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Adolescência e suas marcas: o corpo em questão

Corpo e adolescência: para além de um paralelismo bio

Para Papalaia e Feldman (2013), a passagem da infância para a vida adulta é marcada pela puberdade, com a maturação sexual de adolescentes e jovens. Para esses autores, a puberdade envolve alterações físicas dramáticas. Tais mudanças fazem parte de um longo e complexo processo de maturação que se inicia antes do nascimento e perdura por toda a vida adulta. Há a produção de vários hormônios, dentre os quais, a liberação de gonadotropina (GnRH) no hipotálamo eleva os hormônios luteinizante (LH) e o estimulador dos folículos (FSH). O aumento de FSH nas meninas leva ao início da menstruação. Nos meninos, o LH inicia a secreção de testosterona e androstenediona.
Toda essa orquestração hormonal, tão decisiva e central para os estudos sobre o organismo, ganha um aspecto preponderante nos estudos sobre puberdade. Todavia, parece acentuadamente insuficiente quando relacionada à demarcação da adolescência e juventude. A puberdade enquanto conjunto de modificações biológicas sistemáticas é mais universalizável, conquanto a adolescência e a juventude são construções historicamente datadas e circunstanciadas.

Para Le Breton (2007), nas nossas sociedades, a adolescência é o tempo necessário à domesticação de um organismo que muda, um pensamento renovado sobre o mundo, uma abertura ao outro, uma aprendizagem de ser homem ou mulher, uma crescente autonomia de movimento, um redespertar da sexualidade. Esse período vai das transformações da puberdade à entrada na vida adulta e traduz uma lenta transformação do sentimento de identidade através das experimentações dos jovens (LE BRETON, 2017).

Já o termo adolescência, na Psicanálise, surgiu contemporâneo à ênfase no primado da genitalidade, que teve Franz Alexander seu defensor mais radical, insistindo numa ideia de que o genital seria o objetivo de um tempo posterior, seria a finalidade para onde caminhariam as pulsões anárquicas da infância, portanto, um tempo de amadurecimento, de harmonização do psíquico. Tudo indica que o termo só teria sido utilizado a partir de 1923 e que primeiramente foi citado por Ernest Jones (ALBERTI, 1996). Essa ideia de genitalização como um fim melhor para o qual a adolescência se dirigia era absolutamente tributária à concepção evolucionista e à ideia de progresso, vertentes que a obra freudiana muitas vezes reafirmou.

Freud apoiou-se em uma visão de constituição filogenética do psiquismo humano segundo a qual poderíamos encontrar, no psíquico, marcas de outros momentos da evolução da espécie humana. Em Totem e Tabu, por exemplo, Freud [1913]/(1996)2 se pergunta sobre a origem da civilização humana e descreve o mito como uma sequência linear e progressiva no desenvolvimento do social, no qual a família seria a fase mais evoluída da horda humana. Sua psicogênese da sexualidade, por sua vez, deu margem à compreensão de fases sequenciáveis do desenvolvimento, que corroborariam para uma maturidade genital correlacionada a uma tendência final para a organização da libido (FREUD, [1905]/1987a).

Se, no entanto, essa visão de genitalização foi talhada pelo pensamento psicanalítico, foi também a partir da Psicanálise que pudemos encontrar uma outra compreensão da adolescência. Ao postular a existência da sexualidade infantil e sua importância, Freud (1987a) rompeu com uma visão que associava sexualidade à puberdade. Nesse sentido, a sexualidade não seria uma prerrogativa do púbere e posteriormente do adulto, mas já estaria posta desde a infância e, ainda mais, a sexualidade infantil seria uma matriz fundamental do sujeito ao longo de toda a sua vida, o que significa dizer que ela perduraria por toda a vida. Isso nos dá a magnitude da importância do infantil em Psicanálise, o que, de certa forma, explica a pouca referência freudiana em relação à adolescência. Mais precisamente, Freud (1987a) se refere à puberdade, e não à adolescência, o que só vem a ser feito por trabalhos psicanalíticos posteriores (ALBERTI, 1996). Porém, ainda que a sexualidade infantil perdure por toda a vida, ela sofrerá modificações e não deixará de ser considerada um marco.

