Brincar pelas ruas: um pequeno grandioso exercício de liberdade
Ao longo da pesquisa, enfrentávamos alguns desafios – um deles era como propor às crianças e adolescentes experimentações que permitissem a mesma ativação do corpo sensível no espaço que experimentávamos em nossos laboratórios internos, a qual nos abria a possibilidade de desnaturalização dos hábitos perceptivos. Não parecia promissor utilizar com elas a mesma metodologia que utilizávamos entre nós: intuíamos que talvez elas não se interessassem em derivar silenciosamente pela cidade por um longo período de tempo. Fizemos algumas experimentações para investigar outras possibilidades de ativação desse corpo sensível no espaço, as quais acabaram por reforçar a ideia de transformar a cidade em um espaço de brincadeira, como em uma ocasião em que levamos as crianças e adolescentes vendados pelo metrô – experiência que se revelou muito divertida: cada solavanco dos trens do metrô era acompanhado de frios na barriga e gargalhadas. Nessa ocasião, experimentamos também uma certa reorganização do espaço que acontece quando o habitamos de forma não usual: as pessoas ao redor abriam espaço para que passássemos e a presença daquelas crianças, naquela configuração, provocava mais curiosidade do que suspeita.
Inspirados pela ideia da cidade como espaço de brincar, elaboramos uma forma lúdica de realizar uma deriva etnográfica junto com as crianças e jovens, a qual denominamos jogo dos post-its. O jogo contém três regras simples: 1) Separar grupos e entregar um bloco de post-it colorido (as cores distinguem os grupos), uma folha de papel e uma caneta; 2) Cada grupo deve circular por uma área mais ou menos delimitada, colando, nos espaços que interessarem o grupo, recados/orientações/brincadeiras para um suposto visitante. O grupo deve registrar o percurso em um mapa, com dicas de onde estão os post-its; 3) Após aproximadamente 30 minutos, retorna-se ao ponto inicial. Trocam-se os mapas e passa-se a procurar e experimentar as propostas dos post-its indicados por outro grupo. Como na imagem abaixo, em que um post-it azul convidava o grupo que o encontrasse a ficar um tempo encarando uma das estátuas de leão que guardavam a entrada de um prédio na Praça Tiradentes.
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Post-it azul com os dizeres: “Fique 30 segundos encarando um dos leões!”
À medida que propunha pequenas ações coletivas que se davam no encontro com o inesperado, o jogo possibilitou um modo singular e afetivo de cartografar os espaços urbanos. Junto às crianças, fomos reconhecendo “o rosto que as coisas do mundo voltam exclusivamente para elas” (BENJAMIN, 2013, p. 16), como quando encontramos um post-it que nos convidava a procurar por caracóis em um dos jardins da Praça Mauá e colocá-los para apostar corrida. Ou quando, no processo de derivar pela cidade, algumas crianças ficaram um longo tempo discutindo sobre a cor de uma lagartixa. Algo interessante a atentar sobre essa metodologia é que ela permite um compartilhamento de experiências do mundo que não passa pelo ato discursivo: ao procurar os post-its do outro grupo, acabávamos por refazer o seu percurso e éramos convidados, a partir dos escritos dos post-its, a partilhar das suas percepções do espaço. Para nós, foi importante encontrar essa forma lúdica de compartilhar a experiência, tendo visto que nos parecia que as discussões ou conversas sobre o que tínhamos vivido não permitiam que nos aprofundássemos na vivência das crianças. Essa troca de experiências permitia, ademais, que aprofundássemos nosso conhecimento do espaço, além de nos levar a prestar atenção em coisas inusitadas, que estão presentes no mundo, mas passam desapercebidas em nosso caminhar cotidiano adormecido.
