Existe um sentimento generalizado de verdadeiro horror a qualquer coisa que conecte sexualmente o adulto à criança. Trata-se de uma repulsa entendida como ‘natural’, portanto, inquestionável. No entanto, como ensina a antropologia, as diferenças ‘naturais’ são construções culturais e históricas. Dizer que a idade não é um dado da natureza não quer dizer que ela não tenha efetividade, uma vez que serve de instrumento fundamental de ordenação social no chamado mundo ocidental moderno, assim como as diferenças entre os sexos, por exemplo. Nos termos de Bourdieu (1983, p. 112), “as classificações por idade (mas também por sexo, ou, é claro, por classe) acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde cada um deve se manter […] em seu lugar”.
Vale notar que foi somente no século XVIII que a inscrição da data de nascimento passou a ser mantida com maior precisão e de modo mais sistemático nos registros paroquiais e, segundo Ariès (1981, p. 30), “a importância pessoal da noção de idade deve ter-se afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos, começando pelas camadas mais instruídas da sociedade”. Tal hipótese indica que o lugar crucial que a idade cronológica assume na ordenação da vida social das sociedades ocidentais modernas está relacionado a um processo de regulamentação estatal do curso da vida, que tem como suporte formas de registro baseadas em um sistema de datação.
É evidente que as fronteiras cronológicas constituem parâmetros instáveis e incertos de delimitação das classes de idade ao longo da história dessas sociedades, uma vez que estão sendo constantemente questionadas, negociadas e redefinidas. No entanto, enquanto modelo lógico de ordenação, a ‘cronologização da vida’ estabilizou – se como um dos principais mecanismos de atribuição de status, definição de papéis e formulação de demandas sociais (Debert, 1998).
O propósito deste artigo consiste, então, em evitar uma leitura naturalizada sobre relações que passaram a ser um dos mais importantes focos de atenção, horror e regulação na sociedade ocidental contemporânea: a relação sexual entre adultos e crianças. Por isso, ao invés de tratá-la nesses termos tão essencializados, proponho problematizá-la a partir da noção de ‘menoridade sexual’, de modo que os termos ‘adulto’ e ‘criança’ sejam pensados como categorias sociais e relacionais que são manipuladas e articuladas a outras categorias para construir uma avaliação moral e/ou legal de uma determinada conduta. A categoria ‘adolescente’ aparece, por sua vez, como elemento que borra as fronteiras entre esses dois polos, servindo de suporte privilegiado em situações de conflito ou ‘negociação da realidade’, nos termos de Velho (1999).
Meu questionamento leva-me, assim, a investigar o modo como o desenvolvimento da sexualidade e da racionalidade no curso da vida de uma pessoa é socialmente e culturalmente organizado; a analisar como a idade enquanto categoria diferenciadora orienta as relações sexuais e, principalmente; a atentar para os processos pelos quais se constituem ou se privilegiam as classes de idade, inter-relacionadas (nem sempre de modo tão explícito) a outras categorias (gênero, classe, status etc.), para a regulação e a condenação de certas modalidades de relações sexuais.
No contexto social e político atual, com o enfraquecimento da credibilidade em outros poderes de Estado, o Judiciário fortaleceu-se enquanto peça administrativa e, com isso, as leis e os discursos de aquisição e proteção de direitos ganharam uma nova centralidade política (Schuch, 2005). No que se refere aos direitos relativos à sexualidade, apesar de as leis não determinarem as condutas individuais, segundo Waites (2005), elas desempenham um papel significativo, ainda que limitado, na constituição de normas sociais para o julgamento moral do comportamento sexual na sociedade e, principalmente, facilitam a intervenção de agências estatais em casos particulares.
Por isso, neste texto, abordo o principal modo jurídico de regular a conduta sexual de acordo com a idade, analisando a manipulação de dispositivos legais que definem aquilo que optei por denominar ‘menoridade sexual’, também chamada de ‘idade do consentimento’. Entendo a noção de ‘menoridade’ de acordo com a definição de Vianna (1999, p. 168), “não como um atributo relativo à idade, mas sim como instrumento hierarquizador de direitos”, isto é, como categoria relacional de subordinação que evoca a ‘maioridade’ enquanto contraponto e enfatiza a posição desses indivíduos em termos legais ou de autoridade. Segundo a autora, ‘menores’ são aquelas pessoas compreendidas como incapazes (ou relativamente incapazes) de responderem legalmente por seus atos de forma integral.
Como sugere Vianna (2002), trabalhar com a noção de ‘menoridade’ é interessante, pois permite um maior afastamento de categorias muito naturalizadas, como infância ou crianças, imediatamente associadas a um dado período de vida ou a um conjunto de representações. Porém, se, por um lado, a ‘menoridade’ não pode ser identificada exclusivamente com a noção de infância, por outro, é impossível desconhecer a estreita relação entre as duas noções, pois “a ‘menoridade’ encontra na infância sua representação contemporânea mais eficaz” (Vianna, 2002, p. 8).
Isso se dá graças à pressuposição de incapacidade natural de discernimento – concebido como ainda em fase de (con)formação nesse período da vida – a partir da qual se naturaliza e legitima a dimensão tutelar da ‘menoridade’ (Vianna, 2002). No caso da ‘menoridade sexual’, como veremos, as discussões procuram justamente estabelecer critérios sobre as condições que definem a capacidade de discernimento necessária para que alguém tenha o reconhecimento de autonomia para consentir, de maneira considerada válida, uma relação sexual.