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As crianças e seus mil dias: articulações entre saúde e educação

Marco legal da primeira infância: um avanço no Brasil

Apesar de em várias ocasiões os recursos serem limitados, em especial na área da saúde, em termos de legislação e com relação aos mil dias, o Brasil fez importantes avanços. O país tem uma lei específica que estabelece diretrizes para políticas públicas e garantias de direitos das crianças até seis anos, o denominado marco legal da primeira infância (MLPI), lei no 13.257, promulgada em 8 de março de 2016, que estabelece regras e princípios para proteção integral qualificada de crianças no período que abrange os seis anos completos (BRASIL, 2016).

Uma pergunta que muitas vezes se coloca é: por que deve existir um marco legal da primeira infância? O MLPI vem enfatizar para o Brasil, e para a sociedade em geral, a importância de colocar a primeira infância como política de Estado e ser parte da agenda do poder público, dos governos executivos dos diferentes entes federados. Trata-se de uma lei que pavimenta o caminho entre o que a ciência tem produzido sobre as crianças, do nascimento aos seis anos, e o que deve determinar a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância.

Algumas linhas que a lei vem reforçar incluem o direito da criança de brincar, de ser cuidada por profissionais qualificados na primeira infância, de ser prioridade nas políticas públicas; o direito a ter a mãe, pai e/ou cuidador em casa nos primeiros meses, com uma licença-maternidade e paternidade justas; o direito a receber cuidados médicos consistentes, especialmente aquelas que estão em condições de vulnerabilidade. Algumas das propostas aprovadas pela lei do MLPI incluem: i) garantir às crianças o direito de brincar; ii) priorizar a qualificação dos profissionais sobre as especificidades da primeira infância; iii) reforçar a importância do atendimento domiciliar, especialmente em condições de vulnerabilidade; iv) ampliar a licença-paternidade para 20 dias nas empresas que aderirem ao programa Empresa Cidadã; v) envolver as crianças de até seis anos na formatação de políticas públicas; vi) instituir direitos e responsabilidades iguais entre mães, pais e responsáveis; vii) prever atenção especial e proteção a mães que optam por entregar seus filhos à adoção e gestantes em privação de liberdade.

O MLPI tem uma proposta de execução intersetorial que significa uma articulação entre saúde, assistência social, educação, entre outras áreas. Um desafio para as políticas públicas já que a lei propõe a elaboração de planos para a primeira infância nos níveis federal, estaduais e municipais. Planos decenais a serem aprovados pelos poderes legislativos de cada ente da federação.

Desafios à implantação e ao aprimoramento de ações voltadas para os primeiros mil dias

Faz-se necessário enfatizar que a importância dos mil dias em relação à área da saúde, como apresentada anteriormente, tem suas ações e intervenções voltadas para diversas outras áreas, sendo assim interdisciplinar e intersetorial. Um exemplo, nesse sentido, ocorre na área da educação, objeto deste artigo. Essa compreensão da importância interdisciplinar e intersetorial do tema não é necessariamente assimilada pelos setores e indivíduos responsáveis por ações nessas áreas.

Nesse sentido, o primeiro obstáculo se dá no conhecimento da importância desse período, da necessidade de ações específicas voltadas para essa fase da vida e de seu caráter multidisciplinar e intersetorial, tanto no nível individual, por exemplo, através dos pais, cuidadores e professores, como no nível coletivo, através de entidades e organizações da sociedade civil. Nesse nível estão incluídas instituições formais do executivo, como o Ministério da Saúde, secretarias de saúde, além do terceiro setor. Entretanto, além do executivo, também é importante o envolvimento do legislativo e do judiciário.

O marco legal, comentado anteriormente, foi um avanço na área do legislativo. Porém, o esperado é que os municípios possam elaborar planos de ações para serem implementados nos seus territórios com ações bem definidas, incluindo ações na área da saúde, da assistência e da educação para esse período da vida. Além disso, resta também o desafio fundamental que é a sensibilização da sociedade civil para essa temática. Deve-se considerar que, embora os mil dias sejam prioritários para a vida futura do ser humano, outras doenças e afecções continuam a existir concomitantemente, gerando, assim, uma situação de conflito de prioridades. Isso ocorre em especial quando há poucos recursos a serem alocados para as diversas áreas, em especial para a educação e para a saúde. Portanto, um grande desafio é a integração das áreas da saúde e da educação na implementação de políticas com foco nos mil primeiros dias.