Um momento bonito que ficou na memória foi quando um post-it que encontramos nos falava para encontrar e empinar pipas. Ficamos um tempão procurando até que vimos pipas distantes, no céu, e entendemos que devíamos empiná-las imaginariamente. Essa experiência, profundamente poética – assim como outras que vivemos durante esse processo –, nos fez experimentar um plano comum entre os corpos participantes da brincadeira. Tanto o grupo que colou o post-it quanto o que o encontrou viveram uma experiência estética compartilhada. A brincadeira e a poesia se revelaram formas potentes de borrar fronteiras entre mundos, entre corpos adultos, “acadêmicos”, e corpos de crianças, entre corpos do “morro” e do “asfalto”. Era possível experienciar a dimensão intercorporal da existência, definida por Alvim (2014, p. 175) como “algo da ordem de uma generalidade que brota da concordância do meu corpo com o corpo do outro, a partir de uma operação da experiência e não da representação”.
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Embaixo de uma grande estátua na Praça Tiradentes, que trazia ao seus pés escrita a palavra “Liberdade”, os dizeres de um post-it branco convidavam: “A liberdade está dando uma festa. Dance funk, pagode, forró e qualquer coisa”
Dentro do jogo, os espaços da cidade passam a convidar a movimentos inusitados, como na imagem acima em que, ao passar por uma estátua cravada com a palavra liberdade, éramos convidados a dançar. Os comandos escritos nos pequenos papéis coloridos acabavam virando propostas de micro programas performativos – deixadas no espaço endereçadas a um grupo específico, mas que poderiam ser encontradas por qualquer um. Por exemplo, um post-it que colocamos em uma grande pedra, na Quinta da Boa Vista, onde estava escrito “deite em cima da pedra e fique por 3 minutos olhando o céu” foi encontrado por um outro grupo de crianças que brincava no parque e que seguiu a proposição sugerida pelo post-it. Fomos assim construindo, junto às crianças e adolescentes, possiblidades de apropriação do espaço urbano para além de seus usos comuns, já instituídos, dando vazão às suas (e às nossas) percepções lúdicas do espaço. Ao traçar percursos pelo espaço orientados por uma lógica brincante, ao invés da costumeira lógica capitalista a ditar a circulação dos corpos, pudemos inventar outras narrativas do espaço da cidade, novos modos de habitá-la.
O processo de ocupar a cidade brincando acabou fortalecendo, também, nosso vínculo afetivo com as crianças. Ao sair ao ar livre e percorrer espaços, parecia se borrar uma certa lógica de professor/aluno, adulto/criança, morador do morro/do asfalto que se apresentava mais estabelecida nas oficinas ministradas dentro da ONG. Muitas vezes, quando estávamos conversando com as crianças sobre a pesquisa que realizamos, elas destacavam a amizade criada com os extensionistas como um dos pontos altos do processo.
Considerações finais
Brincar se mostrou um exercício fundamental de liberdade, prática instituinte que faz emergir novas configurações do espaço e do tempo. Nos lembramos aqui da noção de instituição para Merleau-Ponty, como algo que se dá num espaço intercorporal: “um sentido que me aparece por meio de uma situação – tempo-espacial – que produz um movimento, apela ao futuro, ao porvir” (ALVIM, 2012, p. 1016). Nos parece que, frente à necessidade de se repensar as formas de organização da vida coletiva, é fundamental que tenhamos uma escuta sensível às crianças e adolescentes e às suas formas de pesquisar e conhecer o mundo. A experiência de traçar uma pesquisa de forma efetivamente horizontal com crianças e adolescentes moradores da Mangueira exigiu de nós, pesquisadores adultos, diversos “descondicionamentos sociais” (Oiticica, 1986), principalmente: o deslocamento de um pensamento acadêmico e racional e o deslocamento de certos hábitos do corpo relacionados aos nossos pertencimentos territoriais. Através do encontro com as crianças, fomos lembradas/os de nosso corpo brincante e da potência que esse corpo tem de reinventar o espaço, criar novas narrativas. Percebemos nas crianças e adolescentes como este esforço abriu espaço para que elas pudessem expressar seus modos singulares de conhecer e se apropriar dos espaços. Pudemos assim aprender com elas e descobrir juntos que transformar a cidade em um espaço de brincadeira é uma maneira potente de produzir desvios em uma lógica urbana violenta e excludente.
