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Contribuições da literatura internacional para o cuidado em saúde mental de adolescentes em conflito com a lei no Brasil

Discussão

Este estudo buscou identificar quais objetivos têm norteado as pesquisas mais recentes sobre saúde mental e cometimento de delitos em adolescentes e apreender os resultados mais relevantes. Foram geradas três categorias por meio destes e, abaixo, serão realizados apontamentos que podem contribuir para o planejamento de estudos futuros.

A primeira categoria – Prevalência de transtornos de saúde mental e variáveis associadas – possibilita a obtenção de resultados confiáveis de prevalência de transtornos, com apreciação sobre seus correlatos, sobretudo, pela ausência de práticas de cuidado específicas para adolescentes em conflito com a lei com problemas de saúde mental (Vilarins, 2014). Por exemplo, os adolescentes com TEI do estudo de Shao et al. (2019) apresentam maiores níveis de raiva e possuem menor controle sobre essa emoção do que adolescentes sem essa psicopatologia. É importante uma adequada apreciação individual do quadro clínico, pois pode haver necessidade de medicalização e intervenções terapêuticas específicas. Entretanto, tratando-se de quadros de outra ordem – como dificuldade de controle da raiva, ou diagnósticos equivocadamente atribuídos como transtorno de conduta, transtorno de adaptação e humor deprimido (Costa; Silva, 2017) – cuja causa não é um desequilíbrio neuroquímico, a medicalização traz prejuízos à saúde do adolescente (Costa; Silva, 2017) e a falta de intervenções psicossociais especializadas o priva de superar suas dificuldades.

Também se faz necessário um olhar mais global para os determinantes da sintomatologia dos problemas de saúde mental elencados, levando-se em consideração variáveis contextuais da história de vida do adolescente, como a exposição à violência na família (Degenhardt et al., 2015; Lansing et al., 2018; Gaete et al., 2018; Fix; Alexander; Burkhart, 2018) em conjunto com aquelas que dizem respeito às condições de judicialização, exemplificado pelo tempo de confinamento (Valentine; Restivo; Wright, 2019).

Ainda, foi evidenciado que a ideação suicida, as tentativas de suicídio e a autolesão estavam em grande medida relacionados com transtornos de saúde mental (Moore; Gaskin; Indig, 2015; Shepherd et al., 2018) e com uma ampla gama de diagnósticos (Kemp et al., 2016; Laporte et al., 2017). Assim, os estudos de prevalência e a atribuição de diagnósticos passam a ter a função de alerta a níveis de prevenção (Mirzabdullaeva; Alieva, 2020) ou intervenção (Mcmanama O’brien et al., 2019) destes comportamentos. Bettis et al. (2020) defendem que a implementação de estratégias de intervenção efetivas depende de que os profissionais da área recebam treinamento especializado.

A segunda categoria – Associação entre prática de delitos e problemas de saúde mental – denota estudos que relacionaram cometimento de delitos e problemas de saúde mental. Os resultados de parte dessas pesquisas indicam que a prática de delitos (Bacak; Karim, 2019; Jolliffe et al., 2019), incluindo os violentos (Jolliffe et al., 2019), seria um preditor de sintomas depressivos, corroborando o estudo de Kim et al. (2019). Os autores identificaram que, em meninos, a delinquência antecede o surgimento de problemas internalizantes e o uso de substâncias. Para as meninas, não haveria um sentido predominante nesta relação.

Problemas de saúde mental específicos podem configurar como fator de risco para a manifestação, escalada e manutenção da conduta delituosa (Elliot; Huizinga; Menard, 1989; Corrado; Mccuish, 2015). Entre os artigos revisados, foram identificadas associações entre transtornos de saúde mental e cometimento de delitos. No entanto, estas evidências são oriundas de desenhos transversais, motivo pelo qual devem ser tomadas com cautela.

Uma maior gravidade dos delitos cometidos esteve associada a níveis mais altos de TEPT, ansiedade e depressão em adolescentes privados de liberdade (Lemos; Faísca, 2015). Ainda, houve associação com mais problemas de saúde mental em comparação a adolescentes da população, no caso de meninas (Azad; Ginner Hau, 2018), e em comparação a adolescentes detidos por delitos menos graves (Kopak; Kulick, 2017).

