Caminhos metodológicos
Uma questão insistente que se colocava para nós, diante dessa problemática, era como atuar em favor da reconfiguração dessas cartografias subjetivas. Que caminhos metodológicos seguir nessa ação de pesquisa? Tendo em vista nossa percepção de que as fronteiras urbanas são também fronteiras estéticas, fronteiras de hábitos, de formas de se locomover e habitar a cidade, começamos a compreender que um dos fatores centrais para que fosse possível borrar fronteiras era criar espaços de convivência, uma vez que é pelo convívio que se “acaba pegando aquela forma de proceder” (REIS, 2017, p. 167), como afirmado pela coordenadora pedagógica da ONG – é o convívio que permite intercambiar linguagens, aprender novos sentidos, criar sentidos em comum.
Partimos de uma perspectiva que compreende que os processos de produção subjetiva se dão de forma intercorporal. Essa perspectiva tem como importante referencial teórico o pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty (2011/1945), para quem o corpo é o ponto zero do espaço. É o movimento de nosso corpo, imbricado ao mundo, que nos permite traçar sentidos para nossa existência, a partir de um aprendizado prático que se dá no encontro entre meu corpo e o corpo do outro. Esse aprendizado, que se dá no plano intercorporal, nos insere no mundo da cultura e nos coloca defronte a um certo caráter impessoal da existência: aprendemos que neste mundo bebe-se, come-se, senta-se, dança-se, dimensão habitual do corpo que nos coloca num plano comum da experiência, em que compartilhamos “formas corporais e gestuais sedimentadas na cultura como um fundo anônimo” (ALVIM, 2018, p. 345).
Este fundo anônimo – dimensão originária da existência que ao mesmo tempo é de todos e de ninguém em particular – revelaria um caráter essencialmente intersubjetivo da existência, com o qual entramos em contato a partir da experiência de ser um corpo vivo no espaço. Entretanto, o lugar que o outro habita no mundo, sua forma singular de se apropriar desse fundo anônimo da cultura, nunca será inteiramente coincidente com meu estilo pessoal de existir neste mundo em geral, com a posição de onde vejo, percebo e sinto. Dessa maneira, o reconhecimento da dimensão intersubjetiva e intercorpórea, ao mesmo tempo que nos coloca em um plano comum de experiência, nos coloca frente à tensão viva do contato com a diferença apresentada pelo outro. “Importante lembrar que o intersubjetivo não é consciência coletiva: a intersubjetividade envolve relação viva e tensão, uma vez que não é separada da subjetividade como singularidade que cria, gerando diferença e movimento no campo” (Ibid., p. 345).
Neste campo tensionado da produção intersubjetiva, produzem-se o que aqui chamamos de cartografias urbanas e sociais – divisão espacial que se expressa em gestualidades corporais, hábitos do corpo que determinam zonas de pertencimento social e subjetivo. Por isso, começamos a entender que, para intercambiar linguagens e produzir sentido comum entre pessoas habitantes de territórios estrangeiros, era necessário justamente criar território comum – espaços de convivência que permitissem esse aprendizado do corpo que só se dá no contato sensível com o outro.
Ancoradas no pensamento de Merleau-Ponty, compreendemos que o movimento de produção de sentidos não como um movimento que acontece no interior de uma consciência fechada que se direciona para o mundo, ou do encontro de duas consciências fechadas em si, mas como movimento que emerge de um campo, de uma constelação de forças e sentidos que se expressam em nossos corpos: movimento instituinte, prenhe de gestos e acontecimentos que instauram novos modos de ser, modalidades de organização do tempo e do espaço. E aqui nos encontramos com um tema fundamental de nossa concepção de clínica: consideramos o processo clínico como um processo de “invenção comum de verdade” (Id., 2012, p. 1013) que provoca desvios, abre possibilidades para a emergência de novas formas de vida, para além daquelas que já estão sedimentadas e instituídas, infinitamente repetidas.
