Resenha por Fernanda de Lourdes Almeida Leal
Crianças, infâncias e mundo rural brasileiro: realidades diversas sob múltiplos olhares
O livro Infâncias do campo, organizado por Isabel Oliveira e Silva, Ana Paula Soares da Silva e Aracy Alves Martins, configura-se como uma coletânea de textos, que reúne 24 autores – a maioria, do sexo feminino –, considerando desde o prefácio ao capítulo final. Os autores dos artigos realizam suas reflexões a partir de seus pertencimentos políticos e institucionais – professores e pesquisadores vinculados a universidades e redes públicas de ensino de várias regiões do país e integrantes de movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra. Por ser composto por um número significativo de autores, que estão inseridos em instituições localizadas em quase todas as regiões do país, com exceção da região Sul, o livro apresenta um importante panorama sobre infâncias e suas vicissitudes nos vários campos do Brasil.
Trata-se de uma obra que busca, dentre outros objetivos, colocar em foco modos de viver e conceber – seja pelas crianças e/ou por adultos – as infâncias de crianças moradoras de vários territórios rurais do país, relacionadas ou não com a escola, a partir de aspectos também variados, como a relação com o ambiente natural, o transporte escolar e a literatura infantil. Um princípio que leva à construção do livro diz respeito à compreensão, por parte das organizadoras, de que há uma variedade de infâncias nos diversos campos do Brasil.
O livro está estruturado em quatro partes, além dos textos destinados ao prefácio, à introdução e ao capítulo final, totalizando 284 páginas. Estes três últimos textos constituem, por si só, um conjunto que problematiza o tema central da obra: as infâncias do campo. Nesse sentido, merecem uma abordagem mais atenta, que será realizada nesta resenha, após a apresentação das quatro partes que aglutinam os artigos do livro.
Na primeira parte, intitulada Assentamentos Rurais como Lugares de Vida das Crianças, cinco artigos discutem questões específicas relacionadas, todas, à vida de crianças em assentamentos. Dentre as questões pertencentes a esse conjunto de textos, destacam-se: as temporalidades históricas que atravessam as infâncias de crianças inseridas no espaço do assentamento rural; o debate sobre a invisibilidade, social e política, de crianças pequenas que habitam os espaços rurais do país – sobretudo aquelas que estão na faixa etária de 0 a 3 anos; a aproximação e o conhecimento de pontos de vista das diferentes infâncias vividas, a partir de fotografias e desenhos realizados por crianças investigadas; e, por fim, o pensamento das crianças sobre suas próprias infâncias.
O primeiro artigo, “Infância de assentamento e suas temporalidades históricas”, de Eliana da Silva Felipe, propõe-se a evidenciar a infância em um assentamento da reforma agrária, localizado no sudeste do Pará. Além de se propor a explicitar como as crianças estão situadas no contexto do assentamento estudado, a autora também busca compreender como as próprias crianças se situam em suas condições de existência.
O segundo artigo, “Crianças de 0 a 3 anos: um estudo etnográfico sobre o dia a dia no espaço rural”, de autoria de Marcella Oliveira Araújo e Ana Paula Soares da Silva, é resultado de uma pesquisa, do tipo etnográfico, que nasce de reflexões advindas do grupo de pesquisa e extensão Subjetividade, Educação e Infância em Territórios Rurais da Reforma Agrária (SEITERRA). As reflexões são baseadas na pesquisa de mestrado de uma das autoras e buscam, como um de seus objetivos, enfrentar recorrentes invisibilidades, de ordem social e política, no que tange às crianças pequenas que habitam os espaços rurais do país, sobretudo aquelas até 3 anos. A pesquisa foi realizada num assentamento rural localizado no nordeste do estado de São Paulo.
O terceiro artigo, “Meninas e meninos em assentamento do MST: representações e diferentes modos de ver e sentir da infância do campo”, de Márcia Gobbi e Daniela Finco, é também fruto de uma pesquisa em assentamento rural no estado de São Paulo e privilegia duas linguagens específicas, a fotografia e o desenho, realizadas por crianças do assentamento estudado no intuito de se aproximar e conhecer pontos de vista das diferentes infâncias vividas no locus da pesquisa.
O quarto e último artigo dessa primeira parte, “Retratos Sociológicos das Infâncias do Campo”, escrito por Jaqueline Pasuch e Eulene Vieira Moraes, desloca o olhar do leitor para conhecer espaços de vivências das crianças em comunidades do Centro-Oeste do Brasil, mais especificamente pertencentes ao município de Sinop, em Mato Grosso. Inseridas num espaço de conflitos e explorações, por um lado, e de desejo pela preservação ambiental e a permanência em culturas diversificadas, por outro, as autoras constroem retratos sociológicos das infâncias estudadas, possibilitando ao leitor conhecer um pouco seus modos de constituição.
A segunda parte, intitulada Crianças Assentadas e Participação Infantil, congrega dois artigos que, apesar de continuarem na busca por evidenciar infâncias vividas no âmbito dos assentamentos da Reforma Agrária, põem em relevo a participação infantil em espaços como a família e a escola e no movimento de luta pela terra.