Nessa ótica, também possibilitada pela Psicanálise, “a infância não desaparece nunca, assim como nunca se alcança uma maturidade sexual absoluta, contraposta à sexualidade infantil. As organizações sexuais infantis estão contidas na adulta: seus elementos persistem, ainda que revalorizados ou ressignificados” (TUBERT, 1999, p. 13) numa configuração nova, diferente. Nessa visão, Freud se afasta do domínio da biologia e insere as manifestações somáticas na esfera intrapsíquica (ASSOUN, 1997). Essa nova configuração, favorecida pela puberdade, envolveria mudanças em relação à economia da libido, à diferenciação homem e mulher e à escolha do objeto sexual, ao reencontro do objeto perdido, à angústia infantil num grande palco que seria a revivescência do complexo de Édipo (FREUD, 1987a, 1987b). Porém, ainda que para a Psicanálise na adolescência se dê uma reedição do conflito edípico e que esse seja um ponto importante deflagrado pela puberdade, essa repetição se configura “sobre uma nova base, pois cada experiência vivida influi decisivamente no desenvolvimento posterior; os elementos de fases anteriores são retidos e, ao mesmo tempo, o novo não desloca o antigo, mas o transforma” (TUBERT, 1999, p. 13), o que colocaria em jogo a questão da sucessão. Se o novo e o antigo subsistem, não há como falar em sucessão linear, em que uma fase seria substituída por outra, deixando, assim, de existir.

É importante notar que não só se abre um campo de diferenças entre puberdade e adolescência, mas que há uma importante articulação entre ambas, convencionando ser a puberdade – fenômeno comumente estudado mais por seu viés orgânico – justamente a entrada para a adolescência. É também nessa dialética entre um organismo que funciona de forma parcialmente invisível, crescendo com seu sistema de regulações autônomas, e um sujeito que se desenvolve social e psiquicamente que foi sendo construída a categoria de adolescência.

Principalmente a Psicologia, mas também a Psicanálise e a Medicina, enquanto saberes que se ocuparam das origens da construção da categoria adolescência, fizeram-no principalmente calcadas sobre o ideário de maturação. Como podemos ler de um pioneiro da Psicologia, “a palavra ‘adolescência’ vem do verbo latino adolescere, que significa ‘crescer’ ou ‘crescer para a maturidade’” (HURLOCK, 1979, p. 2). Assim, o curso do desenvolvimento psíquico não contradizia o próprio curso da vida humana, que era entendido como uma “sequenciação sistematizável, ordenada segundo os princípios de complexidade e aperfeiçoamento crescentes” (CASTRO, 1997, p. 29).

Maturidade como finalidade de um tempo previsível, “no próprio consenso popular, a maturidade não é coisa que se conquista e, sim, coisa que se espera ou aguarda. Tradicionalmente, referimo-nos aos processos de maturação em termos de espera. Falamos em esperar ou em deixar amadurecer” (WEISSMANN, 1966, p. 11), ou seja, um tempo previsível, que bastaria passar. Nesse sentido, a vida humana deveria transcorrer fases que não só seriam encadeadas, sucessivas, mas que deveriam se ultrapassar. Mas, como já apontamos em outro trabalho (CARNEIRO, 2002), talvez a confusão do pensamento progressista foi identificar simetricamente crescimento com emancipação. Nesse pensamento, em que a história individual seguiria o mesmo caminho da evolução das espécies, o crescimento biológico passou a ser sinônimo de crescimento psicológico.

As ciências psicológicas passaram, então, a se preocupar com esse trajeto individual do mais primitivo ao mais evoluído, ou seja, da criança para o adulto. É nessa linha de direção que foi construída a ideia de desenvolvimento, de que a criança deveria crescer, não só de tamanho, mas intelectualmente, que deveria tornar-se mais forte, alargar-se, instruir-se. Vislumbrou-se um movimento psíquico simétrico ao físico, ou que, no mínimo, deveria acompanhar esse crescimento natural. Como podemos ler em Aberastury e Knobel (1970, p. 13), uma grande teórica do desenvolvimento, “as mudanças psicológicas que se produzem neste período, e que são a correlação de mudanças corporais […]”.

Nesse sentido, acreditava-se numa previsibilidade desse trajeto, pois assim como se sabia que, salvo nenhuma aberração, a criança se transformaria biologicamente num adulto, psiquicamente ela deveria adquirir aquisições e habilidades que também acompanhariam esse desenvolvimento.

