Editorial

Se a invisibilidade marcou, por longo tempo, a condição social das crianças, adolescentes e jovens cuja presença, por força de sua menoridade política e marginalização social, pouco inflexionava a discussão pública a favor das demandas destas categorias sociais, hoje vivemos algumas mudanças significativas. Mudanças que foram promovidas pela promulgação de outro estatuto jurídico-legal desses segmentos sociais, pela sua inclusão nos novos papéis como consumidores e produtores culturais e na crescente emergência de sua ação pública, em manifestações, movimentos sociais e ocupações. Mais ainda, e não menos importante para a visibilização pública da infância, adolescência e juventude, estão os estudos científicos deste campo que cumprem uma missão política importante: trazer ao público a riqueza e a complexidade de estar no mundo contemporâneo como criança, adolescente ou jovem, de responder às interpelações do aprender, relacionar-se e crescer, ao mesmo tempo em que se é instado a construir a própria trajetória de vida de modo singular.

Nesta 33ª edição da DESIDADES, oferecemos ao público leitor 15 artigos inéditos, uma entrevista, três resenhas e informações sobre 23 publicações recentes na área da infância, adolescência e juventude que perfazem um cenário de temáticas e questões extremamente abrangente e instigante sobre este campo de estudos. Sobretudo, a Revista aposta na convocação da comunidade científica para publicar pesquisas sobre temáticas ainda pouco visibilizadas. Assim, na presente edição, temos a alegria de trazer a Seção Temática sobre “Bebês”, resultado de uma convocação que aprovou para a publicação oito artigos dentre os 15 ora publicados.
Ainda que foco relevante de estudos na Psicanálise e na Psicologia há mais de 100 anos, com Freud, Melanie Klein, René Spitz, Donald Winnicott, Berry Brazelton, Daniel Stern e outros pesquisadores, os bebês ainda constituem uma temática pouco frequente de investigação que provoca desafios e controvérsias, e pouco visibilizada na sua divulgação. A pergunta, “o que é uma criança?” – fundamental ao campo de estudos da infância – abrange, para muitos, o escopo de investigação de bebês. No entanto, para Tebet (2019), bebês não são crianças, constituem um campo de estudos à parte, e portanto, essa abrangência do estudo das crianças incluindo os bebês é vista como inadequada. Por outro lado, para Honig (2011), embora não devam ser investigados por meio de metodologias usualmente aplicadas no estudo das crianças, os bebês fazem parte dos estudos sociais de crianças e infâncias que necessitam avançar teoricamente na questão da diferenciação entre crianças. Para ele, estudar bebês demanda simultaneamente respostas sobre o que constitui a criança, e além disso, o que a constituiria na sua “diferenciação-bebê”.

No conjunto de artigos desta edição, a presença dos bebês é qualificada sob uma diversidade de enfoques. Rocio Aveleyra, da Universidad de San Martin, recorre a documentos históricos para investigar como a presença de bebês indígenas era representada já no final do século XIX na Argentina, ainda que, indiretamente, tratada sob temas como o aborto, o infanticídio, o parto e os primeiros anos de vida. Como sujeito que reorganiza a vida familiar, assim como desafia a vida societária – este recém-chegado ao mundo -, o bebê instaura outras formas coletivas de viver. Mariana Gouvêa, da PUC-Rio, analisa as novas demandas por licença maternidade e paternidade no Brasil e a implementação da licença parental pelo Projeto de Lei 1974/21; o bebê como projeto sob a perspectiva de uma gravidez-ostentação é analisado por Bianca Dramali, da ESPM/Rio, que aponta para a presença do bebê ainda na vida intrauterina pela imbricação entre gravidez, consumo e performance pessoal.

De outro modo, a singularidade deste momento de vida é iluminada pelo artigo de Gisele Cervo, especialista em Psicoterapia da Infância e Adolescência, em que a autora discute a importância da corporeidade do bebê – sensações e movimentos – para a construção dos processos de simbolização e ampliação da vida psíquica. A marca deste lugar singular e diferenciado que o bebê ocupa é também analisado pelo prisma da ambiguidade, quando a ele se vem atribuir o lugar potencial de desvios da fase adulta. Com este propósito, Jaqueline Silva, Barbara Moraes e Kelly Brandão da Silva, do Programa de Pós-graduação em Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação da UNICAMP examinam os riscos de detecção precoce no campo da saúde mental a partir do diagnóstico de bebês. O óbito de bebês, tema que tem ocupado tanto os campos da saúde como da assistência, é discutido sob um outro enfoque por Helena Aguiar, doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-Rio: o do luto perinatal dos pais. A autora amplia esta discussão para incluir a internet como um espaço potencial que pode promover a elaboração desta experiência traumática.

