Editorial – Ed. 21

DOSSIÊ INFÂNCIAS NO/DO CAMPO NA AMÉRICA LATINA

As crianças do/no campo não são uma presença frequente nas pesquisas sobre infância. Como resultado de uma convocação pública sobre o tema, a revista DESIDADES tem o prazer de trazer nesta edição o dossiê “Infâncias no/do campo na América Latina” organizado por quatro pesquisadoras, do Brasil e da Argentina. Esta edição traz também a entrevista “Educação democrática – sem medo e sem mordaça”, duas resenhas e a pesquisa bibliográfica de 32 publicações sobre infância e/ou juventude na América Latina lançadas no último trimestre. Boa leitura!

Equipe editorial

Infâncias rurais, crianças do campo

Patrícia Oliveira S. dos Santos – UFCG
Flávia Ferreira Pires – UFPB
Mariana García Palacios – CONICET- UBA
Emilene Leite de Sousa – UFMA

José de Souza Martins certa vez lançou uma crítica às Ciências Sociais afirmando que comumente nos interessamos apenas pelos “[…] informantes que estão no centro dos acontecimentos, que têm um certo domínio das ocorrências, que têm, supostamente uma visão mais ampla das coisas”, notadamente, os adultos (Martins, 1993, p.53). Destarte, o autor desafiou os pesquisadores a trabalharem com a noção de que as crianças são cada vez mais sujeitos do processo histórico. Se bem temos visto nas últimas décadas uma emergência das crianças e das infâncias na pesquisa social, a qual representa um avanço significativo para o campo dos estudos da infância, há um grupo de crianças que ainda carecem de atenção, sobretudo pelos pesquisadores das Ciências Sociais: o das crianças que residem no campo ou são consideradas do campo. Se as crianças são marginalizadas nas pesquisas científicas, as crianças no e do campo sofrem multiplamente esse processo. É preciso antes de mais nada definir que ao nos referirmos às crianças do campo estamos salientando as condições de vida das crianças rurais que estão ou não atualmente morando na zona rural e quando nos referimos às crianças no campo estamos dando ênfase ao seu local de moradia.

Comumente quando estudada, a criança e a infância no/do campo é tomada por um caráter depreciativo ou outras tantas vezes por um caráter idealizado, em um processo de polarização: idealização da vida no campo x depreciação da infância das crianças do campo. Deste modo,

O mundo rural tornou-se objeto de estudo e de interesse dos sociólogos rurais pelo “lado negativo”, por aquilo que parecia incongruente com as fantasias da modernidade. Não por aquilo que as populações rurais eram e, sim, por aquilo que os sociólogos gostariam que elas fossem (Martins, 2000, p. 06).

Essa depreciação pode ser entendida, dentre outras coisas, pela precariedade dos modos de vida no campo, tendo em vista que o mundo rural carece de um olhar mais atento por parte de políticas sociais e dos governantes, o que contribui para que seja tomado como um lugar atrasado, rude, não civilizado (Tassara, 2007). Assim como durante muito tempo as crianças e as infâncias foram colocadas de lado na pesquisa científica e acopladas a objetos sociológicos clássicos, como a família e a escola, a infância no/do campo, na literatura das Ciências Sociais, foi inicialmente restrita às discussões sobre o trabalho infantil ou sobre a escola. Deste modo os trabalhos sobre infância rural apareciam em geral em discussões sobre a exploração do trabalho infantil, ressaltando seu caráter exploratório e usurpador da infância, ou em relação com programas de erradicação do trabalho infantil, sem nunca considerar outras possibilidades de experiência com o trabalho infantil como a socialização (Sousa, 2004). Por sua vez, quando não era restrita ao trabalho infantil, a infância no campo era sempre vista a partir da ótica da educação escolar, em que o destaque está na sua precariedade.