Considerando a intercorporeidade como aspecto central da produção de subjetividade, podemos afirmar que a produção de novos sentidos acontece na expressão espontânea que nasce do contato com outrem, este, ao mesmo tempo idêntico e estranho a si mesmo. Alvim (Ibid.) nos convida a conceber uma perspectiva clínica em que o terapeuta convoque, a partir de um trabalho de desnaturalização da percepção, à produção de sentidos que seja desviante em relação à produção automática e repetitiva de sentidos engendrada por um corpo anestesiado e distanciado da experiência do mundo. A autora desenvolve a noção de desajustamento criador (Id., 2014, p. 299) – ação de produção do contraditório que aciona os sentidos, a corporeidade, remetendo à experiência estética – para que assim abra-se a possibilidade de produção da novidade, da diferença. Como em uma dança, os gestos de corpos vivos e sensíveis ao espaço são gestos expressivos, que abrem espaço para novas formas de ser e estar e no mundo.
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Ao lado dos dizeres no muro que afirmam “Danço, logo existo”, há um post-it colado que nos pergunta: “Qual sua dança?”
Entendemos, portanto, que a experiência clínica é essencialmente uma experiência estética e criadora, se aproximando assim da experiência artística. Segundo Suely Rolnik (1999, p. 3), no mundo contemporâneo, a criação fica confinada à esfera da arte, de modo que as pessoas que estão fora dessa esfera perdem “as rédeas desta atividade de criação de valor e sentido para as mudanças que se operam incessantemente em sua existência, e passa a orientar-se em função de cartografias gerais, estabelecidas a priori, a serem passivamente consumidas”. Sendo assim, vislumbramos grande potência política na hibridização entre arte e clínica. Consideramos aqui a concepção de política de Rancière (1996), que afirma que essa – ao contrário do que estabelece o senso comum – não é a maneira como grupos e indivíduos combinam seus interesses, “é antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível” (Ibid., p. 368). O filósofo identifica a política na noção de dissenso – o confronto entre diferentes regimes de sensorialidade, que provoca uma perturbação naquilo que é passível de ser dito, visto e contado, naquilo que conta como pertencente a um mundo comum (Ibid.).
Nesse sentido, nossa busca por pensar as possiblidades de reconfiguração das cartografias sensíveis do mundo acabou por produzir, em nosso pensamento, uma imbricação entre as dimensões clínica, artística e política, de forma que nossos dispositivos de pesquisa acabaram por se situar nesse campo híbrido. A noção de performance – prática artística que ressalta a força instituinte do gesto – se apresentou como uma estratégia interessante para a nossa intenção de instaurar espaços que permitissem revolver os sedimentos do corpo e promover a estranheza sobre as formas naturalizadas e habituais de circular e de habitar na cidade.
Ao longo do tecer deste caminho metodológico, algumas referências do campo da arte foram fundamentais. A começar pelo trabalho dos artistas brasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica, que pertenciam ao movimento neoconcreto e propunham uma arte que descesse da redoma inatingível do museu e se fizesse presente na experiência do mundo. Ambos propunham uma mudança radical de posição do espectador de arte, que passava a ser um participante da obra. Os artistas buscavam, com suas proposições de experimentações artísticas, “desencadear a criatividade geral” (CLARK, 1980, p. 37), favorecer um estado de invenção nos participantes da obra e, assim, a interpenetração entre diferentes mundos. Em especial, a noção de Oiticica (1986) de programas abertos à realização coletiva nos inspirou no sentido de pensar em dispositivos de pesquisa que atuassem como proposições sensíveis aos participantes da pesquisa, de forma a convidá-los a uma experiência viva do espaço, que possibilitasse revolver os sedimentos do mundo instituído. Relacionada a esta última noção está a ideia de programa performativo de Eleonora Fabião (2008), a qual chama as ações performativas de programas – roteiros simples de ações que funcionam como “motores” ativadores de experiência.
Outra referência fundamental para nossa construção metodológica foi a noção de deriva etnográfica, de Thiago Florêncio (2015). O autor, ao retomar as práticas de deambulação aleatória dos surrealistas, propõe o andar à deriva pela cidade como prática performativa. Segundo Florêncio (Ibid.), os surrealistas, tendo retornado da Grande Guerra, e influenciados pelo flaneur de Baudelaire, estariam dispostos a flanar pelas cidades para realizar uma observação participante da barbárie ocidental. O jogo de estranhamento do familiar operado nesta prática resultaria em uma experiência estética, tornando possível a produção de “‘momentos de intensidade’ que permitem estar em sintonia com as coisas do mundo” (GUMBRECHT, 2014, p. 147, apud FLORÊNCIO, 2015).
