Edição Temática: Saúde da criança e do adolescente na América Latina
No início de 2020, o periódico científico DESIDADES fez um convite à comunidade científica para uma discussão ampla em torno do tema da saúde da criança e do adolescente na América Latina. A concepção editorial que moveu esta convocação, por edital público, foi no sentido de a comunidade científica se mobilizar frente às relevantes questões infligidas à população de crianças e adolescentes latino-americanos que, mesmo na ausência de eventos excepcionais, têm suas vidas afetadas, limitadas, impedidas, e, algumas vezes, destruídas pela não garantia de direitos mínimos à saúde. Em uma infeliz coincidência, o tema saúde se tornou um dos mais, senão o mais, relevante deste ano, em função do acontecimento devastador da pandemia do COVID-19.
Se por um lado, neste contexto, o conceito de “doença” se fez presente, por outro, a discussão sobre saúde pôde ser amplificada na sua compreensão, uma vez que não apenas atrelada a sua concepção, hoje entendida como ultrapassada, de “ausência de doença”. Ao longo de 2020, pudemos constatar como a dimensão biopsicossocial, e mais ainda, a discussão sobre a promoção da saúde está atrelada às possibilidades de preservar nossas atividades – físicas e laborais, por exemplo, – e de manter nossos contatos sociais e laços afetivos. A questão da saúde, portanto, afeta, e é afetada, por um amplo escopo de vivências sem as quais se sucumbe no sofrimento e na doença.
Da mesma forma, foi um ano em que nunca antes a ciência esteve tão em cheque. Por isso, foi com muito alegria, que mesmo neste contexto difícil e adverso, celebramos mais de 40 artigos submetidos, de diversas regiões e estados do país, de diferentes países da América Latina, a partir de diferentes disciplinas, provendo discussões, do biológico ao social, do organismo ao sujeito, incluindo áreas do saber que, tradicionalmente, têm estado periféricas na discussão sobre saúde. Destacamos esse panorama, pois no contexto de descrédito e descrença no discurso científico, na prevalência de narrativas, das chamadas fake news, nossa aposta na divulgação científica se renova – uma ciência que possa favorecer a cidadania e ser de acesso a todos e todas. Todavia, o processo científico é custoso, leva tempo e necessita de validação de pares; somente esse percurso laborioso é que garante seu estatuto de verdade, diferentemente do quê é veiculado muitas vezes de forma “digerível” e inconsequente nas redes sociais.
Apresentamos a Edição Temática SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA AMÉRICA LATINA, coordenada pelas professoras Renata Alves de Paula Monteiro e Lucia Rabello de Castro, que tem o objetivo de divulgar ações, experiências e relatos de pesquisas e intervenções na área da saúde da criança e do adolescente. Apresentam-se aqui, na seção Temas em Destaque, 15 artigos que trazem a discussão a partir de um enfoque multidisciplinar, compreendendo a interrelação de aspectos físicos, orgânicos, psicossociais e culturais da saúde, e retratando as singularidades e especificidades de cada contexto, e de cada país da América Latina.
Um número importante dos artigo submetidos tratou dos possíveis efeitos e consequências da pandemia para crianças e adolescentes em sua saúde mental, nas condições de seu laço familiar. Neste sentido, o artigo Cuidado infantil y lazos sociales: aislamiento social de niños y niñas durante la pandemia del COVID-19 en la Argentina, de Juan Alexis Serantes, María Malena Lenta, Brenda Riveros, Graciela Zaldúa aborda as transformações dos laços sociais de crianças a partir do contexto de isolamento social, e dos efeitos deste nos espaços familiares e escolares de famílias na região metropolitana de Buenos Aires. Destaca-se como as mudanças na relação com o tempo e o espaço, no contexto de isolamento social, implicou uma reconfiguração na organização da vida, da rotina familiar, afetando de maneira significativa o laço social das crianças. Da mesma forma, lançando mão de metodologias de pesquisas feitas em formato remoto (entrevista e questionário virtuais), o artigo A influência da iluminação nas emoções de jovens no contexto da pandemia de COVID-19, de Juliana Mara Batista Menezes Hybiner e Giselle Arteiro Nielsen Azevedo, traz um estudo realizado durante a pandemia com jovens estudantes do curso de arquitetura e urbanismo da cidade de Juiz de Fora (MG) sobre a influência da iluminação no impacto sobre a subjetividade. A pesquisa revelou que as emoções consideradas positivas estão diretamente relacionadas a lugares com condições de conforto luminoso adequado, incluindo aberturas para o exterior e contato com a natureza. Ambientes com ausência das condições favoráveis relatadas nesse estudo, além de influenciarem de modo negativo nas emoções, parecem comprometer o senso de identidade desses jovens.