Se infância pode ser entendida como “a primeira parte do ciclo da vida” ou “os arranjos institucionais que separam crianças de adultos” ou ainda “o espaço estruturado criado por esses arranjos que são ocupados pelas crianças” (James; James, 2012:14, tradução nossa), a infância rural pode ser entendida como o espaço sócio-estrutural ao qual as crianças do campo pertencem. Embora Qvortrup (1994) insista que a infância é uma variável universal em todas as sociedades a despeito das crianças que dela fazem parte, tomamos partido de um entendimento plural das infâncias, na medida em que os espaços estruturados criados por arranjos institucionais, como definem James e James (2012), modificam-se ao sabor das variações históricas, sociais e culturais. A “política cultural da infância” para James (2007) dá conta de compreender os aspectos que unificam as crianças enquanto categoria geracional pensadas a partir de um recorte universalista e ao mesmo tempo a diversidade das formas de ser criança ao redor do planeta, dentre elas as crianças rurais. Nesse sentido, podemos pensar com Qvortrup (2010; 2011) que as crianças formam um grupo minoritário frente ao grupo dominante, os adultos, independentemente do seu lugar de moradia. No entanto, parece-nos útil trazer a discussão dos marcadores sociais da diferença para compreender especificidades na forma de ser criança entre essas populações. Mas, podemos nos indagar até que ponto o elogio à diversidade pode colocar em risco os ganhos da categoria infância como uma variável macrossocial e estrutural.

Esperamos com esse dossiê chamar a atenção para a importância de se pesquisar as infâncias e as crianças no/do campo, atentando para a não exotização, como apontamos acima. Desejamos contribuir para uma maior visibilidade das crianças do campo e no campo e para as pesquisas que as tomam como sujeitos. Aspiramos mostrar que as crianças das áreas rurais se relacionam com os seus pares e com os adultos “[…] ao mesmo tempo em que convivem com seus outros papéis, suas funções dentro da comunidade familiar, o cumprimento de suas tarefas. Ela constrói e vive o hoje, vive a sua história” (Leite, 1996, p.175). Esperamos através desse trabalho, quebrar a imagem engessada que ainda há da infância e da criança no/do campo. É importante fugir dos estereótipos e destacar, outros tipos de aprendizagens que não passem pela escola formal, mas a aprendizagem agrícola, outros modos de produzir conhecimento, ou de produção do corpo, outras formas de experimentar a ludicidade, a relação com a natureza e os animais, outros modos de leitura de si mesma, como criança, e do mundo; sua religiosidade e parentesco, dentre outros, para que possamos compreender de que infâncias estamos falando.

Em definitiva, especialmente nas Ciências Sociais, ainda hoje há uma lacuna em relação à infância no campo dedicado aos estudos rurais (Stropasolas, 2011; Silva et al, 2013). Isso se reflete no fato de que, apesar dos esforços de divulgação do dossiê que foram feitos, a submissão de artigos para avaliação e possível publicação não foi numerosa. Contrariamente, os estudos sobre juventude rural aparecem em grande quantidade de produção, relacionados, sobretudo aos temas da migração, aos problemas sociais referentes à sucessão geracional da terra (Brumer; Anjos, 2008). Ainda assim, acreditamos, como Stropasolas (2011), que a “origem dos problemas que afetam os jovens rurais deve ser buscada ainda na infância” (p. 56). É preciso lembrarmos que nem o rural e nem a infância são estáticos, ambos são dinâmicos e estão em constante processo de transformação. Dessa forma, um dos nossos objetivos com este Dossiê é apresentar aos leitores um panorama sobre as sucessões de mudanças ocorridas pelas infâncias no/do campo.

Os trabalhos que aqui se encontram apresentados foram solicitados a autoras e autores que possuem uma vasta experiência no campo de pesquisa ou sobre infância, ruralidade, ou mesmo sobre ambos, de forma que unindo as duas temáticas contribuíram para engrandecer este dossiê. Os trabalhos reunidos para a elaboração deste volume vêm de distintos países da América Latina – contamos com quatro artigos do Brasil, um do Perú e um da Argentina – e contribuem para a visibilidade das várias formas de se vivenciar as infâncias no/do campo. Embora alguns trabalhos se refiram a temáticas clássicas como a educação escolar ou trabalho infantil, resulta importante também apontar de onde a criança camponesa é pensada, pois entendemos que todos os trabalhos aqui reunidos se distanciam desse modelo clássico e abrem um caminho para novas possibilidades de análise da infância no campo.