Se toda essa discussão se deu na origem da construção da categoria adolescência, o final do século passado, nos diferentes campos de saber que se ocuparam da adolescência, assistiu-se a uma grande mudança nesse paralelismo mais estrito entre o biológico, o psicológico e o social.

Essa mudança nas concepções de corpo exerceu certa crítica ao paralelismo biológico. Numa visão mais histórica entendeu-se que cada sociedade, no interior de sua visão de mundo, produz um saber singular sobre o corpo, envolvendo seus elementos constitutivos, suas performances, suas correspondências, conferindo-lhe sentido e valor. Como afirma Le Breton (2003, 2007, 2009), nas mais diversas sociedades, o corpo tende a tornar-se a matéria-prima a ser modelada segundo o contexto do momento.

Ainda que um grande deslocamento das concepções de corpo articuladas à origem da construção da categoria adolescência tenha sido efetivado, as injunções do mercado e as novas formas de viver parecem relançar de outro modo um ideário bio. Na atualidade, as concepções sobre o corpo estão francamente ligadas ao avanço do individualismo, enquanto estrutura social, representado pela emergência de um pensamento racional, laico e, sobretudo, biomédico. Isso se torna mais evidente nas sociedades ocidentais, que pregam a liberdade individual. Ter um corpo e ser responsabilizado por ele, através do olhar biológico após a virada biopolítica (CASTIEL; DIAZ, 2007; ORTEGA, 2006, 2008), é mais importante do que ser o seu próprio corpo. Isso evidencia, conforme explica Le Breton (2007, p. 77), “o quanto o corpo estaria preso e subjugado ao espelho do social, marcando fortemente a convergência entre as performances sociais e identitárias a partir do forte controle estabelecido sobre as performances corporificadas”.

A ênfase crescente dada ao corpo em nossa sociedade contemporânea, aos diversos procedimentos médicos e de cuidados corporais e higiênicos marcam as chamadas identidades somáticas, as bioidentidades, as quais representam o deslocamento para a exterioridade do modelo mais internalista e intimista de construção de si. Essa ação tem como pano de fundo alguns dos processos mais importantes que se constituíram a partir das mudanças que atingiram o paradigma da clínica moderna e suas respectivas concepções sobre saúde e doença, normal e patológico, bem como os efeitos dos discursos e práticas médicas associadas ao impacto crescente das biotecnologias na constituição dessa nova subjetividade submetida ao corpo (ORTEGA, 2008). Esse discurso vem propondo uma ideia de corpo que pode ser “consertado” por meio do medicamento. Um corpo ao qual se deve compensar a incompletude, ou seu “déficit”, com técnicas e medicamentos apresentados como soluções ideais capazes de suprimir o mal-estar individual (LINDENMEYER, 2015). Para Vigarello (2016), o novo recurso ao corpo tornou-se a tentativa psiquicamente mais econômica de escapar da impotência e da dificuldade de pensar em si mesmo diante do incômodo de viver.

Retomando nossa discussão, como já delineado, a adolescência enquanto categoria de estudos teve em sua origem grande articulação bio/psicológica, amplamente questionada nos estudos posteriores, sobretudo quanto ao paralelismo desenvolvimental (CASTRO, 1997). Se, por um lado, o paradigma maturacional ligado aos ritmos biológicos parece razoavelmente já debatido, contemporaneamente, o corpo adolescente como objeto reinscreve uma articulação bio, que, a nosso ver, precisa de aprofundamento. Talvez não mais um paralelismo, mas um orgânico aparentemente mais controlável e moldável através dos avanços tecnológicos e farmacêuticos, subsumido ao que mostra a pele. Nessa nova lógica, as marcas adolescentes na pele como signos que, ao mesmo tempo que revelam, singularizam modos de pertencimento e distinção entre pares, afirmam identidades, possibilitando uma “verdadeira fabricação de si” ou ainda a “desmaternização” do corpo (LE BRETON, 2003). Assim, a “paixão do signo” significa entrar na cultura dos pares, no universo da imitação sob a égide do consumo, da imitação, como “um tipo de segundo corpo que vem protegê-los” (LE BRETON, 2017, p. 105).

