Foto: Pxhere

As principais violações de direitos de crianças e adolescentes em Heliópolis¹ – São Paulo/Brasil.

Método

Esta pesquisa apresentou um caráter exploratório, pois, para aumentar a familiaridade dos pesquisadores com o funcionamento da rede de serviços socioassistenciais, foi preciso conversar com seus líderes comunitários e com os profissionais que trabalhavam no atendimento direto às crianças e adolescentes da região. Utilizou-se de entrevistas semiestruturadas com perguntas que abordavam as formas de violação de direitos das crianças e adolescentes, principalmente aquelas relacionadas ao direito à vida, saúde, alimentação, respeito, liberdade e dignidade. Abordou-se, também, a forma como as crianças e adolescentes eram encaminhadas ao serviço e como lidavam com cada situação. Participaram do estudo quatro colaboradores que atuam nos seguintes serviços: medidas socioeducativas (MSE); núcleo de projeto jurídica (NPJ); conselho tutelar (CT); e unidade básica de saúde (UBS).

A análise dos relatos permitiu o conhecimento a respeito dos problemas mais recorrentes sobre a violação de direitos nessa região, conforme se apresenta a seguir.

Marcas da vulnerabilidade social

As profundas situações de miséria na realidade brasileira nos fazem refletir sobre seus impactos nas políticas de atendimento às famílias que vivem em situação de vulnerabilidade (Gomes, 2005). Segundo dados do Panorama Geosocioeconômico (Matriz, 2014), 10,6% da população do Sudeste do Brasil ainda vive em situação de pobreza, com renda per capita entre 25% e 50% do salário mínimo, e 0,6% da população não possui acesso a esgotamento sanitário.

Nesse cenário, a moradia é a representação de um espaço de privação, instabilidade e padecimento dos laços afetivos íntimos. Essa questão foi levantada em duas das entrevistas como um grave problema em relação ao direito à saúde: “[…] a habitação, sempre muito precária. Então, é um cômodo ‘desse’ tamanho p’ra 10 pessoas. Moram em becos, em vielas, condições de higiene horrorosas, tanto do ambiente quanto físico”. As condições precárias da habitação podem agravar problemas de saúde: “[…] o menino está ficando doente direto porque a família mora com problema de esgoto, não tem alimentação, não tem uma renda…” (profissional entrevistado na UBS).

Políticas como o Bolsa Família surgem como tentativa de suprir as carências emergentes, mas não promovem uma resolução efetiva de tal condição. No entanto, o representante do MSE concorda que programas de transferência de renda auxiliam inúmeras pessoas em vulnerabilidade social, principalmente em casos de divórcios e novos membros agregados. O profissional do NPJ também confirmou o fato de que a maioria das crianças está na escola, principalmente pela contratualidade do programa.

Pode-se entender, dessa forma, que a educação tem o desafio de interromper a perpetuação do ciclo de pobreza entre as gerações. A redução do número de alunos evadidos do ciclo básico de ensino não significa necessariamente que esses se formem com alto nível de aprendizagem. As considerações do profissional faz refletir sobre as afirmativas de Marques et al (2007), para quem a sociedade brasileira vem terceirizando seus eventuais fracassos na educação, negando-se a assumir seu papel no que diz respeito ao ensino público de educação básica. Também corroboram os dados encontrados na pesquisa de Fonseca et al (2013), cujos resultados, pautados em recentes publicações, revelaram que as crianças e adolescentes são vulneráveis às situações ambientais e sociais, e estas se manifestam em diversas formas de violência cotidiana, tanto no contexto familiar quanto escolar, obrigando crianças e adolescentes a se inserir precocemente no mercado de trabalho e/ou no tráfico de drogas.

Direito à Vida e à Saúde

O ECA estabelece os direitos relativos ao cuidado integral a todas as crianças e adolescentes (Artigo 14º) (Brasil, 1990), porém, ao analisar os dados das entrevistas, verifica-se que muitas questões relacionadas à saúde pública são apontadas como problemas que apresentam grande incidência no bairro de Heliópolis. O envolvimento de crianças e adolescentes com o alcoolismo e a drogadição, bem como os casos de gravidez e paternidade precoces, foram mencionados em todas as entrevistas. Outras violações, também consideradas por alguns entrevistados como importantes, foram as doenças sexualmente transmissíveis (DST) e a falta de serviços de prevenção.

O uso de substâncias psicoativas apareceu como uma das principais violações de direito, na concepção do profissional da UBS:

[…] tem muito alcoolismo, muita drogadição. Nos jovens em geral. No contexto geral, eles estão tendo um contato muito cedo com o álcool e com as drogas. […] Em quase todas as famílias tem caso de álcool e drogas, quase todas as famílias. Mãe e pai que bebem que ou fazem uso de drogas, que moram em situação precária, né?