O primeiro artigo desta parte, “Crianças assentadas: o que dizem sobre a participação na família e na escola?”, de Regiane Sbroion e Ana Paula Soares da Silva, busca o ponto de vista da criança sobre a vida no assentamento, reconhecendo que esta influencia os grupos dos quais faz parte. Fruto de uma pesquisa de mestrado, realizada num assentamento localizado na região nordeste do estado de São Paulo, o artigo, com base no conceito de participação infantil, traz à luz diferentes formas de participação das crianças na escola e na família, chamando a atenção para o aspecto político aí implicado.
O segundo artigo, “Crianças sem terrinha em movimento: brincando, cantando na luta pela Reforma Agrária”, de Edna Rodrigues Araújo Rosseto, objetiva evidenciar o protagonismo das crianças assentadas através de duas práticas educativas do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST): a Ciranda Infantil e os Encontros das Crianças Sem Terrinha. O protagonismo e o movimento empreendidos pelas crianças nestas duas práticas são compreendidos pela autora como frutos do processo histórico de luta pela terra. Vistas como partícipes da referida luta, elas não perdem, nesse movimento, sua relação com a brincadeira, o jogo e o canto.
A terceira parte do livro, Crianças e a Relação com a Natureza, reúne três artigos que põem em evidência, dentre outros aspectos, a constituição da identidade das crianças a partir de sua relação com as águas; o conhecimento das crianças indígenas no contexto das sociedades nas quais estão inseridas como um aspecto central para a formulação de qualquer projeto em relação à infância; e o lugar que pode ter o meio ambiente nas propostas pedagógicas relacionadas à educação infantil.
O artigo “Crianças ribeirinhas da Amazônia paraense”, primeiro desta terceira parte, de Eliana Campos Pojo e Maria de Nazaré Vilhena, traz à análise a discussão de uma pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão Sociedade, Estado e Educação: ênfase nos governos municipais e educação do campo (GEPESEED) e expõe a percepção das autoras quanto ao fato de que as crianças ribeirinhas constituem suas identidades na relação com a natureza, sendo o contato com as águas um importante aspecto a ser considerado nesta formação. Ao tratarem dessas crianças, as autoras também colocam em evidência a relação entre brincadeira, estudo e trabalho. Como recomendação à escola, elas sugerem que “a história de vida das crianças” seja considerada como “conteúdo do ato educativo”.
O segundo artigo, “Mau-olhado e quebranto: o que podemos aprender com os povos indígenas sobre suas crianças mesmo quando eles desconfiam de nossa educação infantil?”, de Rogério Correa da Silva, problematiza, desde o título, a importância de se conhecer mais sobre as crianças indígenas. O autor, no sentido de proporcionar um maior conhecimento sobre elas e sua cultura, apresenta importantes aspectos relacionados ao modo de construção de suas infâncias, como “a fabricação do corpo da criança indígena” e os “tabus alimentares, a manutenção da saúde e a prevenção de doenças entre as crianças pequenas”.
O artigo “A criança e o ambiente natural: experiências da educação infantil em assentamento rural”, de Juliana Bezzon da Silva e Ana Paula Soares da Silva, é um recorte da pesquisa realizada no mestrado de uma das autoras em um assentamento do estado de São Paulo e busca discutir a relação da criança com o ambiente natural, problematizando a possibilidade de esta relação estar contemplada em práticas da educação infantil. Para as autoras, o trabalho educativo precisa considerar a inserção cultural da criança assentada, que, necessariamente, passa pelo ambiente natural.
A quarta e última parte, que reúne trabalhos em torno do tema Crianças e a relação com a Escola, traz à reflexão do leitor o significado da brincadeira na constituição de crianças inseridas na pré-escola; a percepção do transporte escolar por crianças que precisam fazer uso diário de precários veículos para se deslocarem do lote até a escola, e vice-versa; a possibilidade de aprendizagens no âmbito das interações entre professora e crianças de diversas idades, inseridas no contexto de uma classe multisseriada; e a relação entre leitura literária, educação do campo e desigualdade, no sentido de expor e problematizar “a falta de acesso da maioria da população do campo aos meios culturais” como um dos fatores que contribuem para a geração de desigualdades sociais.
O primeiro artigo deste segmento, “Crianças ribeirinhas brincando na pré-escola”, de Sônia Regina dos Santos Teixeira, aborda a brincadeira no contexto pedagógico da educação infantil, a partir de um estudo realizado pela autora em uma turma de educação infantil de uma escola ribeirinha da Amazônia. Teixeira indica que as brincadeiras estavam contempladas no planejamento realizado pela professora da turma investigada, apesar dos poucos recursos disponíveis. Ela sugere que se discuta, ainda mais, a presença da brincadeira no contexto da educação infantil.
