Desenham-se hoje outros cenários sobre a posição das crianças no mundo. Mudanças profundas converteram nossa maneira de percebê-las e tratá-las. A visão sobre a infância como um momento biográfico cujo valor reside justamente na sua superação, ao deixar para trás qualquer indício do ‘infantil’, é considerada anacrônica. Este momento da existência humana – a infância – é valioso, não porque deve ser ultrapassado na busca de maior ‘maturidade’, termo que frequentemente serve para dizer que as crianças ainda não são o que devem buscar ser, mas porque contradiz a arrogância daqueles ideais de plenitude humana que se considerava existir na vida adulta. Crianças e adultos são muito mais semelhantes, do que se imaginava, na fragilidade e incompletude das suas existências. Ao mesmo tempo, crianças e adultos, em virtude do lugar encarnado que ocupam no espaço e tempo histórico, diferem quanto ao que podem e querem transformar em si mesmos, e no mundo ao redor.
Assim, por um lado, conseguimos hoje uma certa clarividência em relação às assimetrias geracionais: crianças e adultos são diferentes, e tal diferença deve ser valorizada ao termos em conta a infinita diversidade humana. Por outro lado, ainda temos muito a alcançar no que diz respeito a tornar as práticas sociais e culturais respeitosas da diferença que as crianças apresentam ao fazer tensionar o estabelecido, o “normal” e o que é eficiente.
Nos artigos que compõem esta edição da DESIDADES, se discutem algumas destas instâncias em que o exercício da escuta da criança, como também do jovem, se faz necessário para compreender como eles vivenciam as situações de incerteza, sofrimento e adversidade. Maria Marguerita Echeverri, no artigo “ ‘Somos muitos, somos diversos e aqui estamos cruzando fronteiras’ – Reflexões sobre a compreensão dos processos migratórios juvenis” entende que a questão da emigração de jovens hoje deve se perspectivar como resultado da escolha destes meninos e meninas, e não somente como parte do processo migratório empreendido pelas famílias destes jovens. Assim, as decisões de emigrar são frequentemente tomadas por eles próprios, mesmo quando eles têm que enfrentar sozinhos riscos de vida, violências e fome, dentre outros. A autora nos alerta sobre o número de jovens emigrantes: no ano de 2013 cerca de 23 milhões de jovens entre 15 e 24 anos emigraram. A autora afirma que somente escutando os/as jovens poderemos nos acercar de sua dor, e do que envolve o processo de emigração para eles.
Se mal poderíamos imaginar que um dia meninos e meninas transporiam fronteiras nacionais para tentar a vida em outros países, hoje eles o fazem sozinhos contradizendo modelos de guarda e proteção que, muitas vezes, os mantêm oprimidos e abandonados em seus países de origem. Em outra contribuição desta edição, Thais Klein e Rossano Cabral Lima discutem “A difusão do diagnóstico de Transtorno Bipolar Infantil” como um problema atual que atinge um número cada vez maior de crianças. Relatam que entre 1995 e 2003 houve um aumento de 40 vezes no número de crianças diagnosticadas com este transtorno nos EUA. Enquanto os psiquiatras discutem sobre o estatuto deste transtorno – sua sintomatologia específica e os fatores que o determinam, o processo de medicalizar a infância continua avassalador. Podemos nos perguntar a que serve – a que fins societários serviria, uma infância submetida e rotulada cuja potencia de deslocar o mundo adulto foi aniquilada.
Em “Moralidade e a exploração do trabalho infantil doméstico”, Danila Cal busca retratar a moralidade que sustenta práticas de desigualdade social e mantêm crianças em situações de exploração. Nestas situações, o que deve ser feito para a criança, ou o que é melhor para ela, dá lugar a opressões racionalizadas como ajuda. No entanto, não se totaliza esta situação como aspecto estrutural da dominação das crianças frente ao poder dos adultos, que não se deixam interpelar pelos seus deveres geracionais em relação às crianças, principalmente quando se trata daquelas destituídas de status e poder social.
Na seção Espaço Aberto, Raquel Oliveira entrevista Erika Parlato-Oliveira sobre “Os primeiros passos na intervenção com bebês em risco de sofrimento psìquico”, trabalho pioneiro desenvolvido no Brasil para o diagnostico precoce do autismo.
Na seção de Informações Bibliográficas apresentamos a resenha de Sonia Lizbeth da obra “Relaciones Interpersonales y Violencias entre Adolescentes: un estudio de las relaciones de violencias entre adolescentes de las escuelas secundarias mexicanas”, de Juana María Guadalupe Mejía Hernández e o levantamento de 28 lançamentos de publicações na área de infância e juventude nos países da América Latina ao longo dos três últimos meses.
Lucia Rabello de Castro
Editora Chefe