Introdução
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes – ESCCA – se configura como relação de mercantilização e abuso do corpo de crianças e adolescentes, promovida por exploradores sexuais através das grandes e complexas redes de comercialização local e global ou a partir da conivência de pais/responsáveis ou de consumidores do sexo pago (Souza Neto & Viana, 2015; Morais et al, 2007; Faleiros, 2000; Leal, 1999). A mesma se constitui como grave violação aos direitos da criança e é descrita pela Organização Internacional do Trabalho – OIT como uma das piores formas de trabalho infantil (Cerqueira-Santos et al, 2008). Violações aos direitos da criança e do adolescente resultam de relações assimétricas de poder consolidadas em uma cultura adultocêntrica e impactam suas dignidades e cidadanias. As múltiplas e complexas questões envolvidas na violação de direitos, somadas aos recortes de gênero, raça e etnia, ampliam o grau de vulnerabilidade a que algumas crianças e adolescentes estarão expostas (Gomes, Farias & Franco, 2017; Cegatti, 2017).
No Brasil, apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990) – estabelecer as responsabilidades da família, do Estado e da sociedade sobre a garantia dos direitos desta parcela da população como prioridade absoluta, percebe-se que a violência sexual presente na sociedade ainda representa grave violação que põe em risco o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes em todo o país. Um estudo da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI (2004) –, da Câmara dos Deputados do Governo Federal, identificou, no ano de 2003, em 23 estados brasileiros, 937 municípios onde a ESCCA se revelava prática recorrente. Deste total de municípios, 31,8% se concentrava na Região Nordeste; 25,7% na Região Sudeste; 17,3% na Região Sul; 13,6% na Região Centro-Oeste; e 11,6% na Região Norte. Em todas as regiões foram identificadas tanto a prática da prostituição quanto do tráfico de pessoas, da pornografia e do turismo sexual envolvendo crianças e adolescentes. O Nordeste apresentava o maior número de casos registrados.
Um relatório de Monitoramento de País sobre ESCCA, realizado pela ECPAT Internacional, e publicado em 2014, ressalta que os dados do Disque 100 revelam que, na estratificação das denúncias sobre violência sexual contra crianças e adolescentes, predominam os casos de abuso sexual, seguidos da exploração sexual, pornografia e tráfico de pessoas, com maior incidência na faixa etária de 07 a 14 anos. De acordo com os dados, somente nos anos de 2012 e 2013 foram registradas no Brasil 69.621 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, totalizando uma média de 2.900 delações por mês. Apesar dos esforços dirigidos ao enfrentamento e combate à ESCCA, atualmente o país registra uma média diária de 87 queixas de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Desigualdade social, vulnerabilidade socioeconômica, limitação do acesso a bens e serviços relacionados às diferentes políticas públicas, a exemplo das políticas de educação e saúde, assim como as vicissitudes do contexto da violência são, frequentemente, apontadas como os principais fatores que favorecem para que pais e/ou responsáveis, muitas vezes, submetam seus filhos às situações de exploração sexual (ECPAT, 2014; Libório & Castro, 2010; Viana, 2010). Outros estudos também apontam que alguns profissionais, pelas especificidades de suas atividades laborais, estarão mais propensos ao envolvimento com a ESCCA, atuando como clientes em um mercado clandestino e ilegal (Davidson & Taylor, 1996; In: Cerqueira-Santos, Rezende & Correa, 2010). Entre estes, se destacam os caminhoneiros, que cruzam as estradas, quase sempre, sozinhos. Tal especificidade parece favorecer seus engajamentos em práticas sexuais comerciais, não raro, com crianças e adolescentes (Cerqueira-Santos & Souza, 2015; Cerqueira-Santos et al, 2008; Koller, 2004).