Mil dias da criança e a educação

Um poema de Loris Malaguzzi (1999), educador italiano bastante lido e citado no meio educacional, intitulado As cem linguagens da criança, serve de referência para fazermos uma analogia com os mil dias das crianças e suas mil possibilidades de abertura para o mundo e constituição de si. O poema diz que a criança é feita de cem: cem linguagens, cem mãos, cem modos de pensar, de escutar, de descobrir, de brincar, mas a educação e a cultura roubam-lhe 99. A crítica de Malaguzzi (1999) vai justamente na direção de construir uma educação capaz de devolver às crianças suas amplas possibilidades de se expressar, interagir, participar. Nossa aposta nos mil dias das crianças vai na direção das mil oportunidades a serem disponibilizadas a elas para que possam fazer uso das cem linguagens. Entretanto, tendo em vista as profundas desigualdades da sociedade brasileira, essa aposta só se viabiliza com forte investimento em políticas públicas, especialmente as que envolvem gestantes, famílias e crianças.

No que concerne à educação, cabe destacar que a Constituição Federal Brasileira, de 1988, considera a educação um direito de todos e dever do estado e da família a ser efetivado mediante a garantia de Educação Infantil, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos de idade (BRASIL, 1988). A Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica e se organiza em creche para crianças de zero a três anos e pré-escola para as de quatro e cinco anos. A Educação Básica obrigatória e gratuita vai dos quatro aos 16 anos de idade. No entanto, para a faixa etária da creche, é direito da criança e dever do Estado atender à demanda por esse serviço. Para isso, o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 prevê a realização, em regime de colaboração, de levantamento periódico da demanda por creche para a população de até três anos como forma de planejar a oferta e verificar o atendimento da demanda manifesta. Embora esses estudos nem sempre se efetivem, a demanda manifesta nos períodos de matrícula, em diversos municípios, evidencia que o direito à creche ainda não está garantido a todas as crianças, e isso tem consequências para crianças e suas famílias.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2016 a 2019, a parcela de crianças matriculadas em creches saltou de 30,4% para 35,6%. Apesar dessa ampliação da oferta de vagas na creche, nos próximos anos, muito ainda terá de ser feito para se chegar à meta do PNE de atendimento de 50% das crianças de zero a três anos até o final de 2024. Por sua vez, desmembrando essa média de 35,6% de cobertura de atendimento às regiões brasileiras, observamos uma grande desigualdade regional: Norte – 17,6%; Nordeste – 31,3%; Centro-Oeste – 28,2%; Sudeste – 42,4%; Sul – 43,3%. Desigualdades de acesso que não só se expressam regionalmente, como também em relação à população urbana e rural e às crianças de diferentes estrados sociais.

Em que pese a importância dessa expansão, faz-se necessária a sua continuidade de forma mais igualitária e com qualidade socialmente referenciada. Como aponta Campos (2013, 2020), é o atendimento com qualidade que faz a diferença ao longo da vida das crianças. Embora o conceito de qualidade seja complexo, pois inclui questões contextuais e de julgamento de valor, há alguns consensos construídos, como apontados pelo campo da saúde e do MLPI, tais como: formação de professores, planejamento pedagógico, infraestrutura, contexto relacional, entre outros.

Por sua vez, o Ministério da Educação (MEC) também tem produzido documentos que discutem a qualidade na Educação Infantil, dentre eles, destacamos o documento “Indicadores de Qualidade na Educação Infantil”, uma proposta de autoavaliação institucional que apresenta sete dimensões que ajudam a delimitar o tema no campo educacional, quais sejam: i) planejamento institucional – indica que há intencionalidade no que se propõe às crianças; ii) multiplicidade de experiências e linguagens – aponta a importância de ampliação das experiências e expressões das crianças na primeira infância; iii) interações – são entendidas como pontos-chave das propostas pedagógicas, eixo do trabalho com as crianças; iv) promoção da saúde – a Educação Infantil é considerada um lugar de atenção e de cuidados básicos às crianças, que inclui o bem-estar geral delas, alimentação, sono, higiene, entre outros aspectos, e a não separação entre educar e cuidar; v) espaços, materiais e mobiliário – traz a importância da adequação dos ambientes, do que e como se disponibiliza às crianças para um convívio coletivo e vivência de experiências significativas; vi) formação e condições do trabalho dos(as) professores(as) e demais profissionais – aponta a importância de pessoas qualificadas para o atendimento educacional, a presença de professores(as) que pensem uma pedagogia própria para a primeira infância, a valorização desses(as) profissionais e de suas carreiras docentes; vii) cooperação e troca com as famílias – destaca a manutenção e ampliação do diálogo com as famílias como parte da proposta pedagógica de cada instituição (BRASIL, 2009).

