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Infância rural e trabalho infantil: concepções em contexto de mudanças

No Brasil, desde as últimas décadas do século XX, múltiplos agentes sociais, vinculados às instituições nacionais e internacionais, públicas e privadas, comprometidos com as causas da infância, passaram a problematizar e combater o trabalho infantil em relações assalariadas, relacionando-as à exploração, violência, degradação e ao aviltamento das crianças. As providências para enfrentamento desse problema social foram a garantia da educação escolar e a institucionalização de programas de distribuição de renda. Na primeira década do século XX, mudanças nos dispositivos legais passaram a tipificar como trabalho infantil diversas atividades realizadas por crianças em unidades de produção familiar. Sob a perspectiva de agricultores familiares, o trabalho de crianças no âmbito domiciliar integra processos de socialização e formação de futuros herdeiros e trabalhadores. Porém, algumas mudanças jurídicas, a valorização da escola e determinadas políticas de combate ao trabalho infantil interferem nas formas de socialização e nas concepções de infância no meio rural.

Este artigo analisa concepções de infância e de trabalho da criança vigentes na legislação brasileira em contraponto à visão de agricultores familiares1. Em termos metodológicos, a pesquisa combinou levantamento documental e estudo de caso. Os documentos utilizados foram dispositivos legais produzidos por instituições internacionais e nacionais relacionadas ao trabalho infantil. Na compreensão de situação particular, uma vez que o estudo da infância requer análise de contextos e de relações sociais situados no tempo e no espaço em que as crianças vivem, a pesquisa foi desenvolvida no município de Itapuranga – Goiás, Brasil. Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de entrevista semiestruturada dirigida aos pais e às mães das crianças. Teoricamente fundamentada nos novos estudos da infância, que, sociologicamente, posiciona as crianças como agentes de suas narrativas e sujeitos ativos dos processos de aprendizagem e socialização (Sarmento, 2005; 2008), a proposta original da pesquisa previa entrevistas com crianças rurais. Em 2009, ao ser submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de duas universidades parceiras, o projeto teve diversos questionamentos e solicitações de alterações, cujo encaminhamento implicou a exclusão das entrevistas com crianças2. Atuando à luz da Resolução 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, os membros do CEP tinham dificuldades para compreender e aprovar um projeto envolvendo crianças em situações consideradas ilegais. Na realidade, aquela Resolução foi concebida a partir de um modelo biomédico, o que a tornava inadequada para uma avaliação ética de uma pesquisa social, como já analisado por Víctora (2004), MacRae e Vidal (2006) e Diniz (2008).

Todavia, o fato de o trabalho da criança no meio rural ser considerado trabalho infantil, portanto, legalmente proibido, impôs ao pesquisador cuidado ético e responsabilidade para preservar as identidades e intimidades das famílias de agricultores. Na realidade, a pesquisa surgiu como uma demanda do movimento sindical de trabalhadores rurais, vinculado à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o que conferiu certa legitimidade e firmou compromisso ético e político com os agricultores, responsáveis pelas crianças. Além disso, a atuação como coordenador de projeto de extensão universitária, com foco no desenvolvimento agroecológico, possibilitou o estabelecimento de relações de amizades com agricultores de Itapuranga, bem como momentos privilegiados para observação do envolvimento das crianças no trabalho familiar.

A amostragem da pesquisa constituiu-se de 16 agricultores familiares, que são pais de crianças rurais com idade entre 6 e 14 anos. Suas propriedades têm, em média, 17,5 hectares, sendo que 13 agricultores são proprietários do imóvel e três moram e trabalham na propriedade dos pais ou sogros. Ali, produzem frutas, verduras e leite com interesse mercantil, bem como diversos cultivos e criações de pequenos animais para consumo familiar. Entre os entrevistados, 69% executam as atividades produtivas somente com mão de obra familiar, enquanto 31% raramente contratam mão de obra externa. Quanto à escolarização, 65% dos pais e das mães das crianças tinham o ensino fundamental incompleto; 20%, ensino fundamental completo; 5%, ensino médio incompleto; e 10%, ensino médio completo. Todos os agricultores pesquisados eram beneficiários do Programa Bolsa Família.