Diversos dados do Fundo das Nações Unidas para Infância – UNICEF (2012) – apontam que as crianças estão entre as principais vítimas do tráfico de seres humanos para fins de prostituição. Também evidenciam que a exploração sexual de meninos e meninas acontece, com maior frequência, nas proximidades das rodovias, especialmente nos postos de gasolina. O grande fluxo de veículos e a constante circulação de pessoas em um mesmo local parecem favorecer a prática da ESCCA nestes locais, contando, muitas vezes, com a participação ativa de vários atores sociais, a exemplo dos próprios caminhoneiros, taxistas, comerciantes, donos de casas noturnas e familiares da criança/adolescente.
O VI Mapeamento de Pontos Vulneráveis à ESCCA nas Rodovias Federais Brasileiras, realizado pela Childhood Brasil, entre 2013 e 2014, registrou 1.969 pontos de risco e vulnerabilidade em todo o país. A estratificação dos números revela que a região Nordeste ocupa a segunda posição no ranking nacional, totalizando 475 pontos críticos, 19 a menos que a região Sudeste. Contudo, considerando os níveis de riscos classificados como “críticos”, “alto” e “médio”, a região Nordeste revela pontuações bem superiores. Em todas as regiões do país, os postos de gasolina foram destacados como os principais pontos de maior vulnerabilidade e risco para crianças e adolescentes.
Pernambuco tem se destacado como um dos estados com os maiores índices de ocorrências de ESCCA, com a prática da prostituição infanto-juvenil presente em 38,05% dos seus 184 municípios (Souza Neto, 2009). Na atualidade, a ESCCA ainda se faz prática comum, tanto na capital quanto nas demais regiões, especialmente, no sertão do Estado (Rios et al, 2009; Menezes-Santos & Rios, 2009; Souza Neto & Viana, 2011).
No Sertão do Pajeú pernambucano, microrregião formada por 20 municípios, Serra Talhada se destaca por sua forte economia, sendo responsável por 31,4% do Produto Interno Bruto – PIB – da Região (Tavares Neto et al, 2008). A inexistência de dados oficiais tem impossibilitado o mapeamento preciso do fenômeno da ESCCA, tanto no município, como na região. Contudo, a grande movimentação de caminhões nos postos de gasolina, bem como a constante circulação de crianças e adolescentes nas rodovias, especialmente na BR 232, alerta para as possíveis situações de vulnerabilidade e risco (Koller, 2004).
A partir dessas premissas, este estudo objetiva identificar como os caminhoneiros que transitam, pernoitam ou se hospedam em Serra Talhada compreendem o fenômeno da ESCCA. Busca assim, detectar a percepção dos sujeitos investigados sobre tal fenômeno, refletir sobre suas concepções acerca da infância e adolescência, bem como identificar até que ponto os mesmos se reconhecem como participantes ativos da violência sexual contra crianças e adolescentes. Em consonância com Morais et al (2007), acreditamos que a população de caminhoneiros precisa ser mais bem estudada, a fim de favorecer uma compreensão mais ampla acerca do que eles pensam sobre a ESCCA, como também sobre os fatores ou motivos que favorecem seus engajamentos com o referido fenômeno.
Violência sexual contra crianças e adolescentes
A violência contra crianças e adolescentes pode ser concebida como todo ato de maus tratos, negligência ou omissão, praticada por outras pessoas, sejam estas os pais, responsáveis, parentes, pessoas próximas ou não da família, bem como instituições. Este ato pode causar danos físicos, sexuais, morais e/ou psicológicos às vítimas. Se, por um lado, este tipo de violência se configura como descumprimento do poder/dever legal de proteção por parte do adulto e da sociedade, por outro, caracteriza um processo de coisificação da infância. Processo pelo qual se nega o direito que crianças e adolescentes possuem de serem concebidos e tratados como sujeitos em condições especiais de desenvolvimento (Deslandes, Assis & Santos, 2005).
