Editorial Ed. 30

Desde março de 2020, temos vivenciado mundialmente os efeitos nefastos da pandemia de Covid-19 sobre a vida da população. O risco de contágio e as medidas de prevenção, como o isolamento social e o distanciamento físico, vêm impactando diretamente nas mobilidades dos sujeitos, especialmente das gerações mais jovens. Repentinamente, muitas crianças e jovens se depararam com o fechamento de escolas, universidades, espaços culturais e de lazer, aulas foram mudadas para modelos de ensino online em casa e a necessidade de distanciamento físico, isolamento social e restrição das mobilidades físicas se fez premente.

É inegável o quanto a realidade pandêmica vem escancarando e aprofundando as desigualdades e as condições de precariedade social no contexto latino-americano. Os efeitos da pandemia e as restrições às mobilidades decorrentes desta nova realidade vêm sendo experimentados de forma desigual pelas crianças e jovens de diferentes contextos e territórios. Muitos jovens já afetados por desigualdades estruturais e pela pobreza, ou então inseridos em territórios de conflito, se veem diante de um paradoxo: por um lado, são demandados a diminuir a mobilidade para prevenir a disseminação e o contágio pelo vírus e, por outro lado, necessitam da mobilidade para garantir o sustento básico e a sobrevivência, ou ainda para fugir da pobreza e de situações de conflito (DEJAEGHERE; BAUTISTA, 2020).

Neste sentido, fica evidente que a liberdade e a possibilidade de estar imóvel – permanecer e trabalhar de casa e, consequentemente, proteger-se – é um privilégio para alguns. Essa realidade nos aponta para a existência de um “capital de mobilidade”, no sentido da distribuição desigual das condições, em relação aos recursos físicos, sociais e políticos circundantes para o movimento, considerando também as estruturas legais que regulam quem, ou o quê pode e não pode se mover. Portanto, a mobilidade e a imobilidade relacionam-se com geografias e políticas de poder (SKELTON, 2013). O olhar sobre como esta questão do poder se relaciona com as mobilidades e com a apropriação dos espaços se faz importante para pensarmos as condições de vida de crianças e jovens na América Latina.

Apresentamos nesta edição a Seção Temática MOBILIDADES E TERRITORIALIDADES DE CRIANÇAS E JOVENS NA AMÉRICA LATINA, coordenada pelas professoras Sabrina Dal Ongaro Savegnago e Lucia Rabello de Castro, que foi objeto de um Edital público lançado por este periódico em 2020. Ele teve como objetivo convocar autores/as de modo a reunir, a partir de um enfoque multidisciplinar, relatos empíricos e discussões teóricas que contribuam para o aprofundamento da análise e compreensão das mobilidades e territorialidades de crianças e jovens latino-americanos, tendo em vista as condições estruturais e relações de poder envolvidas, imaginários, motivações, aspirações, dentre outros aspectos.

A Seção Temática está composta por oito artigos, de campos disciplinares diversos. Os textos confluem no sentido de trazer à vista questões relacionadas ao direito de crianças e jovens à cidade, aos desafios, tensões, contradições e oportunidades com os quais estes sujeitos se deparam em suas mobilidades e nos territórios que habitam.

Se, por um lado, as mobilidades pelo espaço urbano podem oportunizar para crianças e jovens experiências favoráveis, como a possibilidades de entretenimento, convivência com os pares e busca de oportunidades, por outro lado, destaca-se a vivência de diversos constrangimentos ao seu deslocamento, relacionados às imprevisibilidades negativas, que por vezes podem ameaçar a própria sobrevivência.

Podemos afirmar que as jovens se movem pela cidade sendo mais constrangidas em suas mobilidades, quando comparadas aos rapazes. O medo em relação à violência de gênero é um dos fatores que mais influencia na restrição da mobilidade urbana das mulheres, limitando suas opções de deslocamento, o uso de determinados serviços e a ocupação de determinados espaços. Neste sentido, o artigo Desafios à circulação de jovens mulheres na cidade do Recife, de Jaileila Araújo Menezes, Débora Carla Pereira Calado e Juliana Catarine Barbosa Silva, aborda a temática juventudes e direito à cidade, tendo em vista como jovens mulheres negras e periféricas do Recife se relacionam com os desafios impostos pela cidade. O debate parte de uma perspectiva interseccional, considerando as marcações de pertencimento territorial, raça, classe, gênero e geração, as quais influenciam de modo contundente a forma como esse acesso à cidade é realizado.

A intensificação da violência armada nos territórios periféricos, que tem produzido efeitos nas mobilidades urbanas, sobretudo na restrição do acesso a diversos espaços e serviços, foi discutida no artigo Fórum de Escolas do Grande Bom Jardim: práticas de enfrentamento à violência armada em territorialidades escolares de periferias de Fortaleza, de Laisa Forte Cavalcante, Larissa Ferreira Nunes, Ingrid Rabelo Freitas, Tadeu Lucas de Lavor Filho, João Paulo Pereira Barros e Luciana Lobo Miranda. O Fórum de Escolas, apresentado no artigo, se propõe a debater estratégias conjuntas de enfrentamento das implicações da violência armada nas escolas, além de traçar algumas ações a serem realizadas em territorialidades periféricas para fomentar espaços coletivos de discussão e de fortalecimento dos vínculos escolares.