Infância e trabalho infantil: perspectiva legal em breves apontamentos

A compreensão de infância enquanto categoria social requer a análise dos diferentes contextos econômicos, históricos, sociais e culturais em que as crianças vivem. A partir da experiência francesa, Ariès (1981) afirma que as diferentes sociedades e grupos sociais construíram diferenciadas maneiras de perceber e inserir as crianças em espaços institucionais considerados adequados de socialização. Ao longo do tempo, as sociedades processaram mudanças nas instituições, nos dispositivos legais, nas políticas públicas e nas imagens de infância e, por consequência, nas noções e formas de organização de família. Sob essa perspectiva, a infância torna-se uma metáfora sociocultural que permite visualizar as sociedades em mudanças e analisar as transformações sociais estabelecidas para as crianças ou mesmo pelas crianças.

Na contemporaneidade, as concepções hegemônicas de infância e de direito da infância foram socialmente construídas pela atuação de agentes sociais afiliados a organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Desde o pós-guerra, esses agentes sociais investem na internacionalização dos direitos da criança, empenhando grandes esforços na promoção de debates e de positivação das convenções e dos tratados nos ordenamentos jurídico-constitucionais. Em seus postulados, defendem que crianças e adolescentes são pessoas em condições especiais de desenvolvimento e sujeitos de direitos próprios, com necessidade de proteção específica e formação educacional antes de ingressarem no mercado de trabalho.

De acordo com Bobbio (2004), a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, pela ONU, deflagrou um amplo movimento de internacionalização dos direitos humanos. A noção de sujeitos de direitos, independentemente de nacionalidade, reconheceu a dignidade humana e os direitos, iguais e inalienáveis, para todas as pessoas, como princípios da liberdade, igualdade, justiça e paz no mundo, que devem ser garantidos pelos Estados nacionais em seus ordenamentos constitucionais e jurídicos. O aperfeiçoamento gradual da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda segundo Bobbio (op. cit.), estendeu o reconhecimento de direitos individuais, coletivos e difusos para categorias específicas de pessoas, como crianças e adolescentes, idosos, mulheres, deficientes físicos, minorias étnicas e grupos indígenas, dentre outras.

Sob essa orientação, as pessoas são consideradas iguais pela natureza humana, mas diferentes na diversidade de suas condições, necessidades e concepções sociais. Nesse sentido, como destacou Bonnet (1999), a Declaração Universal dos Direitos da Criança, promulgada pela ONU em 1959, procurou fundar concepções universais de infância e de direito da infância, enfatizando o papel dos Estados, da sociedade e da família na promoção e garantia dos direitos da criança.

Outras organizações internacionais agregaram-se aos esforços para universalizar concepções e direitos da infância. A OIT centrou esforços no combate ao trabalho infantil, especialmente por meio da Convenção n.º 138, de 1973, ao propor a criação de um instrumento único e universal, destinado a “obter a abolição total do trabalho de crianças”. Para tanto, o artigo 2º dessa Convenção recomendava aos Estados signatários que a idade mínima não deveria ser “inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a quinze anos”. No entanto, o artigo 3º estabelecia a proibição de trabalhos que representassem riscos à saúde, segurança e moralidade para menores de 18 anos. Já o Unicef, por meio da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, reafirmou a concepção de que as crianças são sujeitos de direitos econômicos, sociais, culturais e civis. Dessa forma, segundo Bonett (1999), as questões relativas à infância deveriam ser abordadas não a partir dos costumes das famílias, da sociedade ou da legislação de cada país, mas da perspectiva legal universal, fundamentada na noção de desenvolvimento integral das crianças.

O conceito de desenvolvimento integral, como construção universal, defende o valor intrínseco da criança como ser humano, a necessidade de respeito à sua condição de pessoa em processo de desenvolvimento, o seu valor prospectivo como portadora da continuidade de sua família, de seu povo e da espécie humana, bem como o reconhecimento de sua vulnerabilidade social. As crianças constituem-se, portanto, sujeitos de direitos próprios e com necessidades de proteção social, específica e integral, a serem garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. A infância passou a ser considerada uma fase de vida de aprendizado, estudos escolares, inocência, alegria e brincadeira. As crianças deveriam estar livres das agressões do mundo real. Assim, todas as formas de violência, negligência, abuso e exploração, incluindo o trabalho infantil, deveriam ser combatidas.

