Pode parecer um truísmo afirmar que as crianças e os jovens existem nos lugares. Sabemos que o espaço – com seus objetos, paisagens e técnicas – compõe a existência humana de todos, assim como a das crianças e dos jovens. No entanto, esta afirmação, que parece simples, nos direciona em um sentido bem mais complexo, que é o de compreender como os diferentes lugares condicionam modos de existir distintos para crianças e jovens. Dizer que existimos nos lugares nos leva a interrogar como o lugar modifica a existência: como crianças e jovens se tornam o que são a partir das condições específicas dos lugares em que habitam.
Os lugares, ou os espaços, não são entes em si mesmos, ou apenas palcos, onde a ação humana se desenrola. Eles são a condição inicial, mas também o meio e o produto das relações humanas (Lefebvre, 2008) que se estabelecem no processo permanente das trocas de afeto e trabalho. A vida de crianças e jovens está imbricada nos espaços onde convivem com os adultos: a incomensurável trama de relações entre gerações depende das condições materiais circundantes, permanentemente reconstruídas pelas ações de ambas as gerações. Portanto, os espaços se tornam também modificados pelas ações onde as subjetividades infantis, juvenis e adultas se constituem. A realidade material – lugares, territórios, os elementos naturais da paisagem, e a coleção variada, diversa e imensa de objetos e técnicas – constitui, e é constituída, pelo processo histórico de se relacionar com os outros e viver em sociedade.
Nesta edição da DESidades, a seção Temas em Destaque traz dois artigos que nos provocam a refletir como crianças e jovens se relacionam com os outros, principalmente os mais velhos, a partir das condições peculiares dos seus espaços de vida. No artigo, A educação dos jovens Guarani e Kaiowá e sua utilização das redes sociais na luta por direitos, escrito por Tonico Benites, os jovens vivem nas suas comunidades indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. No outro artigo, Conflitos e diferenças geracionais no uso das tecnologias digitais, de Rosalia Winocur, os jovens vivem em centros urbanos do México, mas também poderiam ser jovens urbanos vivendo em cidades brasileiras, ou em qualquer outro país latino-americano. Em ambos os artigos, está em discussão o sistema de objetos – as novas tecnologias de informação e comunicação – que, como parte do lugar, mediatiza e condiciona as relações entre adultos e jovens. Só que esse sistema de objetos, ainda que aparentemente o mesmo, se insere diferentemente no espaço da comunidade indígena de como é apropriado pelos jovens nas cidades do México. Portanto, ele possibilita tipos de ação dos jovens e formas de relações entre as gerações que são muito distintos em um e outro lugar.
Compreender como as novas tecnologias modificam a maneira de viver e se relacionar dos jovens demanda que olhemos como estes aspectos fazem parte de um conjunto mais amplo de condições do espaço implicadas na reprodução da vida, na divisão do trabalho e no relacionamento com a natureza. Por isso, os jovens indígenas comparados aos jovens urbanos das sociedades industriais não são afetados do mesmo modo pelas tecnologias, nem elas possibilitam redes semelhantes de relacionamento entre eles e os adultos. Neste sentido, a apropriação e o uso da internet, das redes sociais e do computador têm que ser analisados a partir do entendimento de que esses elementos fazem parte da dinâmica mais ampla da realidade objetiva.
Na seção Espaço Aberto, a equipe editorial da DESidades entrevista a Professora Flavia Cristina Silveira Lemos sobre a temática da judicialização da infância. Cada vez mais, assistimos a produção de novas leis que regulam o modo como pais, educadores e outros adultos devem tratar as crianças. Sob a bandeira da proteção, ou de assegurar-lhes direitos, a vida das crianças tem sido crescentemente regulada pelo Estado. Quais as consequências desta judicialização? A que interesses serve? O que tem assegurado, afinal? Estas são perguntas que a entrevistada visa debater.
Se a presença do Estado é interrogada na seção Espaço Aberto, o livro resenhado nesta edição discute o desafio de como as leis e normas podem reconstruir o Estado no interior das práticas científicas e profissionais com as crianças. A resenha do livro, Políticas para a infância e a juventude. Produzir sujeitos e construir Estado, na seção Informações Bibliográficas, escrita por Maria Celeste Hernández, discute a contribuição de um conjunto de pesquisadores e docentes da Argentina sobre a relação entre o Estado e as crianças. A visada é que nesta relação o Estado está por se construir, não apenas nas suas políticas para com a infância, mas na miríade de práticas profissionais e para-profissionais que intervêm na vida das crianças, já que, como diz a autora da resenha, são “as ações das pessoas que fazem os sistemas, dispositivos e legitimidades”.
Finalmente, esta edição da DESidades traz a novidade de apresentar as publicações do campo da infância e juventude ao longo do último trimestre obtidas junto aos sites de editoras de países latino-americanos de língua hispânica. O compromisso de divulgar publicações recentes, na seção de Informações Bibliográficas, agora se estende aos países de língua espanhola, de modo a promover uma visibilidade ainda maior para os estudos e pesquisas sobre a infância e a juventude que se desenvolvem em toda a América Latina.
Lucia Rabello de Castro
Referências Bibliográficas