A temática do direito à cidade e da ocupação dos espaços públicos pelas crianças e jovens se fez presente em um número importante de artigos submetidos. O artigo Da cidade fragmentada à cidade como espaço de brincar: a invenção de uma metodologia lúdica de pesquisa, de Alice Vignoli Reis e Mônica Botelho Alvim, traz os resultados de um estudo que propõe o exercício de experimentações clínico-artísticas do espaço urbano, a partir da perspectiva de pesquisar junto com as crianças e os adolescentes. No artigo Belo Horizonte, uma cidade educadora(?): uma análise das ações e políticas públicas voltadas para a infância, Luciano Silveira Coelho, Túlio Campos, Sheylazarth Presciliana Ribeiro e Éder Fernando Souza Cruz refletem sobre a presença do Município de Belo Horizonte na Associação Internacional das Cidades Educadoras e questionam se as ações que visam promover a cidadania infantil realizadas pelo município têm garantido a efetiva apropriação do espaço público pelas crianças. Já o artigo Mobilidade e autonomia na vivência de crianças urbanas: uma etnografia do parque público infantil, de Milene Morais Ferreira e Patrícia Maria Uchôa Simões, aborda as formas de apropriação dos espaços de um parque público infantil por crianças pequenas, tendo em vista as mobilidades, a utilização dos espaços e equipamentos pelas crianças, as relações inter e intrageracionais que ali se estabelecem e a questão da autonomia.

O tema da autonomia de movimento como um direito também se fez presente no artigo Infancias y autonomías: condicionantes de la movilidad independiente en el Área Metropolitana de Buenos Aires, de Carla Arévalo e Pablo De Grande, que buscou analisar, a partir de um levantamento realizado pelo Instituto Nacional de Estadísticas y Censo (INDEC) e pelo Ministério do Transporte da Argentina, as condições da autonomia na mobilidade cotidiana de crianças e adolescentes na Área Metropolitana de Buenos Aires.

Quando consideramos o tema das mobilidades de crianças e jovens, é necessário também termos em vista a realidade das migrações, que impactam diretamente a vida destes sujeitos. No artigo Atravessar fronteiras e transpor barreiras: desafios e deslocamentos de crianças e adolescentes venezuelanos em Roraima – Brasil, a pesquisadora Janaine Voltolini de Oliveira discute as circunstâncias dos deslocamentos de crianças e adolescentes venezuelanos para o Brasil, especificamente para o estado de Roraima, e os desafios da garantia da proteção integral do público infantojuvenil migrante neste estado.

Por fim, o artigo Movilidades infantiles en pandemia: develando espacialidades invisibles de la niñez en Latinoamérica, de Susana Cortés-Morales, Gabriela Guarnieri de Campos Tebet e Jenny Patricia Acevedo-Rincón, reflete sobre como as diversas medidas tomadas diante da pandemia de Covid-19 têm reconfigurado as mobilidades e espacialidades de crianças, particularmente no Brasil, Chile e Colômbia. As autoras trazem à tona a questão das mobilidades que ocorrem dentro dos limites físicos do espaço doméstico, que são usualmente ignoradas pelos estudos das mobilidades infantis, mas que no contexto pandêmico atual tornam-se mais evidentes. A mobilidade de bebês – grupo etário geralmente pouco visibilizado nos estudos sociais e geográficos da infância – e suas micro-geografias também são objetos de análise deste estudo.

Nesta 30ª edição, trazemos ainda dois artigos na Seção Livre do Temas em Destaque. O artigo “Sinto que renasci”: a inserção de adolescentes em um Programa de Proteção, de Bianca Orrico Serrão, Juliana Prates Santana e Maria Jorge Santos Almeida Rama Ferro, traz à tona a questão do aumento da violência letal contra jovens no Brasil, que coloca em risco as vidas de uma parcela significativa de adolescentes, principalmente negros/as, moradores de territórios periféricos e da região Nordeste do país. O estudo analisa os sentidos subjetivos atribuídos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) por adolescentes em proteção no estado da Bahia. Já o artigo UNICEF, (des)colonidades e infâncias: vidas negras importam, de Dolores Cristina Gomes Galindo, Anderson Reis de Oliveira e Mateus Moraes de Oliveira, problematiza as práticas de descolonizações racistas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) face às crianças e adolescentes no Brasil.

Dialogando com a Seção Temática desta edição, a seção Espaço Aberto traz a entrevista La niñez y los actuales procesos migratorios en la región latinoamericana, realizada com Pablo Ceriani Cernadas e conduzida por Indira Granda e Julián Loaiza de la Pava. A entrevista traz uma discussão, a partir do campo dos direitos, sobre as características, as condições e a complexidade das causas da migração de crianças e adolescentes na América Latina. Aborda a presença, nos últimos anos, de crises migratórias e de novos processos de mobilidade na região latino-americana, onde se evidencia um número cada vez mais elevado de crianças e adolescentes em deslocamentos forçados. Refere ainda algumas perspectivas sobre os efeitos da pandemia nos fenômenos migratórios nesta região.

Na seção de Informações Bibliográficas, Rachel Gouveia Passos nos apresenta o livro Racismo na Infância, escrito por Márcia Campos Eurico, que tematiza como as marcas do racismo se fazem visíveis na realidade de crianças e adolescentes negros/as vinculados/as a serviços de acolhimento institucional. O livro destaca os elementos que constituem o racismo institucional no Brasil e como este pode ser identificado em diversos âmbitos da sociedade.

Ainda na seção de Informações Bibliográficas, temos o levantamento de 33 publicações na área de infância e juventude, lançadas neste último trimestre, no âmbito das ciências humanas e sociais, nos países da América Latina.

Desejamos uma ótima leitura, saúde e vacina a todos e todas!

Sabrina Dal Ongaro Savegnago
Editora Associada

Referências Bibliográficas

DEJAEGHERE, J.; BAUTISTA, C. S. Mobility, youth livelihoods and wellbeing in the time of a pandemic. Youth Circulations, 24 jun. 2020. Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2021.

SKELTON, T. Young people’s urban im/mobilities: relationality and identity formation. Urban Studies, v. 50, n. 3, p. 467-483, fev. 2013.