Outra questão bastante mencionada nas entrevistas refere-se à gravidez precoce de adolescentes. Na maioria das entrevistas, essa questão foi avaliada pelos entrevistados como sendo a primeira ou segunda violação do direito à saúde mais recorrente na região. Para um dos profissionais entrevistados, essa questão é complexa e não envolve necessariamente uma violação de direitos: “Adolescente grávida chega bastante, muita jovem fazendo teste de gravidez, então elas ficam no pancadão e aí vem na segunda querendo saber se… seria uma violação de direito?”.

Pode-se ressaltar também a importância de compreender em que medida a própria jovem e sua família consideram sua condição como uma violação de direitos. De acordo com a entrevista realizada no NPJ, muitas das adolescentes que chegam grávidas procuram o serviço por outros fatores considerados por elas como mais urgentes. O direito de proteção à vida e à saúde é indispensável, pois garante o nascimento sadio e as condições dignas de desenvolvimento que devem ser oferecidas pelas políticas públicas, promovendo o desenvolvimento adequado da criança (Brasil, 1990).

Direito à liberdade, ao respeito e à dignidade

Os artigos 15º a 18º do ECA preveem que sejam assegurados à criança e ao adolescente os direitos à liberdade, ao respeito e à dignidade (Brasil, 1990). A partir dos relatos coletados, foi verificado que as principais violações referentes a esses artigos foram: negligência; abuso sexual; drogadição dos pais; violência e abuso de poder da polícia.

De acordo com o profissional do NPJ, os pais saem para trabalhar e deixam as crianças na rua e, consequentemente, estas têm o contato facilitado com a droga e com a violência. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a negligência familiar ocorre quando há uma falha em prover os cuidados básicos para o desenvolvimento adequado da criança e do adolescente. Devido à condição socioeconômica desfavorável das famílias de Heliópolis, em alguns casos, ocorre a ausência de cuidados físicos, emocionais e sociais, conforme o relato:

Já chegou para passar em consulta na AMA (Assistência Médica Ambulatorial), não aqui na unidade, uma menininha de 10 anos com um bebezinho de um ano. […] a gente entrou em contato com essa mãe, chamamos ela aqui. Explicamos que ela poderia até perder a guarda dessas crianças, porque, eu falei: ‘se fosse um policial que encontrasse, não ia ter essa sensibilidade que a gente teve em te chamar’. Aí ela não veio porque ela disse que tem mais duas [crianças], e os outros dois são menores ainda, são gêmeos. Então é assim, a pessoa tem a vida bem complicada (profissional da UBS).

O profissional do NPJ ressaltou a gravidade da violência doméstica na região, pois as vítimas geralmente não aderem ao atendimento da equipe. O entrevistado do conselho tutelar, por sua vez, relatou um caso que demonstra essa situação:

Na verdade, eu tive, acho, dois casos com problema de reincidência, porque a mãe também sofria maus tratos, cárcere privado, tortura. Só que ela não ‘tava lá na hora, a gente pegou a residência, conseguimos, acho, que resgatar três crianças. Duas crianças ‘tava mantida num quarto, sem alimento, sem nada, presa. Um menino tava todo marcado, foi chicoteado, e nós fizemos essa ação. Tiramos os filhos desse lugar, tiramos a criança que ‘tava na escola, encaminhamos p’ra avó e informamos o juiz que essa criança não deveria voltar com a mãe.

No que diz respeito à drogadição dos pais, segundo a OMS, a ingestão de bebidas alcoólicas e a utilização de drogas potencializam os atos violentos contra crianças e adolescentes, principalmente no contexto familiar. Para o entrevistado do NPJ, os casais que fazem uso de drogas estão entre os principais violadores dos direitos da criança e do adolescente.

O direito à liberdade é amplo e compreende, além do direito de ir e vir, a liberdade de opinião e expressão, crença e culto religioso, brincar e divertir-se, participar da vida familiar, comunitária, política e de buscar refúgio, auxílio e orientação (Muller, 2011). O direito ao respeito é exposto no ECA como forma de garantir a “inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente” (Brasil, 1990) e, dessa forma, responsabilizam-se todos pelo zelo da plena liberdade de expressão e desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.

Adriana rodrigues domingues adriana.domingues@mackenzie.br

Graduada em Psicologia pela Unesp e doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é docente no curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.

Adriana Fernandes Lellis Pereira adriana.lellis@outlook.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente, atua no Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), em Jacareí, e realiza oficinas de redução de danos nas cenas de uso de drogas em São Paulo, Brasil.

Ana Carolina de Oliveira anacaa.oliveira@gmail.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Psicologia Hospitalar e da Saúde pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.

Cristina Gonçalves De Abrantes cristinadeabrantes@gmail.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.. Atua como psicoterapeuta e neuroeducadora, com pesquisas voltadas à clínica contemporânea e psicologia social.

Tiago Henrique Cardoso cardosotiagohenrique@gmail.com

Graduado em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.

Vanessa Alice De Moura vanessa.alice.moura@outlook.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil..