O olhar e a transmissão: da tela à janela
Lúcia, 18 anos, descreve a perda que se dá na transposição do ensino presencial para o remoto: “O professor perdeu o brilho, as aulas perderam o encanto, não tem cor, toque, cheiro, troca de olhares. Os professores parecem robôs, sem vida”. Mais adiante, acrescenta que, na tela, “o professor está dentro de um quadrado, e ao lado ele, 40 quadradinhos […] Eu perdi o interesse pelas aulas”.
Como é possível constatar, a substituição do ensino presencial pelo remoto envolve perdas. A imagem reproduzida numa tela plana, bidimensional, não capta todo o colorido pulsional que se transmite no encontro “olho a olho”.
A imagem fixa na tela não faz “função quadro”. A função quadro é articulada à função da fantasia pelo enquadre do olhar, uma construção que é subjetiva. Através do conceito de quadro, a geometria perspectiva permite mostrar a estrutura visual da fantasia que enquadra o olhar. O quadro Os embaixadores, de Holbein, é utilizado por Lacan para ilustrar a esquize entre visão e olhar (Lacan, 1995/1964). Ao ver o quadro de frente, o sujeito está no mundo da representação, com os objetos simbólicos e culturais do mundo sensível. No entanto, um objeto faz mancha no quadro, é um elemento estranho ao conjunto que escapa à cena do mundo. Esse objeto é percebido quando o espectador muda de posição e se coloca lateralmente, olhando o quadro de viés, mudando o ponto de vista (Quinet, 2002). Essa mudança de perspectiva faz mancha no campo visual e abala o registro especular.
Para Porge (2009), quadro e janela se equivalem para instaurar uma nova lógica do olhar. Um quadro é um ato de abertura, que visa criar bordas sobre uma superfície sem bordas. Abrir uma janela é traçar uma moldura, um gesto para olhar. Ao traçar um quadrilátero sobre uma superfície, abre-se uma janela. A lógica do olhar é a lógica da janela segundo a topologia do furo. Assim, o quadro comporta uma dupla perspectiva: enquadre e furo, fechamento e abertura.
Para Belting (2015), o globo ocular, considerado do exterior, é um espelho redondo sobre cuja superfície o mundo circundante se reflete, mas através da pupila o olhar se volta para o exterior, como se fosse uma janela. A janela corresponde também a uma moldura, que não é só uma delimitação estética, mas também um parâmetro de medida.
Na cultura ocidental, o mundo é um mundo a ser visto e se abre ao olhar por detrás de uma janela simbólica. A janela permite ao espectador estar “aqui”, presente com o seu corpo, e entregar-se ao “ali”, a lugares que só o olhar pode alcançar. Ao permitir superar o obstáculo da parede, o olho desvincula o observador de seus limites corpóreos. Para o olhar ocidental, é diante da janela que se decide a relação com o mundo. “Assim, a janela é ao mesmo tempo vidro e abertura, enquadramento e distância” (Belting, 2015, p. 117).
Para Lacan o correlato do quadro é o ponto de olhar, que está situado no mesmo lugar em que se encontra o quadro, mas do lado de fora. Entre os dois está “o anteparo, o écran” (Lacan 1973/1964, p. 95). Assim, é possível fazer uma distinção entre tela e quadro. Como salienta Quinet, se a tela é um anteparo ao olhar para o sujeito, o quadro pode representar não só o olhar, mas também o próprio sujeito da representação (Quinet, 2002).
Enquanto a tela faz anteparo ao olhar, a janela permite a abertura, a passagem, a transposição. A mancha no quadro faz função de janela ao incluir um elemento estranho ao conjunto, algo perturbador que faz mudar o ponto de vista.
A mancha na imagem faz borda entre desejo e gozo, articulando o real do olhar ao campo perceptivo, causando o desejo. Mas a mancha também pode invadir o campo visual, desestabilizando-o, produzindo o efeito que se tem quando o sujeito é confrontado com algo excessivo, com um olhar invasor.Nesse caso, a aparição disruptiva do objeto no campo visual se dá na forma de uma intrusão geradora de angústia, provocando a desestruturação radical da cena do mundo.
A nossa hipótese é a de que a mancha, em sua função de borda entre desejo e gozo, atua na transmissão do saber. O olhar incide sobre o campo visual através da mancha. É através da mancha que o real se apresenta na cena, enlaçando simbólico e imaginário. A mancha é tanto o segredo do fascínio do olhar, que causa o desejo e impulsiona o saber, quanto o que se transmite do real no sombreado da visão. Algo da dimensão do gozo escapa entre os significantes e se apresenta como mancha do olhar.
Em sua reflexão sobre as sessões virtuais em análise, Rivera (2020) observa que na live não há outro ponto de vista possível, pois é impossível olhar a pessoa de lado, explorar suas facetas, flutuar no espaço à sua volta. A autora ressalta, ainda, que a tela é plana, bidimensional, anulando qualquer possibilidade de que haja algo “embaixo” dela. Assim, defende que a tela não é um véu que convida ao gesto de desvelamento de algo, mas um simples écran que achata qualquer espessura, dando-se como uma perspectiva mínima, única e evidente, que não oferece ao espectador senão a equivalência frontal, ou seja, a complementaridade intersubjetiva, capturando o sujeito em uma identificação com aquela imagem, sem brecha para um terceiro, ela é um espelho imóvel. Diante dela, não se pode mover ou gesticular de modo a quebrar sua captura fascinante pela percepção do corpo que está fora da imagem. Assim, ela defende que, nos atendimentos online, trata-se de assumirmos – em ato – a invenção de estratégias para abrir brechas na tela.
