De 2006 a 2014, em nome da guerra contra o crime organizado, 45 mil pessoas foram mortas no México, a imensa maioria das vítimas sendo jovens do sexo masculino. No Uruguai, para um adulto pobre, existem sete a oito crianças ou jovens pobres, os primeiros a serem afetados nas crises econômicas nacionais e internacionais, e os últimos a se beneficiarem em caso de fortalecimento econômico. Essa situação estrutural de desigualdade econômica, social e cultural de crianças e jovens é abordada nesta edição da DESIDADES sob o prisma da responsabilidade do Estado que, como um terceiro, deve supostamente regular e fiscalizar para que este grupo geracional não seja vitimizado por graves opressões e injustiças. Lamentavelmente, nem sempre isto ocorre, e na América Latina abundam exemplos de descaso estatal, negligência e cinismo que tem conduzido à dizimação de parcelas da população jovem e infantil .
No artigo que se intitula, “Foi o Estado: o caso dos jovens desaparecidos de Ayotzinapa e a crise política no México”, do pesquisador mexicano Rogelio Marcial, se analisa a implicação direta e estarrecedora do Estado mexicano no desaparecimento de 43 jovens normalistas rurais, do sexo masculino, que se dirigiam de sua cidade natal, Ayotzinapa, rumo à Cidade do México, capital, para participar de uma passeata. A brutalidade destes acontecimentos ganhou destaque nos meios de comunicação, dentro e fora do México, desde o final do ano passado frente à mobilização dos pais e familiares destes jovens, e de inúmeros setores da sociedade mexicana. “Foi o Estado” indica o contexto de afundamento da crise política, mas também psíquica e moral, no México onde a vida de jovens se torna o que há de mais descartável e sem importância frente a um Estado decadente movido pelo poder de grupos políticos financiados pelo narcotráfico. Esta situação encontra ressonâncias nos diversos países latino-americanos. As conclusões do autor são intrigantes, e nos fazem pensar sobre como redemocratizar a democracia a partir de situações específicas, como essas que atingem de forma brutal jovens e crianças.
Na seção Espaço Aberto, trazemos a entrevista “O Uruguai e a redução da maioridade penal: o fracasso eleitoral do punitivismo”, conduzida pela professora Adriana Molas com o diretor do Instituto de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade da República, no Uruguai, Professor Luis Eduardo Morás. A entrevista aprofunda a discussão sobre o rebaixamento da idade penal no Uruguai, questão que foi objeto de um plebiscito recente de mudança constitucional para a redução da maioridade penal naquele país. Morás analisa com argúcia os vários aspectos relevantes desta situação: a desafiliação simbólica de muitos jovens que não são sujeitos de direitos mínimos de educação e saúde, tal como prescrevem as leis, e que são impelidos a uma situação de deriva social; a insegurança pública como uma das mais relevantes demandas da sociedade e como ela encontra a solução fácil de culpabilização dos jovens pobres; a omissão do Estado cujos serviços de sócio-educação não conseguem reverter a situação inicial de iniquidade e injustiça dos jovens pobres; a mistificação da questão da segurança que é superdimensionada pelos meios de comunicação e desfigurada por uma análise enviesada e preconceituosa. Enfim, a entrevista nos traz uma análise política da sociedade uruguaia, do poder estatal e das lutas entre os diversos setores sociais cujos projetos de país e sociedade se antagonizam. O plebiscito, nas palavras de Morás, configurou “uma batalha cultural, ao promover uma visão sobre a origem dos problemas da violência e dos diversos mal-estares existentes, atribuindo responsabilidades específicas e se alimentando da extensão do medo para promover como única resposta possível o aprofundamento da punitividade.” No entanto, como o plebiscito não aprovou a redução da maioridade penal, se fissurou a hegemonia em torno da repressão como saída privilegiada para a solução de problemas de segurança e se abriu a perspectiva em torno de se evitar retrocessos no campo das garantias legais para jovens e crianças.
O interessante artigo “O lúdico em questão: brinquedos e brincadeiras indígenas”, de Rita de Cássia Domingues-Lopes, Assis da Costa Oliveira e Jane Felipe Beltrão, professores e pesquisadores da Universidade Federal do Tocantins e Universidade Federal do Pará, nos brinda com a perspectiva antropológica do se fazer criança no contexto cultural indígena onde a brincadeira se desenrola, não exatamente propiciada pela interrupção da rotina, mas, ao contrário, ao longo das próprias atividades rotineiras. Os autores problematizam a universalidade dos modelos de socialização humana que levam à invisibilidade de outras formas de se fazer criança frente a práticas e saberes sobre a criança, da criança e que resultam, segundo os autores, no “saber tornar-se criança”. A brincadeira nas sociedades indígenas realiza o próprio processo de tornar-se pessoa ensejando a experimentação dos lugares sociais e suas identidades relacionais apoiada pelos valores, interesses e finalidades culturais. Os autores apontam que a discussão sobre as brincadeiras nas sociedades indígenas leva a uma desconstrução de normas e ideais sobre modos de vida e conceitos de pessoa: ao tensionar tais modelos normativos o “outro lúdico” pode ensejar uma simbolização democrática, segundo os autores, evidenciando a pluralidade no âmbito da igualdade humana.
Na seção das Informações Bibliográficas, trazemos duas resenhas. Bárbara Zapata é a autora da resenha do livro “La custodia de los hijos en las parejas separadas: conflitos privados y obligaciones públicas” (A custodia dos filhos de casais separados: conflitos privados e obrigações públicas), de Yolanda López Diaz. Discursos de ordens diversas tecem uma emaranhada teia por onde pais, filhos e o estado proveem, disputam ou se omitem das funções de proteção e educação das crianças. Na resenha de Maria Florencia Gentile, sobre o livro de Rodolfo Garcia Silva, “Los chicos en la calle: llegar, vivir y salir de la intemperie urbana” (As crianças na rua: chegar, viver e sair da intempérie urbana), há um resgate da experiência na, e da rua vivida por estas crianças: daí, a importância de dar substância e legitimidade a uma experiência que é frequentemente considerada “fora do lugar”. Assim, segundo a autora, o livro de Rodolfo Garcia apresenta um cenário complexo das trajetórias, sentimentos e ações de meninos e meninas na rua que colocam dilemas morais para essas crianças, como também para aqueles que estão incumbidos de cuidar deles em programas e serviços públicos de assistência social.
Finalmente, como parte da agenda programática da DESIDADES, trazemos para os leitores e leitoras as novidades em publicações sobre infância e juventude na América Latina neste primeiro trimestre de 2015. Cremos que o levantamento bibliográfico contribui para que o conhecimento sobre e da infância e juventude circule, ganhe leitores e adense a discussão sobre as questões que afetam jovens e crianças latino-americanas.
Lucia Rabello de Castro
Editora Chefe