‘Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis’, de Mônica Rebecca Ferrari Nunes (Org.).

Resenha por Simone Luci Pereira e Maria Fernanda Andrade da Silva.

Roupas de brincar, lembrar e consumir: cosplay e cultura midiática

 

As reflexões sobre a juvenilização da cultura (Morin, 1976) nas sociedades urbanas ocidentais têm aberto um importante campo de investigação nas últimas décadas que nos auxiliam no entendimento das práticas e imaginários dos grupos juvenis. Nestes, os sentidos de ser jovem ganham contornos específicos em cada tempo-espaço, articulando modos de ser, estilos de vida e subjetividades em torno do que vem sendo chamado de culturas juvenis.

Um importante aporte para esta agenda de pesquisas é o livro organizado por Monica Rebecca Nunes, “Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis”, resultado de pesquisa coordenada pela autora que versou sobre este tema –financiada pelo CNPq – reunindo vários pesquisadores de diferentes níveis de formação acadêmica por quase três anos em torno da questão: como os cosplayers da região Sudeste do Brasil (área etnografada pela pesquisa) habitam e consomem a memória das narrativas que geraram desejo pelos personagens escolhidos e como representam a cena cosplay que garante sua própria memória nas culturas juvenis. Monica Rebecca, que já possui trajetória de reflexão no campo de estudos da memória e da cultura, articula neste livro as questões ligadas ao entretenimento e às culturas juvenis envolvidas no consumo da memória das narrativas do cosplay representadas em suas vestimentas, enfeites, maquiagens, penteados.

Mas o que significa cosplay, termo que poucos conhecem? No livro organizado em seis partes, vamos compreendendo que o nome diz respeito a uma prática comunicativa, cultural e de consumo em que os participantes não apenas se vestem com indumentárias especiais de seus ídolos escolhidos, mas, sobretudo, atuam como tais personagens nas mais variadas narrativas, brincando e confeccionando suas próprias roupas (cosplay é uma abreviação para costume playing), performando e criando identidades e pertencimentos ao dar vida a personagens de mangás, games, filmes de ficção científica, desenhos animados (animês), quadrinhos etc.

Na primeira parte do livro, intitulada “Cosplayers e poetas”, temos o artigo de Monica Rebecca Nunes (que abre a coletânea) e apresenta de maneira poética e com um espírito “flâneur” os aspectos fundamentais da etnografia – como metodologia adotada na pesquisa realizada – articulando uma discussão sobre culturas juvenis, semiótica da cultura, memória e culturas do consumo. Percorre ainda a história do termo cosplay (“roupa de brincar”) e sua prática na cultura pop japonesa até suas manifestações na moda e no estilo urbano na cultura global, analisando as narrativas que interligam memória e consumo. Mostra-se presente também a dimensão sonora das manifestações públicas como um elemento central, onde a paisagem sonora é realmente parte do cenário.

Presente também nesta primeira parte, o artigo de Marco Antonio Bin explora os contrapontos entre a poesia marginal dos jovens participantes nos saraus das periferias paulistanas e os encontros cosplays enigmáticos e coloridos, em suas representações e identificações de diferentes circuitos sociais. Em ambos, a representação performática se mostra como um suporte semântico de muitos significados, definidos por heróis e enredos memoriais que os impulsionam para novos desejos, motivações, experiências coletivas, a partir de um crescente acesso aos bens de consumo e a uma comunhão de afetos.

A segunda parte, intitulada “Percepção, cognição e pertencimento”, traz o artigo de Ana Guimarães Jorge, que entende a prática cosplay em seu estatuto cognitivo e de autopercepção do sujeito, ao construir um outro ficcional; e o texto de Gabriel Soares, que relaciona pertencimentos e socialidades presentes na prática do cosplay enquanto jogo. Os dois autores salientam que, na atualidade, o caráter efêmero e provisório dos processos de identificação social e pessoal são indicadores da crise de modelos fixos, isolados e estáveis da identidade; neste contexto, o cosplay estabelece arranjos sociais de identidades móveis, sendo um lugar de pertencimento, de criação de sentimentos, intensidades e vínculos. Novos jeitos de estar juntos podem ser articulados ao jogar ou ao fingir ser um personagem ou um “super-herói”.

A terceira parte do livro aborda um aspecto mais específico do fenômeno observado: a questão da moda e do estilo urbano. Tatiana Amendola Sanches discute os modos de vestir não apenas como elementos de distinção social e cultural cada vez mais fortes, mas também como elementos poderosos de construção de sentido, agenciamento, experiência, subjetividade e identidade no mundo atual, entendendo o cosplay como a possibilidade de novos saltos de expressão e de “estar no mundo”. Também nesta parte do livro, Mishiko Okano nos fala sobre as Lolitas, em artigo sobre a representação da estética kawaii:

embora a Lolita nipônica seja um produto híbrido das culturas dos dois hemisférios, pouca relação existe entre ela e a figura feminina da obra literária ocidental, uma vez que adota qualidade de ser kawaii, a qual alude, em geral, ao bonitinho, fofinho, infantil, alegre e puro, que faz que ela tenha pouca exposição da sua pele diferentemente da personagem no romance de Nabokov (Okano, 2015, p.195).

Lolita, como subcultura, surgiu no Japão na década de 1980 e tornou-se conhecida nas décadas posteriores até se tornar um dos elementos mais representativos da cultura j-pop. Mas Lolita é também conhecida como fashion (moda), que existe desde a década de 1970, quando surgiram as primeiras marcas e grifes a ela referentes. A paixão ocidental pelos elementos da subcultura Lolita japonesa fez com que o governo japonês os adotasse como estratégia de promoção do país, fazendo com que Lolita articule o cosplay, o fashion, um estilo de vida e um ícone publicitário.

