De volta a um futuro sem futuro
Cabe destacar que, historicamente, é a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades. A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências físicas e psicológicas, transformando essas pessoas em “portadoras de distúrbios de comportamento e de aprendizagem”.
Aprendizagem e comportamento; exatamente os campos de maior diversidade e complexidade, constituintes da – e constituídos pela – subjetividade e singularidade; campos em que a avaliação é mais complexa e mais questionada.
Aprendizagem e comportamento; crianças e adolescentes. Estes são os alvos preferenciais dos processos que buscam padronizar, normatizar, homogeneizar, controlar a vida. Processos que patologizam a vida.
E nesses processos de medicalização, controle e judicialização da vida, um instrumento é fundamental: os laudos. Laudos médicos, psicológicos, fonoaudiológicos, pedagógicos etc etc. Instrumento fundamental porque realiza a função de julgamento, condenação e sentença. Fundamental porque desvela o protagonismo dos profissionais, atuando de modo acrítico e quase em modo automático, em função de vários fatores, entre os quais devemos destacar a formação tecnicizada, regida pelo e para o mercado.
Vivemos em uma sociedade fundada em uma vida cada vez mais produtivista e consumista, cada vez mais constituída não por cidadãos, mas por consumidores, preferencialmente bioconsumidores, homogeneizados (Iriart e Iglesias-Rios, 2013).
Cabe, por fim, nos perguntarmos sobre que futuro estamos construindo, ou talvez, destruindo. Transformar em doenças mentais sonhos, utopias, devaneios, questionamentos, discordâncias; abortá-los com substâncias psicoativas pode resultar em impossibilidades de futuros diferentes. Podemos estar legando a nossos filhos e netos, como bem disse Victor Guerra[1], o genocídio do futuro.
Referências bibliográficas
Breggin, PR. Intoxication Anosognosia: the spellbinding effect of psychiatric drugs. Ethical Human Psychology and Psychiatric 8: 201-15, 1999.
______. Psychostimulants in the treatment of children diagnosed with ADHD: Risks and mechanism of action. International Journal of Risk e Safety in Medicine 12: 3–35, 1999.
COLLARES, CAL; MOYSÉS, MAA. Preconceitos no cotidiano escolar. Ensino e medicalização. São Paulo: Cortez-FE/FCM Unicamp, 1996.
CONRAD, P. Identifying Hyperactive Children: The medicalization of deviant behavior. Expanded ed. (Ashgate classics in sociology). Burlington: Ashgate Publishing Company, 2006.
______The medicalization of society: on the transformation of human condition into treatable disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2007.
CHARACH, A.; DASHTI, B.; CARSON, P.; BOOKER, L.; LIM, C.G.; LILLIE, E.; YEUNG, E; MA, J; RAINA, P.; SCHACHAR, R. Attention Deficit Hyperactivity Disorder: Effectiveness of Treatment in At-Risk Preschoolers; Long-Term Effectiveness in All Ages; and variability in Prevalence, Diagnosis and Treatment. Comparative Effectiveness Report No. 44. (prepared by the McMaster University Evidence-based Practice Center under Contract No. MME2202 290-02-0020) AHRQ Publication No. 12-EHC003-EF. Rockville, MD: Agency for Healthcare Research and Quality. October 2011. Available at: www.effectivehealthcare.ahrq.gov/reports/final.cfm
DONNANGELO, M.C.F. Saúde e Sociedade. In; DONNANGELO, F. e PEREIRA, L., Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades. 1976.
ENTRALGO, P.L. Historia de la medicina. Barcelona: Salvat, 1982.
FOUCAULT, M..Historia de la medicalización. Educación médica y salud 11 (1): 3-25, 1977.
______. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2ª ed., 1980.
ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
IRIART, C.; IGLESIAS-RIOS, L.. La (re)creación del consumidor de salud y la biomedicalización de la infancia. In: COLLARES, C.A.L., MOYSÉS, M.A.A., RIBEIRO, M.C.F. (Orgs.), Novas capturas, antigos diagnósticos na era dos transtornos. Campinas: Mercado de Letras, 2013. P. 21-40.
LEO, J. American Preschoolers on Ritalin. Society: 39(2): 52-60, 2002.
LUZ, M.T. As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia. Rio de Janeiro: Graal, 3ª ed., 1986.
MOYNIHAN, R.; CASSELS, A. Vendedores de doença: estratégias da indústria farmacêutica para multiplicar lucros. In: Pelizzoli, M.L., Bioética como novo paradigma: por um novo modelo bioético e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007. P. 151-156.
MOYSÉS, M.A.A.; COLLARES, C.A.L.. Medicalização: elemento de desconstrução de direitos. In: Direitos Humanos : O que temos a ver com isso?, CRP-RJ, 2007.
______. A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos CEDES, nº 28: 31-48, 1992.
______. Desnutrição, fracasso escolar e merenda. In: SOUZA PATTO, M.H.(org.) Introdução à psicologia escolar; 3ª edição revista e atualizada. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. P. 223-256.
______. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: Conselho Regional de Psicologia SP; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. P. 125-156.
______. Medicalização: o obscurantismo reinventado. In: COLLARES, C.A.L.; MOYSÉS, M.A.A.; RIBEIRO, M.C.F. (org.). Novas capturas, antigos diagnósticos na era dos transtornos. Campinas: Mercado de Letras, 2013.P. 41-64.
MOYSÉS, M.A.A.; LIMA, G.Z. Desnutrição e fracasso escolar: uma relação tão simples? In: Revista da ANDE, nº 5: 56-62, 1982.
SZASZ, T. The medicalization of everyday life: Selected essays. New York: Syracuse University Press, 2007.
Palavras-chave: medicalização, infância, dificuldades do aprender, patologização.