Esperamos que o relato de pesquisa aqui apresentado possa contribuir para os debates acerca de metodologias de pesquisa criativas e participativas, em que as crianças e adolescentes sejam considerados em sua potência de pesquisadores e produtores de conhecimento sobre o mundo. Esperamos contribuir também para os estudos sobre as questões urbanas, sublinhando a importância de que as crianças e adolescentes possam participar dos debates sobre o direito à cidade a partir de seu modo singular e lúdico de experienciar o espaço.
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Resumo
Este artigo narra um processo de pesquisa vivido em parceria com crianças e adolescentes da Favela da Mangueira, Brasil, no qual se investigou as possibilidades de reinvenção de um espaço urbano fragmentado, marcado pela distinção corpórea e territorial de direitos. Com o intuito de provocar um estranhamento em relação às lógicas segregadoras da configuração urbana, foram elaborados exercícios de experimentação clínico-artística que permitissem desnaturalizar a percepção acerca desses modos habituais de habitação e circulação no espaço da cidade. O esforço de construir uma pesquisa de forma horizontal com as crianças e adolescentes acabou levando à invenção de dispositivos lúdicos de pesquisa e experimentação do espaço urbano. Esses dispositivos nos sinalizaram a possibilidade de proposição de uma lógica brincante de ocupação do espaço público como modo de contraposição aos modos instituídos dos ordenamentos sociais do poder e a importância de que aprendamos com os modos das crianças de conhecer e pesquisar o mundo.
Palavras-chave: direito à cidade, infância, clínica, arte, brincadeira.
De la ciudad fragmentada a la ciudad como espacio de juego: la invención de una metodología lúdica de investigación
Resumen
Este artículo narra un proceso de investigación vivido en colaboración con niños y adolescentes de la Favela da Mangueira, Brasil, en el que se investigaron las posibilidades de reinventar un espacio urbano fragmentado, marcado por la distinción territorial y corporal de derechos. Se desarrollaron ejercicios de experimentación clínico-artística, que tuvieron como objetivo desnaturalizar la percepción sobre estos modos habituales de habitación y circulación en el espacio de la ciudad, anclados en lógicas segregantes y violentas. El esfuerzo por construir una investigación horizontal con niños y adolescentes terminó conduciendo a la invención de dispositivos lúdicos para la investigación y experimentación en el espacio urbano. Estos dispositivos nos señalaron la posibilidad de proponer una lógica lúdica de ocupación del espacio público como forma de oponerse a los modos instituidos de orden social de poder y la importancia de aprender de las formas de los niños de conocer e investigar el mundo.
Palabras clave: derecho a la ciudad, infancia, clínica, arte, juego.
From a city in fragments to a city as a place to play: the invention of a ludic research methodology
Abstract
This article discusses a research process lived in partnership with children and adolescents from Favela da Mangueira, Brasil, in which the possibilities of reinvention of a fragmented urban space, marked by the corporal and territorial distinction of rights, were investigated. Clinical-artistic experimentation exercises were developed, which aimed to denaturalize the perception of these habitual modes of habitation and circulation in the space of the city, anchored in segregating and violent logics. The effort to build a horizontal research with children and adolescents ended up leading to the invention of playful devices for research and experimentation in urban space. These devices signaled to us the possibility of proposing a playful logic of occupying public space as a way of opposing the instituted modes of social order of power and the importance of learning from the children’s ways of knowing and researching the world.
Keywords: right to the city, childhood, clinic, art, play.
Data de recebimento: 31/01/2021
Data de aprovação: 11/05/2021