Iniciando este dossiê o trabalho “Comuna da Terra D. Tomaz Balduíno: aproximações a partir de palavras e imagens criadas por crianças assentadas”, de autoria de Márcia Aparecida Gobbi, Maria Cristina Stello Leite e Paula da Silva Franca, investiga o cotidiano infantil no assentamento revelando aspectos das lutas e suas conquistas pelas e com as crianças. Através de imagens fotográficas criadas por crianças em contexto de pesquisa o artigo revela o ponto de vista das crianças, sempre em relação às informações dadas pelos adultos. As imagens de brinquedos e paisagens registradas pelas crianças se contrapõem a narrativa imagética adulta que desfoca os movimentos de luta por terra e moradia, perdendo seu caráter lúdico ou poético, excluindo sensibilidade estética de crianças, homens e mulheres assentados.

O segundo texto, intitulado “Chicas de la colonia: aprender y trabajar en la infancia rural”, de Ana Padawer, analisa as participações das meninas nas atividades agrícolas em San Ignacio (Misiones, Argentina). A autora verifica como a incorporação das meninas nos fazeres cotidianos das chacras compreende uma experiência formativa, na busca de autonomia para o próprio sustento. Assim, as distinções étnicas, genéricas, de idade e posição social definem certas atividades e saberes como próprios das “garotas do campo”. Através desta experiência de mundo as meninas entendem e transformam por meio do seu fazer cotidiano, o mundo que as rodeia.

O artigo de Joel Orlando Bevilaqua Marin, “Infância rural e trabalho infantil: concepções em contexto de mudanças”, analisa concepções de infância e de trabalho da criança expressas na legislação vigente no Brasil e na visão de pais de crianças que vivem em unidades de produção familiar. A pesquisa se realizou através da análise às leis de proteção da infância e de entrevistas dirigidas para dezesseis agricultores familiares de Itapuranga-Goiás, com filhos de idade entre seis e catorze anos de idade. As leis de proteção à infância que categorizaram como “trabalho infantil” certas atividades executadas por crianças em unidades de produção familiar desencadearam mudanças nas formas de socialização e de transmissão dos saberes-fazeres às crianças, reduzindo a importância educativa dos pais.

Patrícia Ames apresenta-nos o texto “Los aprendizajes de los niños rurales en grupos multiedad y su uso en la experiencia escolar multigrado”. Este trabalho configura parte de sua etnografia na Amazônia peruana, cuja investigação de um grupo de famílias rurais com crianças de diferentes idades, identificou quatro características centrais da aprendizagem em casa: o desenvolvimento de um senso de autonomia e responsabilidade; a importância de observação; a prática como meio de desenvolver habilidades; e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. Nesta pesquisa verificou-se a experiência de meninas rurais em grupos de idades mistas como uma importante fonte de aprendizagem para outras crianças. No âmago do artigo está a discussão sobre a escola multisseriada, em que crianças de várias séries dividem a sala de aula sob a responsabilidade de um único professor.

O artigo “Invertendo a ordem geracional: a relação das crianças da zona rural de Orobó (PE) com as novas TIC’s”, escrito por Patrícia Oliveira S. dos Santos e Maria de Assunção Lima de Paulo, discute o crescente uso do acesso à internet pelas crianças da zona rural e uma inversão da ordem geracional, uma vez que as crianças ensinam aos adultos como fazer uso das novas TIC’s. Destaca-se aqui o acesso à internet por meio do smartphone, ganhando destaque a relação com as redes sociais do whatsapp e o youtube. Trata-se de uma investigação etnográfica por meio da observação participante.

Encerrando o dossiê trazemos o texto “Ser criança em movimento: ontologias e alteridade na pesquisa com crianças”, de Gustavo Belisário e Antonádia Borges, cuja problemática é desconstruir as classificações apriorísticas do que é ser criança e ser adulto, rural e urbano. Assim, os autores demonstram como, conforme os sujeitos da pesquisa, ser criança é entendido como uma substância que atravessa não só as crianças como também os adultos. Rejeitando uma alteridade fundamental entre crianças e adultos, o texto defende a pesquisa com crianças de forma a dar conta de suas múltiplas ontologias, tomando como inspiração a proposta teórica-epistemológica de Archie Mafeje e a sua crítica às taxonomizações feitas pela Antropologia.