Saúde como direito é um horizonte importante introduzido pela Constituição de 1988, em seu artigo 5º, mas ainda pouco alcançado, seja pelas dificuldades de acesso implicadas na dimensão continental do país, seja pelo contexto de grande precariedade social, negligência, preconceito e exclusão no qual determinados grupos ainda se encontram e do qual fazem parte crianças, adolescentes e jovens na América Latina. Os artigos Enfermedades de niñas/os mbyá-guaraní. Tratamientos en un entramado de relaciones, de Alfonsina Cantore, Los olvidados de la agenda en salud: diversidad funcional en niños y jóvenes en territorios rurales de la frontera guatemalteco-mexicana en la zona cultural mam, de Verónica Haydee Paredes Marín, “Sem um pingo de cor”: experiências de crianças e adolescentes com a Doença falciforme na Paraíba, de Bruna Pimentel Tavares, Ednalva Maciel Neves e Flávia Ferreira Pires, Contribuições da literatura internacional para o cuidado em saúde mental de adolescentes em conflito com a lei no Brasil, de Rafaelle CS Costa, Fernanda Papa Buoso, Thales Vinícius Mozaner Romano e Marina Rezende Bazon, e Circuitos e circulação de crianças e adolescentes no centro de São Paulo: as políticas de saúde entre cuidado e controle, de Gabriel Rocha Teixeira Mendes, Maria Cristina Gonçalves Vicentin, têm, em comum, o fato de trazerem para discussão questões relacionadas à saúde física e mental de crianças e adolescentes que, por questões geográficas, culturais, raciais, sociais e assistenciais, encontram-se muitas vezes à margem do acesso à saúde. A partir das evidências trazidas por estas pesquisas científicas, sinaliza-se com o alerta da necessidade de que políticas públicas e práticas assistenciais de saúde busquem uma maior inclusão destes sujeitos.
O tema da violência sexual se fez presente também nos trabalhos submetidos. A edição traz aqui o artigo Violência sexual contra crianças e adolescentes: análise das notificações a partir do debate sobre gênero, de Maira de Maria Pires Ferraz, Milene Maria Xavier Veloso e Isabel Rosa Cabral, que apresenta um estudo extensivo tendo como base o Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) no município de Belém (PA). O retrato apresentado mostra que a discussão sobre violência de gênero parece ser fundamental para se tratar a violência sexual, uma vez que as meninas são mais vulneráveis à violência sexual. Já com o olhar sobre as práticas de cuidado e escuta dessas situações, o artigo Meninos não choram: estudo sobre um caso de abuso sexual infantil, de Leonardo Ribeiro Gonçalves de Oliveira, Leonardo Câmara e Fernanda Canavêz problematiza, a partir de um estudo de caso, os entraves e as dificuldades no acompanhamento a crianças vítimas de abuso sexual, apontando a importância de dispositivos de reuniões e discussão nas equipes e na rede de saúde pública, como forma de se tratar os “mecanismos de defesa dos profissionais diante do horror da violência”, o quê, se não for cuidado, pode contribuir para o ciclo de violência.