Essas sete dimensões da proposta do MEC de autoavaliação institucional impõem a intensificação de investimentos em infraestrutura e na formação de professores e gestores para desenvolverem o trabalho educativo junto às crianças e suas famílias. Investimentos que cabem aos diferentes entes da federação – União, estados e municípios – no exercício do regime de colaboração, e não apenas a cada um dos 5.568 municípios, que têm se mostrado nas estatísticas do IBGE como os elos mais frágeis da federação. Políticas públicas para a infância que façam valer o regime de proteção integral das crianças e jovens postulado pelo Estatuto da Infância e da Adolescência (ECA) (BRASIL, 1990).

Cabe ressaltar que foi a partir da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, que a Educação Infantil passou a ser a primeira etapa da Educação Básica e que a docência na creche se tornou um tema para estudos e pesquisas do campo educacional (BRASIL, 1996). A inserção do atendimento às crianças de zero a três anos em instituições educativas passou a demandar estudos e discussões sobre as peculiaridades da proposta educacional para e com bebês e crianças pequenas no espaço público, coletivo e democrático da escola. Proposta que, sendo intencional, exige teorização. Por sua vez, a não desassociação entre cuidados e educação para a primeira infância evidencia a necessidade de diálogo entre educação e diferentes áreas do conhecimento. Portanto, a produção de conhecimentos do campo educacional para a especificidade do trabalho pedagógico com bebês é interdisciplinar e plural, é sustentada no diálogo, na atenção e na escuta das crianças e de suas famílias e tem como princípio ético-político a valorização da diversidade, a promoção da inclusão de todos(as) e a diminuição das desigualdades educacionais, que têm se imposto às crianças brasileiras desde a entrada delas nas creches.

O que podem as crianças nos seus primeiros mil dias?

Na busca de pensar os mil dias das crianças, focalizaremos a seguir pontos que se articulam e que dizem também respeito à educação das crianças pequenas e que intentam responder a indagação: o que podem as crianças nos seus primeiros mil dias e o que esses dias podem em relação ao desenvolvimento integral delas?

Até mesmo antes do nascimento, o bebê é nomeado, referenciado, faz parte de enunciações, interlocuções e desejos. Pino (2005), que tem como base a teoria histórico-cultural de Vigotski5, afirma que o bebê nasce com um repertório biológico complexo, com um alto grau de organização perceptiva e expressiva, com uma capacidade de reconhecer e responder ao outro, o que o possibilita estabelecer e maximizar um intercâmbio com o outro social. Assevera, ainda, que a aparente condição de inferioridade de prematuridade do bebê humano em termos biológicos constitui um enorme ganho e meio de desenvolvimento, pois possibilita que ele possa ser educado e beneficiar-se da experiência cultural (PINO, 2005). E a experiência cultural chega junto dos cuidados básicos de alimentação, saúde e higiene, do seio da mãe, do colo, dos versos, das canções de ninar, das narrativas e histórias. Para López (2016, p. 15):

Poderíamos dizer que, no princípio, todos nós somos retalhos. Ao nascermos, somos feitos de retalhos: as sensações corporais, as primeiras tentativas de ligar os fatos percebidos a um significado, a voz a um rosto, as representações dos pais sobre o filho que chegou… Toda essa roupagem ainda desmembrada é um conjunto de retalhos que, para ser devidamente costurado, exigirá a construção de uma manta protetora de linguagem, feita de palavras. Retalhos de sentido, retalhos de experiência e uma envoltura narrativa que é gestada na situação dialógica e comunicativa que os acompanhantes da criança começam a tecer. Somos um diálogo. Desde quando somos um diálogo?

Esses retalhos de sentido vão sendo costurados aos poucos e, nesses mil dias iniciais da vida, em cada dia, mil retalhos vão sendo costurados nos diálogos. Assim é que a cultura transforma o dado natural (PINO, 2005), pois a cultura entendida como ação do homem na natureza torna-se também parte do próprio homem num processo de dupla transformação: ao transformar a natureza para criar seu próprio meio, transforma-se. O homem cria aquilo que o constitui, criando a própria condição humana. Condição tecida nas relações, mediada por palavras, gestos e entonações que vêm do outro, que apresenta o mundo à criança e amplia a própria condição dela no mundo.