Por fim, mas não menos importante gostaríamos de tecer algumas palavras de agradecimento para todos que junto conosco contribuíram para a realização deste trabalho. Somos gratas aos autores de cada artigo enviado para a avaliação, pela disposição em contribuir para a publicação dessa rara coletânea. Agradecemos a todos os pareceristas convidados que dedicaram seu tempo cooperando para o aperfeiçoamento de cada trabalho aqui apresentado. Agradecemos também a Elizângela Ferreira da Silva, Toni Martins, Wanderlan da Silva Alves, também por nos disponibilizarem um pouco do seu tempo nos ajudando com as traduções para o português e para o espanhol. Somos gratas ainda aos editores e a todos que fazem a Revista DESidades: Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas – NIPIAC, pelo paciente e dedicado trabalho de lançar esse dossiê sobre crianças no campo e do campo. Ao mesmo tempo em que parabenizamos a Revista Desidades pela sua publicação trimestral e bilíngue, esforço heroico em tempos de escassos recursos e breves entusiasmos.

Ilustre leitor e leitora, boa leitura!

Referências Bibliográficas

BRUMER, A.; ANJOS. G. dos. Gênero e reprodução social na agricultura familiar. Revista NERA (UNESP), v.11, p. 1-12, 2008.

JAMES, A.; JAMES, A. Key concepts in Childhood Studies. 2. ed. Sage, 2012.

JAMES, A. Giving voice to children’s voices: practices and problems, pitfalls and potentials. American Anthropologist, Flushing, v. 109, n.2, p. 261-72, 2007.

LEITE, M. I. F. P. Crianças do campo: os mudos da história? Revista Estudos Sociedade e Agricultura, n. 6, p.170-191, 1996.

MARTINS, J. de S. (Org.). O Massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1993.

______. O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, n. 15, p. 5-12, out., 2000.

QVORTRUP, J. A tentação da diversidade e seus riscos. Educação & Sociedade, v.31, n. 113, p. 1.121-1.136, out./dez., 2010.

______. Childhood matters: an introduction. In: Qvortrup. J. (Org.). Childhood Matters, Aldershot: Avebury, 1994.

______. Nove teses sobre a “infância como um fenômeno social”. Pro-Posições [online], v.22, n.1, p.199-211, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73072011000100015&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 26 set. 2018.

SOUSA, E. L. de. “Que trabalhais como se brincásseis”: trabalho e ludicidade na infância capuxu. 2004. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2004

STROPASOLAS, V. L. Redefinições nos Processos de Socialização das crianças rurais. Raizes (UFPB), v. 31, p. 54-67, 2011.

TASSARA, E. T. de O. Urbanidade e periurbanidade(s). Reflexões sobre dimensões psicossociais das dinâmicas históricas. Série Documenta, Rio de Janeiro, n. 17, p. 1-19, 2007.

 

 

 

Patrícia Oliveira S. dos Santos é Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil, Mestre em Antropologia, Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. Membro do grupo de pesquisa “Crias: criança, sociedade e cultura”. Atualmente vem desenvolvendo pesquisas sobre crianças e infâncias rurais no agreste pernambucano e as mudanças geracionais nesse contexto.

Flávia Ferreira Pires é Professora da Pós-Graduação em Sociologia e da Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. Autora de artigos e livros que tratam a participação social das crianças nas diversas áreas da vida social, tem pesquisado ultimamente os efeitos do Programa Bolsa Família na vida das crianças e suas famílias. É bolsista produtividade do CNPq desde 2012.

Mariana Garcia Palácios é Doutora em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina, onde trabalha como professora no Departamento de Ciências Antropológicas. É pesquisadora assistente do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET), no Programa de Antropologia e Educação (SEANSO, ICA, UBA), Argentina. Seus principais temas de investigação são: infância, educação e interculturalidade, experiências formativas e construção do conhecimento religioso. Também estuda as articulações teórico-metodológicas entre antropologia e psicologia interessadas na análise da construção do conhecimento. Nessas linhas, ela desenvolveu teses, dirigiu e participou de projetos e publicou diversos artigos em periódicos nacionais e internacionais. Desde 2006 vem realizando trabalho de campo etnográfico com a população Toba / Qom.

Emilene Leite de Sousa é Antropóloga, professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil. Coordena o projeto “Saberes Indígenas na Escola”/MEC-SECADI, Brasil. Autora de artigos sobre infância camponesa. Líder do Grupo de Estudos Educação, Cultura e Infância/GECI-UFMA, Brasil.