Patricia Simões, pesquisadora da FUNDAJ e da UFRPE, faz um levantamento de como os bebês têm sido considerados nas diversas áreas do conhecimento e quais as implicações para as instituições de Educação Infantil. Por fim, no âmbito desta Seção Temática, os bebês aparecem como sujeitos “ocupantes” não apenas das pesquisas, mas também das cidades: Juliana Pito, doutoranda em Educação na Universidade de São Paulo, investiga como os bebês participam da ocupação da cidade, ao analisar o trajeto diário de uma bebê moradora de uma ocupação no centro de São Paulo até sua creche. Esse trajeto é examinado à luz de se pensar sobre o direito à cidade e à moradia – dos bebês e suas respectivas famílias, e sobre as distintas formas de viver a infância.
Assim, este conjunto de artigos mostra como a presença dos bebês nas investigações das ciências humanas e sociais tem ganhado diversidade e profundidade pelos/as pesquisadores/as na América Latina.

Na Seção Livre desta edição, se apresentam sete artigos. O tema da sexualidade, experiências sexuais de jovens e identidade sexual (crianças e adolescentes trans) é foco dos artigos, respectivamente, de Gilberto Moreno, professor da Univ. Federal de São Carlos; Tacinara Queiroz/Luis Felipe Rios, a primeira autora da Univ. Federal de Mato Grosso do Sul, e o segundo autor da Univ. Federal de Pernambuco; e de Marcela Parra/Gabriela Bercovich, ambas autoras docentes da Universidad Nacional del Comahue, Argentina. O tema da participação juvenil é trazido no artigo de Eliza Sulca, docente da Universidad Nacional de Salta, a partir das reivindicações dos direitos à educação por parte dos jovens indígenas da comunidade Las Cuevas. O tema da discapacidade na infância é analisado, por Paula Danel, da Universidad Nacional de La Plata, a partir da perspectiva de produção neoliberal de subjetividades na chave de leitura crítica do colonialismo e patriarcado. Ainda no campo da educação, Alejandro Siu, Gloria Patricia Ledesma e Jesús Penagos Santoyo, todos da Universidad Autónoma de Chiapas, analisam como, dentre as inúmeras transformações que a pandemia desencadeou, para o bem ou para o mal, algumas se destacaram por promover práticas colaborativas entre estudantes e professores. Enfim, Deni Lopes, Erica Atem, Rita Gomes e Nara Diogo Rocha, docentes e pesquisadores da Univ. Federal do Ceará, abordam o tema da medicalização das crianças na escola e da resistência aos agenciamentos que ela promove.
As três resenhas que trazemos nesta edição sinalizam discussões pulsantes no campo da infância e juventude. Luisina Morano, Camila Parodi e Greta Winckler produziram a resenha “Transformar la educación desde una perspectiva niña” do livro “Educar hasta la ternura siempre, del adultocentrismo al protagonismo de las niñeces”, organizado por Gabriela Paula Magistris y Santiago Morales.

“Infâncias situadas: o que as crianças têm a dizer sobre as transformações no seu bairro?” é o título da resenha de Simone Vieira de Souza sobre o livro  “As infâncias em um bairro em processo de urbanização: o ponto de vista das crianças”, de Zuleica Pretto. Por fim, Cecilia Quevedo escreveu a resenha “Estar juntos, pero estar separados. Mundos de la vida juveniles en la dimensión virtual del capitalismo contemporáneo” sobre o livro “Sensibilidades e imaginarios virtuales. Consumos tecnológicos electronales y consecuencias en la población juvenil”, de Jerjes Loayza Javier.

A entrevista online versa sobre “Infâncias e Juventudes Amazônicas: uma perspectiva descolonial sobre subjetividade e território”, com Lucia Isabel Silva da Univ. Federal do Pará, e Válter do Carmo Cruz, da Univ. Federal Fluminense.

Como em outras edições anteriores, não apenas a extensão do território brasileiro tem sido bem representada pela diversidade regional de pesquisadores/as, autores e autoras da presente edição, como também a de vários países da América Latina, Argentina, Peru, México, especificamente, que trazem suas contribuições de pesquisa e estudos no campo da infância e juventude. Neste sentido, a DESIDADES consolida-se como um campo interlocutório significativo na divulgação da pesquisa e no diálogo científico na América Latina. Além disso, como sempre, brindamos a nossos leitoras e leitores com a prospecção de 23 publicações recentes no âmbito das ciências humanas e sociais da América Latina obtidas em sites de editoras comerciais e universitárias. O levantamento contemplou obras publicadas no período de março a agosto de 2022.

Estamos felizes de poder oferecer um conjunto de textos da melhor qualidade esperando contribuir para os avanços científicos, políticos e éticos no campo de estudos da infância, adolescência e juventude!
Boa leitura!

Lucia Rabello de Castro (Editora Chefe)
Sofia Hengen (Editora Convidada)
Sonia Borges Cardoso de Oliveira (Editora Convidada e Co-Editora)

Referências
HONIG, M-S.. How is the child constituted in Childhood Studies? In: Qvortrup, J, Corsaro, W. e Honig, M-S. The Palgrave Handbook of Childhood Studies. New York: Palgrave Macmillan, 2011, p. 62-77.
Tebet, G. ‘Isto não é uma criança!’ Teorias e métodos para o estudo de bebês nas distintas abordagens da Sociologia da Infância de língua inglesa. Tese de Doutorado em Educação, Univ. Federal de São Carlos, São Carlos, 2013.

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