Kelly, Novaco e Cauffman (2019) identificaram associação entre mais altos níveis de raiva e cometimento de delitos, a despeito dos níveis de depressão. Contrariamente, Jennings et al. (2019) identificaram que sintomas de depressão estiveram associados à alta taxa de cometimento de delitos. Os transtornos mentais mais graves (esquizofrenia, transtorno bipolar e esquizoafetivo, por exemplo), em seu turno, foram preditores de reincidência (não necessariamente violenta) a curto prazo, para adolescentes judicializados (Kasinathan, 2015). Este resultado questiona a crença de que tais transtornos seriam fortes preditores de delinquência violenta. Ainda, ressalta-se que é um resultado obtido a partir de investigação transversal, podendo descrever uma relação mediada por outros fatores. Em contrapartida, os transtornos do espectro externalizante estiveram associados ao cometimento de delitos violentos (Haney-Caron et al., 2019) – em específico o TEI (Shao et al., 2019) e o estresse psicológico e sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Aebi et al., 2017).

Os problemas de saúde mental podem aparecer, portanto, de forma emaranhada com o cometimento de delitos. Como apresentado, a depender do grau de engajamento do adolescente e de seu quadro sintomatológico, o cometimento de delitos pode vir a ser fator de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde mental, ou ambos possivelmente podem agir de forma retroativa. De todo modo, é pertinente uma avaliação individual para um tratamento mais fidedigno na promoção do desenvolvimento do adolescente.

Por fim, são discutidos os resultados referentes à terceira categoria – Prevalência de comportamentos suicidas e variáveis associadas. A princípio, as prevalências de comportamentos suicidas, de forma geral, parecem ser equivalentes entre grupos de adolescentes judicializados e não judicializados – embora Ruch et al. (2019) apontem que as taxas de suicídio de adolescentes em centros de internação são consideravelmente mais altas do que aquelas observadas na população geral.

Foram levantados os fatores de risco prévios associados aos comportamentos suicidas (Moore; Gaskin; Indig, 2015; Kemp et al., 2016; Laporte et al., 2017; Shepherd et al., 2018). Não obstante, a própria institucionalização foi apontada como um fator de risco importante para o suicídio (Ruch et al., 2019). Assim, destaca-se que a aplicação de medida restritiva de liberdade deve ser considerada, observando-se a presença de risco para comportamentos suicidas. A decisão de internar um adolescente com este quadro deve garantir que ele receberá os devidos cuidados em saúde (Pearson et al., 2017), podendo a aplicação de outra medida ser cogitada. Ainda, os resultados sugerem que os adolescentes judicializados têm menor probabilidade de revelar a intenção do ato, de apresentar humor deprimido e, em geral, cometem o ato nos primeiros 30 dias de internação. Nesse período inicial de internação, portanto, é fundamental que os adolescentes sejam acompanhados, visando ao rastreio e prevenção de possíveis comportamentos suicidas.

Conclusão

A maioria dos estudos com população de adolescentes escolares teve grandes amostras e desenho longitudinal, conferindo maior robustez à investigação. Contudo, em função da amostra, eles privilegiaram o estudo de transtornos como ansiedade e depressão, que não contemplam outras dificuldades que os adolescentes em conflito com a lei podem ter – compatíveis com os outros transtornos identificados na sessão de estudos de prevalência. Da mesma forma, estudos com essa população têm menos chances de identificar diferentes perfis de adolescentes com trajetória infracional persistente (com presença ou não de violência), o que compromete a compreensão de como diferentes psicopatologias podem se associar com diferentes trajetórias de cometimento de delitos.

Variáveis como gênero, raça e experiências adversas na infância devem ser consideradas em investigações futuras. As prevalências de alguns tipos de transtorno, como a depressão, apresentaram maiores índices para meninas (Lyu et al., 2015; Kang et al., 2018; Jennings et al., 2019; Shao et al., 2019). Fix, Alexander e Burkhart (2018) identificaram que a raça seria moderadora da relação entre exposição à violência familiar e cometimento de delitos violentos (mediada por depressão). Experiências adversas na infância, por sua vez, foram um fator amplamente investigado na compreensão da relação entre saúde mental e delinquência, e variadas facetas desse conceito se mostraram associadas a diferentes desfechos em saúde mental.

Considera-se que a tendência de práticas institucionais que privilegiam a medicalização excessiva dos adolescentes ameaça seus direitos no campo da saúde (Costa; Silva, 2017). Por isso, reafirma-se a importância de se incorporar um sistema de avaliação e acompanhamento compatível com o modelo RNR capaz de abarcar a complexidade das demandas desses adolescentes (Reising et al., 2019).