Dessas provocações, afirmamos, aqui, um lugar de pensar o corpo não a partir dos paralelismos e fragmentações que os diversos campos de conhecimento atribuem a esse objeto, mas numa tentativa caleidoscópica de concebê-lo nas suas nuances e interfaces interdisciplinares, necessárias à compreensão dos estudos das adolescências e juventudes contemporâneas (JUPIASSU, 2006).

À guisa de conclusão

Iniciamos este artigo argumentando como o corpo jovem na atualidade conquistou certa visibilidade na cidade, sendo objeto de interesse e estudos. Essa presença se faz calcada numa proposta mais ampla de civilização, na qual esses corpos são compreendidos como sustentáculo de um depois e sobre os quais uma gama de direitos, atenção, cuidados e investimentos foram extensivos. Mas esse corpo que aparece na pólis é tanto único como universal, justamente apontando para as tensões que envolvem sua circunscrição como objeto.

Assim também podem ser lidas as marcas na pele, conquanto linguagens que tanto identificam os adolescentes como símbolos de pertencimento, quanto denotam um sofrimento que se escreve sobre a pele e que aparece nas estatísticas epidemiológicas. O corpo, então, nos conclama a pensar na intimidade e pessoalidade de um adolescente, bem como na expressividade de suas marcas em um grupo maior. Se essa multidimensionalidade do corpo adolescente pode, de certa forma, ser aludida no contemporâneo, o surgimento da categoria adolescência foi marcado por um forte paralelismo bio/psicológico.

Tecendo uma crítica a esse paralelismo e a relançando no contemporâneo, defendemos que o estudo do corpo se desenha numa via transversal no continente das ciências sociais, que cruza permanentemente outros campos epistemológicos (História, Antropologia, Psicologia, Psicanálise, Biologia, Medicina, Direito) diante dos quais espera-se que eles, conjuntamente, possam contribuir para o que é preciso conhecer sobre a problemática do corpo na adolescência.

2 – A data entre colchetes indica o ano de publicação original da obra. Nas citações seguintes será registrada apenas a data da edição consultada pelas autoras.

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Resumo

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a importância da temática do corpo nos estudos sobre adolescência e juventude. Corpo que faz presença na pólis tanto como palco de políticas públicas atuais de cuidado e atenção, como aporte de investimentos futuros. Também corpo expressivo que, através de suas marcas, pode nos falar de um campo simbólico para além de sua dimensão biológica. Por fim, corpo que problematiza a própria delimitação das categorias adolescência e juventude, apontando para a multidimensionalidade de sua compreensão.

Palavras-chave: corpo, adolescência, marcas corporais, interdisciplinar.

Adolescencia y sus marcas: el cuerpo en cuestión

Resúmen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la importancia del tema del cuerpo en los estudios sobre la adolescencia y la juventud. Un organismo que está presente en la polis tanto como escenario de las actuales políticas públicas de cuidado y atención, como aporte a futuras inversiones. También un cuerpo expresivo que, a través de sus marcas, puede hablarnos de un campo simbólico más allá de su dimensión biológica. Finalmente, un cuerpo que problematiza la delimitación de las categorías de adolescencia y juventud, apuntando a la multidimensionalidad de su comprensión.

Palabras claves: cuerpo, adolescência, marcas corporales, interdisciplinar.

Adolescence and its marks: the body in question

Abstract

This article aims to reflect on the importance of the body theme in studies addressing adolescence and youth. The body is present in the polis not only in the scenario of current care and assistance public policies, but also as a contribution to future investments. In addition, there is the expressive body that, through its marks, provides us with a symbolic field beyond its biological dimension. Finally, there is the body that problematizes the delimitation of the adolescence and youth categories, indicating the multidimensionality of its understanding.

Keywords: body, adolescence, body marks, interdisciplinary.

Data de recebimento: 31/08/2021
Data de aprovação: 11/10/2021

Beatriz Akemi Takeiti biatakeiti@medicina.ufrj.br

Terapeuta Ocupacional, docente do Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil.

Cristiana Carneiro cristianacarneiro13@gmail.com

Psicanalista. Pós-doutora, Paris VII. Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Coordenadora do NIPIAC e do Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) – Psicanálise e Educação.

Simone Ouvinha Peres simoneoperes@gmail.com

Professora Associada do Departamento de Psicologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Psicossociologia e Doutora em Saúde Coletiva.