Para além dos atendimentos online, a transmissão de saber se sustenta naquilo que escapa ao campo visual, o objeto olhar. A transmissão envolve a dimensão do gozo, e o objeto a é um elemento de gozo. Nesse sentido, para que a transmissão tenha lugar, é preciso fazer mancha na tela, deixando escorregar isso que se transmite de piso a piso.
Marina, 10 anos, ao comentar sobre o despreparo de uma professora no uso das tecnologias digitais, diz que em suas aulas a sua imagem sai do campo visual, ela começa a falar com os alunos com o microfone desligado, compartilha a sua imagem na tela ao invés do texto da aula, conversa com quem está ao seu lado sem desligar o microfone, e pede ajuda aos alunos na utilização dos recursos tecnológicos.
Curiosamente, Marina diz que essa é a sua professora preferida: “Eu gosto muito dela, ela sempre escuta a gente no início da aula, pergunta se a gente está bem, e diz que quer ver a carinha de cada um”. Apesar das dificuldades técnicas, Marina diz gostar das suas aulas, pois “a professora explica bem; é cuidadosa com a gente”. Nota-se, então, que o domínio tecnológico não garante a transmissão de saber. Talvez até mesmo por não pretender ocupar o lugar de quem detém o saber, a professora oferece um lugar ao saber do aluno e viabiliza a transferência.
Educar passa por algo que escapa ao professor. O professor no processo de ensino transmite “através do seu testemunho, seu afeto, sua pulsão, considerando que as tecnologias afetam tanto os espaços físicos, quanto os espaços subjetivos da educação” (Dias et.al.,2019, p. 207). O ensino remoto estandardizado corresponde à aspiração contemporânea de uma subjetividade sem restos. Nas aulas online, o enquadre da imagem na tela sugere um mundo rigorosamente ordenado, calculado, previsível, capturado e cristalizado num espelho imóvel. No entanto, como vimos, algo pode furar essa previsibilidade, esse cálculo, essa ordenação. É furando o sentido que algo pode ser transmitido.
Para Lacan, a transferência é um jogo de olhar. O olhar para o sujeito é sempre “um jogo da luz com a opacidade” (Lacan, 1995/1964, p. 95). Esse jogo é da ordem de uma invenção com o que há de intransmissível. Porge (2019) esclarece que “o intransmissível está no coração do desejo de transmitir, não como inefável perdido nas areias de um deserto, mas como soleira para a invenção” (p. 15). Assim, na transmissão, trata-se de um saber-fazer com o jogo de olhar.
Algumas considerações finais
Na contemporaneidade, a desvalorização do Ideal e a ascensão ao zênite social do objeto a (Lacan, 2003/1970) expõem um real sem lei e fora do sentido. Diante do declínio do Ideal, a vertente estrutural do supereu assume o lugar de comando, incitando o gozo.
O desejo de ver se transforma em um imperativo de gozo que se impõe a todos, alimentando a ilusão de transparência. As telas tomaram todo o espaço social, ninguém escapa aos seus ferozes olhos mecânicos (Didi-Huberman, 2014)
O uso das redes sociais captura os sujeitos pela modalidade de gozo escópico, incitando o “ver” e o “dar-se a ver”. No entanto, o excesso de luz das telas pode destruir a própria exposição, pois, como salienta Didi-Huberman (2014), ao se exibirem como mercadorias em vitrines, trocando a dignidade civil pelo espetáculo comercializável, os sujeitos desaparecem. Para o autor, a claridade dos nossos tempos faz desaparecer os vaga-lumes que, como lampejos moventes do desejo, precisam das sombras para sobreviver.
O ensino remoto nos coloca uma série de desafios: como enlaçar os sujeitos através da tela? Como fomentar a busca de saber? Como fazer da tela uma janela, condição para a transmissão?
Diante da luz que nos ofusca, podemos emitir pequenos lampejos que sustentam uma força diagonal na claridade (Didi-Huberman, 2014). É preciso buscar nas margens desse mundo inundado de luz os pequenos lampejos que, como restos, possibilitam a transmissão. Assim, algo da dimensão pulsional pode incidir sobre a tela e fazer mancha na imagem, num jogo de sombra e luz que toca o sujeito. É pela via de um saber fazer com o jogo de olhar que algo se transmite.
Referências bibliográficas
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Resumo
Partindo da escuta de crianças e adolescentes sobre as suas experiências com o ensino remoto no período da pandemia, este artigo aborda a questão do olhar e sua relação com a transmissão de saber. O eixo central dessa discussão é a noção de olhar entre desejo e gozo. O texto percorre os temas da transitoriedade, transferência e transmissão, para analisar os impasses da transmissão mediada pela tela.
Palavras-chave: olhar, transitoriedade, transmissão, tela.
Data de recebimento: 14/05/2020
Data de aprovação: 25/08/2020
“No sé si el professor me está mirando”: la mirada y la pantalla
Resumen
A partir de escuchar a los niños y adolescentes acerca de sus vivencias con la educación a distancia en el momento de la pandemia, este artículo aborda los temas de la mirada y su relación con la transmisión de saber. El eje central de esta discusión es la noción de mirar entre el deseo y el disfrute. El texto aborda los temas de la fugacidad, la transferencia y la transmisión, para analizar las dificultades de transmisión mediadas por la pantalla.
Palavras clave: mirada, fugacidad, transmisión, pantalla
“I don’t know if the teacher is looking at me”: the look and the screen
Abstract
Basing on listening of children and teenagers about their experiences with remote learning at the pandemics moment, this article deals with the questions of looking and their relationship with the transmission of knowledge. The central axis of this discussion is the notion of looking between desire and enjoyment. The text covers the themes of transience, transference and transmission, to analyze the difficulties of transmission mediated by screen.
Keywords: look, transience, transmission, screen