A sonoridade é o tema da quarta parte do livro, que ausculta os sons da cena cosplay. Luiz Fukushiro e Heloísa Valente analisam a ópera Madame Butterfly, de Puccini, e sua estreia no inverno de 1904 no Scala de Milão, como representante inicial de uma onda de absorção da cultura japonesa e oriental que começava a se expandir de forma expressiva na Europa. Objetos decorativos, xilogravuras e estampas passam a circular pelo Velho Continente e pelos Estados Unidos, e têm seu valor de mercado muito aumentado e especulado por marchands e colecionadores. Matizes e cores, que são musicalmente expressos na sonoridade por efeito do timbre e de texturas harmônicas novas. Essa tradição culta apenas parece opor-se à paisagem sonora da cena cosplay, tão ruidosa quanto os filmes animês e mangás com suas onomatopeias, uma vez que todos estes sons representam um outro, fantástico e romantizado. Ainda nesta parte do livro, o artigo de Vera Pasqualin analisa como os elementos sonoros da cena cosplay estimulam o consumo material e simbólico, bem como o papel da memória e da imaginação nas experiências dessa prática, provocando impactos no aparato sensório do consumidor na dinâmica entre tradição e tecnologia frenética. Mangás, com suas onomatopeias, os sons das performances cosplay, a escuta das rádios web, os vocaloides apresentados dentro das técnicas holográficas, são abordados. As contribuições teóricas, somadas ao estudo de campo, demonstram como elementos sonoros e ruídos diversos se embaralham na mente dos frequentadores, sem que isso seja encarado como cacofonia ou confusão: o fundo sonoro da paisagem urbana circundante, solos de guitarra e percussões de bandas de animekê no palco, trilhas de outros animês escutadas em seus smartphones.

A quinta parte do livro trata dos games e do colecionismo, enfatizando a questão da lembrança e do esquecimento em contextos de aceleração temporal próprias ao universo juvenil. Davy Basto de Sá compreende a construção de videogames baseados em mitologia e a repercussão destas narrativas na prática cosplay. Alguns games usam elementos ou signos de culturas arcaicas e os adaptam para a cultura contemporânea: as narrativas de caráter mitológico são transcriadas para a atualidade. Ao se familiarizar e criar afetividade com esse jogo, uma nova narrativa se faz no próprio corpo dos jovens, ampliando a memória do mito na cultura. Wagner Alexandre da Silva nos faz perceber quão próxima está a prática do cosplay da prática colecionista ao observar o uso feito pelos cosplayers dos objetos pertencentes às histórias de mangás e animês como meios de aproximação ao universo ficcional dessas narrativas, especialmente quando são inseridos numa coleção. Percebe-se que a transição que se dá do cosplayer ao colecionador ocorre de forma gradual e progressiva, na medida em que cada um dos estágios vai sendo atingido e completado.

A última parte, intitulada “Flânerie”, apresenta uma galeria de fotos, registros imagéticos das experiências vividas e narradas nas etnografias. A ilustração geral do livro esteve a cargo de Ana Maria Guimarães Jorge, que possui um traço e uma composição inspirados e sugestivos para o tema em tela.

Se é possível afirmar que vivemos uma inflação do passado, das ondas retro e vintage que dão lugar a certa “cultura da memória” (Huyssen, 2000), é também necessário lembrar que a memória comporta sentidos que escapam e vão além das formulações simplistas que veem em demasia apenas aquilo que é da ordem da repetição, da simulação do passado para interesses meramente mercadológicos ou como indício de um esgotamento das possibilidades do presente ou do futuro.

Os contextos globais parecem nos impulsionar a uma reflexão sobre as culturas juvenis em que se apresentam não apenas as formas de resistências subculturais de enfrentamento à cultura hegemônica (importantes e necessárias), mas também aquelas que articulam conflituosamente em suas práticas e imaginários elementos das performatividades e estetizações nas quais o consumo, entretenimento e práticas comunicativas fazem deslizar alguns sentidos hegemônicos e podem revelar inauditas maneiras de ser e viver.

Nestes “corpos mídias-multiplataformas” dos jovens cosplayers, excessos de sentido escapam a lógicas simplistas que insistem em ver ali apenas repetição e alienação, expressando práticas comunicativas, culturais e de consumo que restituem passados distantes ou recentes e salientam os sentidos e articulações de temporalidades na atualidade. Nesta relação dos sujeitos com os objetos de consumo (Appadurai, 1986), muitas temporalidades se articulam, dando a conhecer possibilidades de mediação entre material e imaterial, real e imaginário, local e global, passado, presente e futuro e seus sentidos nas culturas juvenis.

 

Referências bibliográficas

 

APPADURAI, A. (Org.). The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.

HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, 2000.

MORIN, E. Cultura de massas no século XX – Neurose. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

NUNES, M. R. F. (Org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015. 344p.

OKANO, M. A representação da estética Kawaii contemporânea: Lolitas. In: NUNES, M. R. F. (Org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015. p.195-218.

Palavras-chave: memória, consumo, culturas juvenis.

Data de recebimento: 02/04/2016

Data de aprovação: 19/05/2016

 

Simone Luci Pereira simonelp@uol.com.br Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UNIP (Universidade Paulista), Brasil. Professora e pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM/SP), Brasil.
Maria Fernanda Andrade da Silva mfernandacps@gmail.com Bolsista Prosup-Capes. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática da UNIP (Universidade Paulista), Brasil.