A tessitura entre esses diferentes referenciais, que se deu de forma concomitante à nossa experiência do primeiro ano do campo – em que realizamos as oficinas artísticas dentro do espaço da ONG3 com o intuito de abordar a temática das fronteiras urbanas –, nos levou a propor, no segundo ano de pesquisa, a instauração, junto aos jovens da Mangueira, de pequenos espaços criativos de circulação e convivência na cidade. O convite para a participação nessa etapa da pesquisa foi feito a um grupo de jovens indicados pela coordenadora da ONG – nossa parceira na construção da proposta de investigação – como crianças e adolescentes que poderiam ter interesse em vivenciar esse processo. Cientes dos limites de alcance de nossas ações, lançamo-nos, junto a esses jovens, em um laboratório de pesquisa e experimentação do espaço urbano, com a intenção de que fossem abertas possibilidades de criação de novas narrativas acerca da cidade, ao favorecer, para todos nós, a experiência de um corpo menos automatizado e enrijecido por uma lógica segregadora e excludente. Foi assim que nos lançamos ao processo que culminou na prazerosa descoberta do que cunhamos de pequenos exercícios experimentais da liberdade (REIS, 2017), em homenagem à noção de exercício experimental da liberdade, usada pelo crítico de artes Mário Pedrosa para se referir ao trabalho de Clark e Oiticica.
Este nosso laboratório de pesquisa e experimentação incluía três momentos diferentes de trabalho: laboratórios semanais de preparação corporal realizados de forma interna pela equipe de extensionistas, com o intuito de trabalhar a escuta do corpo e do espaço da cidade, nos quais eram realizadas oficinas de métodos de educação somática, exercícios teatrais e também derivas etnográficas pela cidade; grupos de estudo para discussão teórica dos textos pertinentes à pesquisa; laboratórios de experimentação no espaço urbano, junto aos jovens da Mangueira, os quais foram realizados em vários lugares diferentes, dentre eles a Praça Mauá, a favela da Mangueira, o campus da UFRJ, a Praça Tiradentes e o parque da Quinta da Boa Vista.
A pesquisa foi feita de forma coletiva, em parceria com estudantes dos cursos de graduação em psicologia, direção teatral, dança, audiovisual e com crianças e adolescentes moradores da favela da Mangueira, e contou com aproximadamente 27 participantes nessa etapa em 2016, sendo 7 pesquisadores adultos e 20 pesquisadores crianças e adolescentes, com idades entre 8 e 15 anos. A participação do grupo de crianças e adolescentes na atividade era flutuante, de modo que nossos encontros semanais não contavam sempre com o mesmo número de pesquisadores. A cada atividade, os participantes produziam registros fotográficos e videográficos, assim como registros escritos, no formato de diários de campo que em alguns momentos foram feitos também pelas crianças e adolescentes.
Ao longo de todo esse percurso, foram se colocando alguns desafios importantes – para realizar a pesquisa de fato em parceria com as crianças, seria necessário transpor não só as fronteiras entre habitantes de diferentes territórios da cidade, mas também as fronteiras entre nossa linguagem adulta e acadêmica de pesquisa e a linguagem das crianças e dos adolescentes em sua forma de buscar conhecer o mundo. Algumas questões importantes se colocavam a nós: como fazer esta pesquisa de fato junto com as crianças? Como aproximar linguagens? Como abrir espaço para que elas também fossem protagonistas do processo? A resposta a estas perguntas veio do próprio campo: descobrimos na brincadeira uma linguagem comum que aproximava nossos corpos adultos e os corpos das crianças e dos adolescentes, de forma a instituir-se como principal linguagem do nosso pesquisar conjunto e a cidade mostrou-se a nós como um espaço de brincar. Ao brincar, ampliamos a possibilidade de conhecer e trocamos perspectivas sobre a cidade, abrindo espaço para a invenção de novos modos de habitá-la.
