Poesia, luta, Des-idades
Acrescento, agora, versos de mais alguns poetas. Lutadores também? Parece-me que sim. Um é o compositor argentino Leon Gieco, que clama, em sua canção “Sólo le pido a Dios”9,
Sólo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente
Que el injusto no me sea indiferente
Que la guerra no me sea indiferente
Que el engaño no me sea indiferente
Que el futuro no me sea indiferente
…
Há potência transformadora no clamor de Leon Gieco para que ‘a dor, o injusto, a guerra, o engano e o futuro’ – a nós não nos sejam indiferentes. Há potência para luta, se eles continuam em nós, no campo da sensibilidade, da instigação e da indignação. São alimentos, são seivas da luta e para a luta. Como lutar, quando o futuro nos é indiferente? Como romper com as amarras dos padrões etários, a não ser que nos encharquemos de irrazoabilidades para o mundo presente, de forma a vislumbrar outros futuros?
E como cultivar idades a perder de vista, entre nós e em nós, por dentro e por fora?
Em uma composição, Francis Hime e Milton Nascimento ressaltam a potência das parcerias e que, a partir delas, ao transformar os presentes, é possível reinventar futuros.
Primeiro cruzamos caminhos
Corremos o verde do tempo
Pisamos o chão como índios
Nascemos do mesmo luar
E, então, inventamos futuro
Juramos a cumplicidade
[…]
De fato teimosos que somos
Partimos direto pra briga
Não houve desfeita ou intriga
Que nos confundisse a razão10
Somos nós jovens, crianças, adultos, velhos, adolescentes e outras idades, que nem mesmo sabemos nominar? Ser humano do tempo de des-idades e despropósitos, criança mais desassossegada não conheço do que aquela que está, que se revela, que se constrói na poesia de Manoel de Barros. Reconheço desmesurada potência em seus versos, capazes de transformar realidades que, aparentemente blindadas e a toda prova, se fazem flácidas e mesmo delicadas, diante do vigor incomensurável da poesia.
Diz-nos o poeta, em ‘Memórias inventadas – A infância’, obra publicada quando Manoel de Barros estava com 87 anos de idade (ou DesIdade?),
Tudo o que não invento é falso.
Porque se a gente fala a partir do ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.
Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.
Uso a palavra para compor silêncios.
Já em ‘O Fazedor de amanhecer’, Barros nos sussurra uma terna confidência, em dois tempos, “só o silêncio faz rumor/ no voo das borboletas”.
Diz mais ainda, “com as palavras se podem multiplicar os silêncios”.
E aponta uma invenção sua, literalmente relacionada ao firmamento, e aos tantos dos seus mistérios, “o fazedor de amanhecer para usamentos de poetas”.
10 – A música está no CD ‘Essas Parcerias’, de Francis Hime.