíduo entre seus 15 e 29 anos de idade (Lei nº 12.852/2013), bem como pela Organização Pan-Americana da Saúde, Organização Mundial da Saúde (OPS/OMS) (que considera a faixa dos 15 aos 24 anos de idade), sendo esse jovem, por definição, entendido como a pessoa que se encontra em transição da adolescência para o mundo adulto (Silva; Silva, 2011). O presente artigo transita pelos conceitos de adolescência e juventude, visto que o fenômeno da delinquência juvenil permeia, do ponto de vista legal, períodos de ambas as faixas etárias.
No âmbito da intervenção junto a adolescentes judicializados, o modelo de intervenção Risk-Need-Responsivity (RNR) é muito pertinente para planejar ações voltadas à diminuição do risco de reincidência do adolescente (Barnao; Ward, 2015; Polaschek, 2012). Neste modelo, as intervenções consideram os riscos e as necessidades do adolescente, de forma responsiva às suas características (Bonta; Wormith, 2013; Bourgon; Bonta, 2014; Asscher et al., 2016). Alinhado a esse modelo, Hillege et al. (2018) apresentou que Características Pessoais, ao lado de Problemas de Saúde Mental, foram considerados os domínios mais relevantes1 no planejamento de intervenções socioeducativas, de acordo com psicólogos, psiquiatras e psicoterapeutas experientes do âmbito forense.
Sobre os Problemas de Saúde Mental, há evidências de que, nesse aspecto, os adolescentes judicializados têm necessidades específicas que precisam ser atendidas. No estudo de Anoshiravani et al. (2015), nos EUA, os problemas de saúde mental foram a principal causa de hospitalização para os adolescentes judicializados (63%), enquanto que, na amostra da população, as causas principais eram de condições crônicas (43%), e as de saúde mental apresentaram um percentual de 20%.
No Brasil, não se tem um estudo equivalente, mas há investigações que apresentam evidências relevantes para a compreensão dessa problemática. A avaliação de saúde mental não é uma prática em alguns centros de internação e, nestes casos, toma-se conhecimento de que um adolescente possui um transtorno de saúde mental apenas quando apresenta sintomas (como insônia, dependência de drogas, ideação suicida, automutilação e humor deprimido). Ao final, a resposta a essa demanda, de natureza tão complexa, se reduz à medicalização (Vilarins, 2014). A este respeito, Costa e Silva (2017) apresentam que a atribuição de diagnósticos para muitos adolescentes implica também o uso mais amplo da medicalização. Nestes casos, são recorrentes a atribuição de diagnósticos controversos, como o de transtorno de adaptação, que pode se confundir com manifestações decorrentes da própria internação. O transtorno de conduta, por sua vez, recai sobre uma definição redundante dos próprios motivos que levam à judicialização, uma vez que é atribuído a jovens com dificuldade de corresponder às regras sociais (Costa; Silva, 2017).
A dificuldade no manejo de casos clínicos de adolescentes judicializados pode ser atribuída à falta de articulação entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018). De acordo com o Sinase, é previsto que o sistema de justiça juvenil proporcione os devidos cuidados em saúde para os adolescentes judicializados (Pearson et al., 2017). O atendimento em saúde mental deve ser realizado prioritariamente na rede de saúde externa (Vilarins, 2014), mas isso pouco ocorre por problemas de falta de transporte. Quando o adolescente termina o cumprimento de medida, ainda, os profissionais relatam a incerteza da continuidade do tratamento após a desinternação (Pearson et al., 2017; Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018).
À parte destes problemas de natureza institucional, há poucas pessoas especializadas e pouca supervisão da equipe (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018), o que pode prejudicar a qualidade do atendimento oferecido aos adolescentes judicializados, dada a complexidade requerida no planejamento do tratamento, sobretudo daqueles com necessidades em saúde mental. Uma metanálise de 30 artigos sobre o tema realizada por Reising et al. (2019) mostra que diferentes perfis de adolescentes que cometem delitos apresentam diferentes problemas de saúde mental, o que aumenta o desafio na compreensão dos fenômenos. Nesse sentido, considera-se que adotar abordagens desenvolvimentais para entender o problema pode ajudar a visualizar as necessidades desses jovens e detectar precocemente os problemas (Livanou et al., 2019).
De acordo com o que foi apresentado, faz-se importante entender que tipos de estudos sobre a temática de saúde mental em adolescentes judicializados têm sido realizados, e identificar suas contribuições para nortear pesquisas e intervenções de acordo com seus resultados e lacunas apontadas. Assim, a presente revisão de literatura teve o intuito de identificar quais são os objetivos dos estudos mais recentes sobre saúde mental e delinquência em adolescentes, apreendendo os resultados mais relevantes – e realizando análises descritivas e comparativas –, a fim de auxiliar futuros estudos no contexto brasileiro.
Método
O levantamento bibliográfico foi realizado na base de dados internacional e multidisciplinar Web Of Science, em outubro de 2019, com o emprego dos seguintes descritores: (mental health) AND (offense* OR offender* OR delinquen*) AND (juvenile* OR adolescent* OR young* OR youth*). A busca foi realizada nos campos título, resumo e palavras-chave, optando-se por selecionar apenas artigos publicados entre 2015 e 2019, em língua inglesa, idioma dominante na comunidade científica. Com isso, pretendia-se alcançar estudos de diferentes nacionalidades com uma única busca.
As palavras-chave foram escolhidas de acordo com a literatura existente e visando pesquisas que respondessem aos seguintes critérios de inclusão: (1) estudos com participantes adolescentes ou jovens adultos; (2) estudos conduzidos com adolescentes judicializados ou com amostras da população, conquanto que se investigassem o cometimento de delitos; (3) estudos sobre prevalência de transtornos de saúde mental, variáveis associadas e de associação entre variáveis referentes à saúde mental e delinquência, com relação uni ou bidirecional e (4) estudos empíricos.
As publicações obtidas foram selecionadas a partir da leitura dos títulos e resumos, sob os seguintes critérios de exclusão: (1) estudos com populações específicas (adolescentes detidos por delitos sexuais, que são exclusivamente usuários de substâncias, em situação de rua, ou não judicializados com problema de saúde mental); (2) estudos de intervenção em saúde mental no contexto do sistema de justiça juvenil e (3) estudos referentes à tomada de decisão judicial.
A revisão inicial levantou 739 artigos. Destes, selecionou-se 52 artigos, fazendo uso de critérios de pertinência da temática através da apreciação do título e eventualmente do resumo. Na sequência, os artigos restantes foram lidos integralmente e seus conteúdos foram sintetizados em uma tabela contendo as seguintes informações: ano de publicação; nomes dos autores; país em que a pesquisa foi realizada; desenho do estudo; número amostral; características da amostra; medidas (instrumentos utilizados) e resultantes mais relevantes. Nesta etapa, mais 10 artigos foram excluídos porque se verificou que eles não se inseriram adequadamente nos critérios de inclusão do estudo.
Após aplicados os critérios descritos, um total de 42 artigos científicos foi revisado. Os dados dos estudos selecionados foram transpostos para um banco de dados, sintetizando as seguintes informações: ano de publicação; nomes dos autores; país em que a pesquisa foi realizada; desenho do estudo; número amostral; características da amostra; medidas (instrumentos utilizados) e resultados mais relevantes. Dessa forma, o material estudado passou por um processo de categorização e agrupamento de acordo com os objetivos gerais dos estudos, de forma que fosse possível caracterizar e comparar os principais resultados. A partir dos objetivos gerais de cada um, fez-se uma divisão em três categorias a fim de compilar as temáticas mais semelhantes.