Uma vez que é dever do Estado zelar pelos direitos dos adolescentes em cumprimento de MSE e promover ações que os auxiliem a superar suas dificuldades, o atendimento ao adolescente em conflito com a lei com demandas de saúde mental, privado ou não de liberdade, torna fundamental o investimento na articulação entre o SUS e o Sistema Socioeducativo, de modo a distanciar-nos da realidade do cenário atual (Vilarins, 2014; Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018). Por fim, é fundamental que os profissionais que atuam junto a essa população sejam capacitados e tenham acesso à produção científica especializada (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018). Nesse sentido, espera-se que este estudo estimule novas questões de pesquisa nesta área e, direta ou indiretamente, contribua para o aprimoramento das práticas no sistema de justiça juvenil.

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Resumo

O presente estudo visou evidenciar a produção de conhecimento sobre saúde mental e prática de delitos. Foram levantados artigos na base de dados Web of Science, com os descritores: (mental health) e (offense* ou offender* ou delinquen*) e (juvenile* ou adolescent* ou youth*). A análise de 42 artigos permitiu a criação das seguintes categorias de estudos: 1) Prevalência de transtornos de saúde mental e variáveis associadas; 2) Associação entre prática de delitos e problemas de saúde mental e 3) Prevalência de comportamentos suicidas e variáveis associadas. A associação entre delinquência e saúde mental pode ocorrer nas duas direções e depende dos tipos de transtornos e de delitos estudados. Comportamentos suicidas associam-se com privação de liberdade. Identificar a presença de experiências adversas na infância, problemas escolares, uso de substâncias e comorbidades de saúde mental podem auxiliar na compreensão dessas relações. Espera-se que este estudo viabilize avanços das práticas em saúde mental no sistema socioeducativo.

Palavras-chave: saúde mental, adolescência, delinquência juvenil, violência, experiências adversas.

Aportes de la literatura internacional a la atención de la salud mental de los adolescentes en conflicto con la ley en Brasil

Resumen

El presente estudio tuvo como objetivo destacar la producción de conocimiento sobre salud mental y la práctica de delitos. Los artículos fueron buscados en la base de datos de Web of Science, con los descriptores: (mental health) y (offense* o offender* o delinquen*) y (juvenile* o adolescent* o youth*). El análisis de 42 artículos permitió la creación de las siguientes categorías de estudios: 1) Prevalencia de trastornos de salud mental y factores relacionados; 2) Asociación entre delitos y problemas de salud mental; y 3) Prevalencia de comportamientos suicidas y factores relacionados. La asociación entre delincuencia y salud mental se da en ambas direcciones y depende de los tipos de trastornos y delitos estudiados. El comportamiento suicida está asociado con la privación de libertad. Identificar la presencia de experiencias adversas en la niñez, los problemas escolares, el uso de sustancias y las comorbilidades de salud mental pueden ayudar a comprender estas relaciones. Se espera que este estudio estimule avances en las prácticas de salud mental en el sistema socioeducativo.

Palabras clave: salud mental, adolescencia, delincuencia juvenil, violencia, experiencias adversas.

Contributions of international literature to mental health care for justice-involved
adolescents in Brazil

Abstract

This literature review aimed to highlight the knowledge produced at the interface of mental health and commitment of offenses. For this, the following descriptors were used in Web of Science database: (mental health) AND (offense* OR offender* OR delinquen*) AND (juvenile* OR adolescent* OR youth*). The analysis of 42 articles allowed the creation of three categories: 1) Prevalence of mental health disorders and related variables, 2) Studies on the association between crimes and mental health problems, and 3) Prevalence of suicidal behavior and related variables. The association between delinquency and mental health can occur in both directions and depends on the types of disorders and offenses studied. Suicidal behavior is associated with deprivation of liberty. Identifying the presence of adverse childhood experiences, school problems, substance use and mental health comorbidities can help in understanding these relationships. It is expected that this study could enable advances in mental health practices in the socio-educational system.

Key words: mental health, adolescence, juvenile delinquency, violence, adverse experiences.

Data de recebimento/Fecha de recepción: 29/09/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 11/01/2021

Rafaelle C. S. Costa rafaelle.costa@usp.br

Psicóloga e Mestre em Ciências pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.

Fernanda Papa Buoso fernanda.buoso@usp.br

Psicóloga e Mestranda vinculada ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.

Thales Vinícius Mozaner Romano thales.romano@usp.br

Psicólogo e Mestrando vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.

Marina Rezende Bazon mbazon@ffclrp.usp.br

Doutora em Psicologia e Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.