Como afirma Bakhtin (2006, p. 46), “dos lábios da mãe e de pessoas íntimas a criança recebe todas as definições iniciais de si mesma. Dos lábios delas, nos tons volitivo-emocional de seu amor, a criança ouve e começa a reconhecer o seu nome”. Portanto, o verbal vem acompanhado de acentos apreciativos, de expressões não verbais, de presumidos, de sentimentos, de vida e, dessa forma, a criança toma consciência dela mesma através dos outros, de quem recebe a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da representação de si. O mergulho na linguagem é uma forma de conhecer a si e ao outro, fundamental no início e ao longo da vida. E a experiência cultural da criança se alarga à medida que ela amplia suas interlocuções com o outro e vai desenvolvendo sua percepção semântica do mundo, fato que o convívio social no espaço público da creche tem muito a contribuir. Como Paulo Freire (1997) poeticamente nos elucida, a realidade é sígnica e se dá a ler as crianças desde muito cedo:

A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço […] o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo das minhas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras” as “letras” daquele contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia aprendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais (FREIRE, 1993, p. 12).

Assim, retalho por retalho, os sentidos – ver, ouvir, cheirar, tocar, provar – vão ganhando significado, tecido e entretecido nas interlocuções dialógicas.

Para López (2016), as primeiras palavras que os adultos oferecem às crianças já são palavras lúdicas pela entonação, perguntas retóricas, ritmo e vocabulário, diminutivos, repetição de sílabas, que é muito próximo do balbucio do bebê. Por sua vez, comenta a autora, quando o bebê balbucia, podemos deixá-lo na exploração fonética e podemos também acompanhar sua brincadeira, responder imitando seus sons, num jogo de atenção conjunta, um convite para a procura e para o encontro. Jogo que o poema e as canções podem participar.

Outros retalhos desses inícios são as cantigas de ninar presentes nas mais diversas culturas, do oriente ao ocidente, aos povos originários indígenas e africanos do sul. López (2016) considera as cantigas de ninar como banho sonoro, uma mistura de afetividade e entonação poética. Já para Matos (2017, p. 14), o cuidado relativo às canções de embalar se constitui como uma iniciação à vida ética. “[…] um ato dirigido à criança, uma forma máxima de atenção que performa emoções e a auxiliam a se representar inscrita no tempo do mundo circundante a se situar no vasto mundo que virá”.

O mundo circundante, o primeiro mundo, vai ganhando vastidão com as conversas, canções, narrativas orais, memórias, fotografias, filmes, passeios, objetos, brincadeiras, histórias, livros. Retalho por retalho dessas envolturas narrativas vão tecendo as experiências das crianças.

O intenso processo de crescimento do bebê nos primeiros dois anos não se apresenta apenas fisicamente, mas na articulação entre o biológico, o afetivo e o cognitivo, como Paulo Freire (1997, p. 12) narra: naquele primeiro mundo “engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei”. A sequência de ações citadas coloca a fala como o ápice de um processo que, sem dúvida, nos mil dias é uma das grandes conquistas.

Em relação à fala, os estudos de Vigotski (1991) apontam que haveria uma fase pré-linguística do pensamento, uma inteligência prática baseada no uso de instrumentos, que nos seus estudos observou também nos chipanzés, e uma fase pré-intelectual da linguagem, que são balbucios, gestos de alívio emocional, entre outros. Em algum ponto, essas duas linhas convergem e, a partir dessa convergência, o pensamento torna-se verbal e a linguagem racional. Num processo exclusivamente humano, o biológico e o cultural se fundem. O biológico do homem transforma-se em sócio-histórico:

O momento de maior significado no curso de desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem (VIGOTSKI, 1991, p. 27).

Dos gestos de apontar à fala, as crianças vão significando o mundo e atribuindo sentido às suas vivências. A fala egocêntrica infantil que se manifesta como parte de seu esforço ativo, de suas ações com os objetos, aos poucos, de uma simples descrição ou análise da situação, vai ganhando um caráter de planejamento da ação. Além de ser um meio de expressão e liberação de tensão, torna-se um instrumento do pensamento.

É ainda Vigotski (2008) que discute a importância da brincadeira na primeira infância. Para o autor, a brincadeira não é uma mera atividade lúdica ou de entretenimento, mas uma atividade-guia, no sentido de guiar o seu desenvolvimento. No recém-nascido, a atividade-guia é a relação ativa com os adultos e com aqueles que estão ao seu redor. São os adultos que apresentam o mundo às crianças e que possibilitam que elas produzam significados e sentidos. Mas quando as crianças conseguem ter uma certa independência para se deslocar e manipular objetos, a força impulsionadora provém dos objetos. Daí a importância de ter um espaço propício à exploração das crianças e objetos diversos para serem explorados. As brincadeiras também vão sendo acompanhadas de gestos, e estes mudam a ordem das coisas. Pelo gesto, as crianças transformam os objetos, indicando novos significados atribuídos. Por exemplo, um pedaço de madeira embalado nos braços torna-se um “bebê”. Nesse processo intenso de simbolização que vai se dando ao longo dos mil dias, as crianças se iniciam na brincadeira de faz-de-conta, na qual os objetos começam a exercer um papel secundário, pois são transformados por suas ações. Nessa direção, Vigotski (2008, p. 24) aponta que é “na brincadeira a criança aprende a agir em função do que tem em mente e não do que vê”. A brincadeira de faz-de-conta é um campo de liberdade das crianças, que podem ser o que imaginarem. Mas, essa liberdade, segundo o autor, é ilusória, já que é regida por regras sociais. A ação numa situação imaginária “leva a criança a aprender a agir não apenas com base na sua percepção direta do objeto ou na situação que atua diretamente sobre ela, mas com base no significado dessa situação” (VIGOTSKI, 2008, p. 30). Isso leva a consequências importantes para as crianças: emancipam-se das amarras situacionais.

Voltamos então às cem linguagens e as mil oportunidades. Entendemos que a ação docente na creche se coloca diante da complexa relação na qual aquilo que é da ordem da natureza e da ordem da cultura se fundem e se desdobram em ganhos culturais que se estabelecem no humano e passam a constituí-lo. Acompanhar esse processo e alargar as ações e simbolizações das crianças são importantes práticas educativas na creche as quais exigem dos educadores atenção e inteireza nas relações. Exigem, ainda, pensar em uma pedagogia das relações guiada pela observação, pela escuta e negociação de sentido junto às crianças. A especificidade educacional está, assim, muito ligada à qualidade dos relacionamentos e à confirmação do lugar da criança como sujeito. Uma pedagogia que se funda na participação das crianças e nas relações interpessoais, uma proposta educacional pautada nos pressupostos dialógicos de Paulo Freire (1982, 1996), que, para a creche, ganha novas camadas, conforme apontam Arenari e Corsino (2020, p. 500) ao analisaram pesquisas sobre docência na creche:

[…] a perspectiva relacional na creche se daria de forma sofisticada e sutil de uma docência partilhada não linear sustentada em relações que: i) têm demandas corporais nas quais o cuidado se configura como ética; ii) são atravessadas pelas condições materiais e possibilidades de significação na composição espaço-temporal onde elas acontecem; iii) as ações do outro modificam constantemente as próprias ações numa mútua afetação entre sujeitos; iv) desencadeiam ações que são simultânea e concomitantemente vividas pelos diferentes atores que compõem o contexto educativo; v) provocam respostas constantes às demandas individuais e coletivas, respostas responsáveis, fruto de uma atenção cuidadosa; vi) se desdobram em caminhos dialógicos que compõem elos de coletividade; vii) possam se constituir enquanto experiência, ou seja, relações que alteram o sujeito, ampliam suas referências, seu conhecimento de si, do outro e do mundo; viii) têm os vínculos entre crianças e adultos como elos importantes destas relações.

Entendemos que a construção de uma prática pedagógica ancorada nessa ideia de simplicidade e sofisticações sutis exige um trabalho reflexivo, com observação atenta e cuidadosa das crianças, registros do observado e das práticas vividas e partilha entre professores(as). Tudo isso interpela não apenas as práticas, mas também as políticas, já que são necessárias condições de produção dessa práxis, o que inclui, como já apontamos, investimentos diversos em infraestrutura e na formação inicial e continuada de professores(as) como pontos-chave.

5 – No corpo do texto o nome do autor seguirá com Vigotski, sendo nas referências de acordo como citado.
Antonio José Ledo Alves da Cunha acunha@medicina.ufrj.br

Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil. Coordenador do Laboratório Multidisciplinar de Epidemiologia e Saúde – LAMPES, da Faculdade de Medicina da UFRJ. Pesquisador 1-B do CNPq. Cientista de Nosso Estado, FAPERJ. Doutor em Epidemiologia. Mestre em Saúde Pública e em Pediatria. 

Patrícia Corsino  corsinopat@gmail.com

Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Pontífica Universidade Católica – PUC, Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorado pela Università degli Studi di Pavia, Itália; Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Infância, Linguagem e Educação – GEPILE.