Experiência lúdica do espaço
Nas oficinas realizadas no primeiro ano de pesquisa, em que buscávamos investigar, junto aos jovens moradores da Mangueira, como era sua experiência do espaço da cidade, atentamo-nos para a percepção lúdica que as crianças e adolescentes têm do espaço. Em diversas atividades em que os convidávamos a encenar, desenhar, imaginar espaços da cidade, aparecia uma mistura de elementos reais com elementos fantásticos, como no dia em que desenhamos juntos um grande mapa da cidade do Rio de Janeiro:
Novamente, real e fantástico se misturam: desenhamos o alojamento do fundão, a Maré, o Maracanã, o ‘Monstro Feliz’, o ‘Mosquito da Dengue’, uma floresta, o campus da Praia Vermelha, as praias da Zona Sul, a ‘Mangueira’ e o ‘Tuiuti’, o quarto do Rogério, a baía de Guanabara, Janice fez o lago com as tartarugas, fizeram também um grande sol com um sorriso [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 100).
Crianças que são, os meninos e meninas deixam as coisas que fazem serem tocadas pela imaginação. Às vezes de forma tão intensa que monstros imaginados podem existir e dar medo de verdade:
[Marquinhos] Contou do dia que eles foram colher jaca no Parque Lage e que lá escutaram barulhos assustadores. Brinquei que talvez o monstro feliz estivesse no Parque Lage fazendo os barulhos. Ele faz uma cara engraçada, de espanto, não sei, e diz: ‘É mesmo, tia!’ [Caderno de campo. Maria Errante] (Ibid., p. 100).
Huizinga (2010, p. 7) afirma que a ludicidade se baseia em uma certa “‘imaginação da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)”, o que o leva a atentar para a função significante do jogo. Ele afirma que no ato de enunciar fala, criar linguagem, é como “se o espírito estivesse saltando entre a matéria e as coisas pensadas” (Ibid., p. 7), realizando um “jogo de palavras”, de forma que, “ao dar expressão à vida o homem cria outro mundo, o mundo poético ao lado da natureza” (Ibid., p. 7). As crianças, por estarem há menos tempo no mundo e, portanto, menos enrijecidas pelas coisas instituídas, realizam intensamente essa função significante e instituinte. É por isso que, no intuito de desenrijecer as formas fixadas, é importante aprender com elas.
Propor-se a pesquisar junto com as crianças e adolescentes exige despir-se da confortável posição de adultos racionais e discursivos. É necessário descentrar-se, sair da posição adultocêntrica que predomina em nossa sociedade e que considera a criança como um ser menor, que ainda não é, ser em desenvolvimento, como se algum dia o ser cessasse o movimento e parasse de se desenvolver. O que nos remete a uma potência dupla de deslocamento de um trabalho de extensão universitária realizado com crianças: da universidade para territórios “marginais” da cidade e de um pensamento acadêmico e adulto à forma das crianças de experienciar o mundo. Se, segundo Alvim (2017), a ideia de um deslocamento do centro para a margem sintetiza o “espírito” da extensão universitária, pensamos aqui nas inúmeras centralidades presentes em nossa cultura: a centralidade de um pensamento racional e discursivo, logocêntrico e adultocêntrico, de um pensamento permeado por uma lógica capitalista, centralidade de um pensamento academicista.
A proposta de sustentar uma horizontalidade no processo de pesquisa nos colocava, portanto, as seguintes questões: como estar em campo sem reafirmar as centralidades acadêmicas e adultocêntricas? Sem reafirmar a equivocada posição de “autoridade dos que sabem contra os que ignoram” (RANCIÈRE, 2012, p. 10)? A resposta a esses desafios veio da descoberta de nosso próprio corpo brincante, que a princípio se deu em nossos laboratórios corporais realizados de forma interna pela equipe de extensionistas. Se em 2015 percebemos nas crianças uma relação lúdica com o espaço da cidade, em 2016, acabamos por descobrir e experimentar essa experiência lúdica do espaço. É em um exercício de viewpoints, técnica teatral de experimentação do espaço, que aparece à primeira percepção de ativação desse corpo brincante:
Outro dia fizemos viewpoints. A potência do corpo expressivo que nasce de um contato mítico com o espaço, contato poético que permite nascimento de imagens. Imagens sacras. Imagens – corpo – experiência. Espaço potencial. Espaço de brincadeira. Que fica travestido de corpo e poesia [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 104).