Para Nunes e Sales (2016), a violência se configura como fenômeno social e de saúde pública, com maior exacerbação quando acontece com crianças e adolescentes, provocando impactos no desenvolvimento e grande repercussão no comportamento na vida adulta. Ressalta-se, assim, que tão importante quanto quantificar as formas de violência que acometem estes sujeitos, é saber diferenciar qual e como cada gênero sofre com os maus-tratos, haja vista que a intervenção deverá se dar em respeito às particularidades de cada caso. Neste sentido, para se caracterizar o gênero prevalente nos casos de violência, faz-se necessário avaliar o tipo de violência perpetrada, considerando que a violência sexual tende a ser dirigida mais frequentemente às meninas e a física e a negligência, mais comumente dirigida aos meninos.
Segundo a OMS (2002), violência sexual é todo ato sexual não desejado, ou ações de comercialização e/ou utilização da sexualidade de uma pessoa mediante qualquer tipo de coerção. Sofrida em maior prevalência pelas mulheres, trata-se de uma das manifestações da violência de gênero mais cruéis e persistentes. Para Delalibera, Franco e Franco (2017), por muito tempo a violência sexual contra as mulheres foi considerada prática habitual, justificada e aceita por diferentes sociedades. A permanência da diferença/desequilíbrio de poder entre homens e mulheres tem permitido a perpetuação da mesma enquanto fenômeno que demanda estudos e análises mais amplos.
Scott (1988, 1995) propõe que o conceito de gênero é fundamental para explicar como as diferenças são transformadas em desigualdades através de um processo histórico, político e relacional de dominação masculina sob o feminino. Em sua concepção, o salto de uma discussão centrada na natureza para uma reflexão crítica sobre a política das relações permitiu o processo de desconstrução dos estereótipos e de luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Assim, o construto gênero também passa a ser entendido como primevo na significação das relações de poder, sendo necessária sua redefinição e reestruturação de modo articulado a um senso de igualdade política e social que também abarca classe e raça.
Dentre as modalidades de violência, o abuso sexual revela-se uma das mais cruéis, afetando a dimensão física, moral e a autoestima das vítimas. Abuso sexual pode ser definido como todo e qualquer ato de sedução ou jogo sexual entre um adulto e uma criança/adolescente, podendo ou não haver contato físico e uso de força (Rios et al, 2009; Ungaretti, 2010). Segundo a OMS (1999), os maus-tratos sexuais devem ser entendidos como atividades de caráter sexual, exercidas por uma pessoa mais velha contra uma criança ou adolescente, objetivando prazer sexual por parte do agressor. Inclui os abusos sensoriais, que abrangem a pornografia, o exibicionismo e a linguagem sexualizada; os estímulos sexuais, que podem envolver as carícias e toques nas genitálias e a masturbação; e o ato sexual propriamente dito, caracterizado pela realização, ou tentativa, de conjunção carnal (Souza Neto & Viana, 2015).
Já a exploração sexual, de natureza complexa e multifacetada, se configura como prática cruel e criminosa, capaz de provocar danos profundos no corpo e na alma das vítimas. Trata-se de um fenômeno mundial não associado, exclusivamente, à pobreza e/ou miséria, que afeta todas as classes sociais e está diretamente ligado a aspectos culturais, bem como, às questões de gênero, de faixa etárias, de raça e condição socioeconômica, cuja prática se faz comumente coligada às redes de exploração sexual em suas diferentes expressões (Souza Neto & Viana, 2015; Figueiredo & Bochi, 2010).
Tanto as situações de pobreza como a violência intra e extrafamiliar são frequentemente apontadas como fundamentais para que milhares de meninas e meninos se tornem mais expostos aos riscos da violência sexual e de outros tantos tipos de violação de direitos (Libório, 2005). Ainda que as mesmas não sejam, em si, determinantes para o ingresso de crianças ou adolescentes nas redes de exploração sexual comercial, é inegável suas configurações enquanto fatores de vulnerabilidade bastante significativos (Figueiredo & Bochi, 2010).