A interdisciplinaridade e a necessidade de se poder dar voz e palavra às crianças e adolescentes como forma de cuidado e promoção da saúde se fazem presentes em muitos dos artigos submetidos. O diálogo entre educação e saúde e o destaque ao papel da escola na promoção da saúde é discutido através da experiência do projeto de extensão, apresentado no artigo A escola como promotora da saúde mental e do bem-estar juvenil: oficinas pedagógicas com adolescentes, de Sonia Maria Ferreira Koehler, Nathália Garcia Panacioni Gonzales e Júlia Barbeito Marpica. O projeto apresentado foi desenvolvido no ano de 2019 com alunos do Ensino Médio de uma escola estadual, e teve como objetivo construir coletivamente a proteção e a promoção da saúde mental e bem-estar dos jovens, não só dentro, mas também fora do ambiente escolar, contribuindo assim para a construção de um desenvolvimento integral e plural. Já a experiência discutida no artigo Discutindo projetos de vida com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, de Cláudia Gersen Alvarenga, Laís Barbosa Patrocin e Lucas Barbi é baseada no quê os autores nomearam como “oficinas de educação em saúde”, e apesar de não ocorrerem em ambiente escolar, também visaram a educação em saúde através da discussão de “projetos de vida”.
Ainda no escopo do diálogo entre educação e saúde, o artigo Os “nós” da rede: a construção de ações intersetoriais na prevenção ao uso de drogas com jovens escolares, de Edna Linhares Garcia, Mariana Soares Teixeira, Kamilla Mueller Gabe, Gabriela da Silva Oliveira, Denise Vidal, Rayssa Madalena Feldmann e Letiane de Souza Machado, discute, a partir do recorte de uma pesquisa realizada nos serviços de saúde mental do município de Santa Cruz do Sul – que atendem jovens usuários de substâncias psicoativas -, o trabalho da intersetorialidade na rede básica do município através do Programa de Saúde na Escola. Esse programa trata da promoção de saúde e prevenção ao uso e abuso de drogas por escolares. O trabalho indica ainda um grande distanciamento entre as instituições de saúde e as da educação, apontando a urgência do desenvolvimento de ações que melhorem a articulação entre esses dois setores.
Por último, os artigos Bullying e associação de comportamentos de risco entre adolescentes da Região Norte: a partir da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, 2015, de Renata Ferreira dos Santos e Eliseu Verly Junior, Evaluación del desarrollo psicomotor: pruebas de screening latino-americanas, de Ana Laguens e Maira Querejeta, e La tecnologización de la crianza, de Maria Claudia Delgado e Maria Elisa Cattaneo, trazem referenciais e campos disciplinares bem distintos, como a enfermagem e a psicologia, mas que, juntos, apontam, nesta edição, para a função, o rigor e a importância do uso de pesquisas de metodologia quantitativa, e sua potência para aprofundar as discussões sobre questões relevantes no campo da saúde das crianças e adolescentes da América Latina.
Na seção Espaço Aberto trazemos a entrevista Reflexões e debates emergentes sobre justiça juvenil, realizada com a pesquisadora portuguesa Maria João Leote de Carvalho por Jaluza de Arruda. Nessa entrevista, Maria João discute como os procedimentos e práticas da justiça juvenil tem se havido com as transformações dos mundos sociais da criança e do jovem.
Duas resenhas de publicações recentes abordam as novidades bibliográficas do campo da infância e juventude. Uma delas, feita por Florencia Paz e Marina Medan, versa sobre o livro de Isacovich e Grinberg, Infancias y juventudes a 30 años de la Convención sobre los Derechos del Niño: políticas, normativas y práticas en tensión onde se faz um balanço dos 30 anos da Convenção Internacional de Direitos da Criança na Argentina. A outra resenha, feita por Ana Maria E. Hernandez, analisa o livro coordenado por Hernández, Pérez e Rodríguez, Repensando el juvenicidio desde la Frontera Norte (México), onde se tematiza a violência sofrida pelos jovens, fenômeno cuja complexidade demanda uma análise multicausal e multidisciplinar.
Finalmente, temos o panorama bibliográfico que a DESIDADES brinda aos seus leitores e leitoras, trazendo nesta edição o levantamento de 20 obras recém lançadas no campo da infância e juventude na América Latina.
Esperamos que todo este conjunto de leituras estimule a reflexão, as trocas acadêmicas e científicas e outras pesquisas sobre crianças e jovens na América Latina.
Saúde a todos e todas!
Renata Alves de Paula Monteiro
Editora Associada
Lucia Rabello de Castro
Editora Chefe