Imagino onde queremos chegar, percepções sutis do grupo, sair dos gestos óbvios. Questão de tempo, ou de treino. Brincar, competir como criança, com as crianças, produzir ócio, investir no que não tem valor de troca. Clarice disse que ‘se as crianças pintam como Picasso, talvez seja mais justo louvar Picasso que as crianças. A criança é inocente, Picasso tornou-se inocente.’ Vamos por aí [Caderno de campo. Rafael Ostrovski] (Ibid., p. 104).
Rafael diz que é mais justo louvar Picasso do que as crianças, talvez porque o sair dos gestos óbvios de um corpo habitual – recuperar certa inocência e curiosidade no contato do corpo com o espaço – requer esforço de corpos que já estão há mais tempo enredados na cultura e no mundo. Nos parece que esses exercícios vão nos conectando de forma mais profunda ao corpo como um eu posso, de que nos fala Merleau-Ponty (2011/1945), essa capacidade criativa de instituir sentidos, criar modos singulares de expressão – entrar em contato mítico com o espaço e descobri-lo como espaço de brincadeira que, como dito por Alice na citação acima, “fica travestido de corpo e de poesia”. Este mesmo corpo brincante irá se apresentar também em nossas derivas pela cidade.
Em nossos laboratórios internos, nossa metodologia de deriva consistia em um momento inicial em que permanecíamos um tempo – de 5 a 10 minutos – quietos e de olhos fechados para entrar em contato com a paisagem sonora da cidade e ativar um corpo mais sensível ao espaço; um momento intermediário em que nos juntávamos em duplas ou trios para deambular em silêncio por um espaço determinado da cidade, durante um tempo previamente estipulado; e um último momento de compartilhamento de experiências. Foi em uma dessas derivas, que aconteceu nos arredores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que apareceu pela primeira vez mais claramente a ideia da cidade como espaço de brincar. Nesse dia, fazíamos a deriva orientados pela ideia de nos deixar surpreender pelos objetos que encontrássemos pelo caminho. Essa proposição acabou por fazer emergir um estado de jogo nos corpos dos integrantes da equipe, que passaram a brincar com os objetos encontrados. No fragmento a seguir, uma das integrantes da equipe narra um jogo estabelecido a partir do encontro seu e de seu parceiro de deriva com diversos cabides, jogados na rua por uma loja de roupas:
Dieymes pega um papel de coleta de lixo reciclável e pede para que eu coloque no pregador de um dos seus cabides. Começamos o jogo: pegar coisas das ruas para pendurar nos nossos cabides. Acho divertido pegar guimbas de cigarro para colocar nos cabides, porque os cabides parecem ter bocas de pato, é como se eu desse cigarros para os patos-cabides. Penduramos também: faixa de interditado, pedaço de madeira de lugar que havia sido queimado, papel de jogo do bicho, folhas secas. Juntamos todos esses elementos, fragmentos da cidade e colocamos os cabides nas grades da igreja. Parecia uma oferenda para Esú, senhor das ruas. Os objetos me distraíram de outras coisas que costumo prestar atenção em derivas. Mas me diverti demais. Cidade-espaço-de-brincar” [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 105).
Vamos (re)descobrindo, então, como adentrar em uma experiência lúdica do espaço, que acaba sendo uma experiência de criar outros universos dentro das formas cotidianas de habitar a cidade. No fragmento a seguir, Walter Benjamin (2013, p. 16) afirma que as crianças reconhecem nos resíduos e fragmentos do mundo o rosto que as coisas “voltam exclusivamente para elas”, recriando um pequeno mundo dentro do grande:
As crianças gostam muito particularmente de procurar aqueles lugares de trabalho onde visivelmente manipulam coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos desperdícios que ficam do trabalho da construção, da jardinagem ou das tarefas domésticas, da costura ou da marcenaria. Nesses desperdícios reconhecem o rosto que as coisas do mundo voltam exclusivamente para elas, precisamente e apenas para elas. Com eles, não imitam as obras dos adultos, mas antes criam novas e súbitas relações entre materiais de tipos muito diversos, por meio daquilo que, brincando, com eles constroem. Com isso as crianças criam elas mesmas seu mundo de coisas, um pequeno mundo dentro do grande.