O artigo “‘Odeio andar de ônibus!’ – o que dizem as crianças assentadas sobre o transporte escolar”, de autoria de Giana Yamin e Alzira Salete Menegat, expõe a difícil realidade enfrentada pelos sujeitos do campo no que diz respeito à locomoção. Fruto de pesquisas realizadas em assentamentos rurais do Mato Grosso do Sul, particularmente com crianças, o artigo explicita a violação de direitos fundamentais garantidos na legislação brasileira, como o direito à educação, a partir da política do transporte escolar (in)existente no país.
O artigo “A literatura infantil e os leitores do campo: imaginários sem fronteiras”, de Maria Zelia Versiani Machado, Santuza Amorim da Silva e Carlos Augusto Novais, busca examinar questões pertinentes tanto às crianças que residem no campo, como na cidade, como, por exemplo, a relação destas com a leitura e a literatura. Para além da discussão geral que propõem, os autores explicitam, no caso da educação realizada no campo, dados que revelam uma forte correlação entre populações do campo e desigualdade, particularmente no que tange ao acesso dessas populações aos meios culturais.
O último artigo desta parte, “Ler para estudar: construção de leitores e escritores infantis na interação em classe multisseriada”, produzido por Adriana Rodrigues de Almeida Oliveira e Aracy Alves Martins, aborda uma modalidade de agrupamento de crianças, de diferentes idades, comum às escolas de zona rural: o agrupamento em classes multisseriadas. As autoras revelam os desafios e as possibilidades que esse tipo de organização coloca às práticas pedagógicas e, com isso, contribuem para qualificar o debate em torno da viabilidade da aprendizagem no contexto das referidas classes.
Além dessas quatro partes que organizam o conjunto de textos, o livro conta com análises rigorosas sobre a sua própria produção e sobre aspectos centrais e necessários à abordagem da questão fundamental sobre a qual giram todos os artigos nele contidos: as diversas infâncias existentes nos diversos campos do país. Essas análises encontram-se localizadas no prefácio, introdução e capítulo final da obra.
No prefácio, elaborado por Maria Isabel Antunes-Rocha, a autora se mostra surpreendida pelo que encontrou no conjunto da obra: uma abordagem que escapou a dicotomias normalmente verificadas na própria produção científica, que dizem respeito à depreciação das infâncias do campo, por um lado, ou à idealização das mesmas, por outro. Para Antunes-Rocha, os textos provocam a sensação de movimento e, nesse movimento, conseguem chamar a atenção do leitor para ver e escutar as diversas crianças, os diversos modos de constituição de suas infâncias, que, no caso das crianças em questão, são percebidos como realizados por sujeitos concretos, o que inclui as próprias crianças e os adultos que com elas estabelecem vínculos, e a relação das primeiras com a brincadeira e a natureza. Como sujeitos concretos, as crianças falam ou são colocadas no foco das discussões. Nesse sentido, a prefaciadora avalia que a obra foi tecida “com, para e sobre as crianças”.
A introdução, escrita pelas organizadoras do livro, investiga, de forma densa, dois conceitos umbilicalmente relacionados ao assunto central da obra: os conceitos de infância e de campo. Ao adotar uma abordagem histórica, teórica e política desses conceitos, as autoras traduzem, de maneira competente, os aspectos que estão implicados em sua constituição. É um capítulo fundamental à própria compreensão dos objetivos da obra, que prepara e qualifica o olhar do leitor para o que ele irá encontrar nos textos que a compõem.
O capítulo final, redigido por Fúlvia Rosemberg, traz uma análise crítica acerca dos textos reunidos no livro. Rosemberg faz uma análise que pode ser qualificada como “provocadora”, apontando aspectos importantes e problematizando concepções encontradas nos textos analisados. Malgrado os pontos de tensão que são colocados pela autora em vários momentos de sua análise, suas reflexões possibilitam ampliar as contribuições dadas pelos vários autores dos textos que integram o livro e sugerem outras possibilidades de leitura da temática central. Conforme sua compreensão, a sua análise representa “apenas uma das infinitas leituras que os textos suscitam”.
De fato, pela multiplicidade de abordagens teóricas, metodológicas e políticas que estão presentes nos artigos, nenhuma leitura será única ou geradora de consensos. Se toda obra é sempre aberta, esta, particularmente, aprofunda o significado dessa afirmação por conter, nela própria, uma espécie de tese e de antítese de seus fundamentos. Por tudo isso, trata-se de um livro que deve ser lido, estudado e problematizado, sobretudo no que tange às novas possibilidades de abordagem da temática que lhe é fundamental. Há diversas infâncias sendo tecidas nos territórios rurais desse imenso país. Elas precisam ser visualizadas em suas conformações peculiares. Fica o convite à leitura e uma provocação para que os interessados em contribuir com o avanço do conhecimento sobre as infâncias do campo possam ampliar a visibilidade de suas diversas formas de existência.
Referência
SILVA, Isabel Oliveira e; SILVA, Ana Paula Soares da; MARTINS, Aracy Alves [Org.]. Infâncias do campo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 248 p. (Coleção Caminhos da Educação do Campo)