Aos adultos, foram atribuídas responsabilidades de garantir condições para o pleno desenvolvimento físico, intelectual, psicológico e social das crianças. Com efeito, aos menores de 15 anos, foi assegurado o direito ao não trabalho; aos adolescentes entre 16 e 18 anos, foi permitido o trabalho, desde que não prejudique a saúde e a moral. Isso significou a ampliação do tempo de dependência da criança e do adolescente aos adultos e a responsabilização dos adultos pelo provimento de suas necessidades.

No Brasil, as proposições do movimento internacional de luta pelos direitos das crianças e adolescentes foram incorporadas na Constituição Federal de 1988, artigo 227, que afirma o dever da família, da sociedade e do Estado em garantir, para as crianças e adolescentes, com prioridade absoluta, direitos à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, bem como a proteção de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão. As concepções introduzidas nessa Constituição foram regulamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/1990. Segundo Méndez (1998), o ECA introduziu significativas mudanças tanto nas concepções de infância, de direito e de cidadania da população infanto-juvenil, quanto no reordenamento político-institucional, em conformidade com os pressupostos filosóficos, jurídicos e sociais propugnados pelos organismos internacionais. Assim, abriram-se mais espaços para a participação da sociedade civil na discussão, na decisão e no controle das políticas públicas para a infância.

O ECA estabeleceu a proibição do trabalho aos menores de 14 anos, salvo na condição de aprendizes, entre os 12 e 14 anos. A legislação proibiu a inserção laboral precoce em razão das repercussões perversas sobre a saúde e escolarização, mas permitiu ao adolescente o trabalho como processo de aprendizagem, visando à formação do futuro trabalhador, mediante definição de programa educacional e garantia do direito à escolarização. Com a promulgação do ECA, cresceu a luta de erradicação do trabalho infantil.

Nos primeiros anos da década de 1990, diversos agentes sociais, públicos e privados, comprometidos com o combate das formas perversas de exploração de trabalho infantil, criaram espaços para o debate, conscientização e mobilização da sociedade para o enfrentamento desse problema social. Por conseguinte, foram instituídas políticas de combate ao trabalho infantil e de valorização da escola sob o pressuposto de que o “lugar de criança é na escola e não no trabalho” (Neves, 1999; Marin, 2005). A obrigatoriedade da escolarização e o cumprimento da legislação operam como marco referencial para construir concepção consensual, normas de enquadramento social e ações de erradicação do trabalho infantil. Outra providência encaminhou-se para a concessão de renda mensal às famílias em situações de pobreza, condicionada à matrícula e permanência escolar (Marin; Marin, 2009).

A Emenda Constitucional nº 20/1998 introduziu novas mudanças ao estender para os 14 anos a proibição de trabalho e, entre os 14 e 16 anos, a condição de aprendiz. Portanto, relações de trabalho podem ser estabelecidas após os 16 anos, mas são interditadas atividades noturnas, insalubres, perigosas, penosas e prejudiciais à educação e moral dos menores de 18 anos. Pela Emenda Constitucional, o Brasil aproximou-se das orientações da Convenção 138 da OIT no sentido da afirmação de esforços para o combate do trabalho infantil e da elevação da idade mínima de admissão a emprego ou a trabalho, visando a garantir “um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental do jovem”.

Vale ressaltar que a Convenção 182 da OIT, de 1999, trouxe importantes especificações de modalidades de trabalho infantil socialmente condenáveis, que repercutiram sobre concepções de trabalhos realizados por crianças em unidades de produção familiar no Brasil. Essa Convenção definiu as “piores formas de trabalho infantil”, divididas em quatro principais categorias: a) as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão; b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de materiais ou espetáculos pornográficos; c) utilização, demanda e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; d) trabalhos que, por sua natureza ou circunstância de execução, são prejudiciais à saúde, segurança e moral da criança. Pelos gravíssimos riscos às crianças, essas categorias de trabalho infantil deveriam ser erradicadas.

Como desdobramento da ratificação da Convenção 182 da OIT, o governo brasileiro publicou o Decreto 6.481/2008 que, na especificação do item “d” da Convenção 182, apresentou a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, designada Lista TIP, que especifica trabalhos com prováveis riscos ocupacionais e repercussões danosas à saúde em atividades relacionadas à agricultura, pecuária, silvicultura e exploração florestal. Em consideração dos gravíssimos riscos à criança, presentes e futuros, todos os trabalhos contidos na Lista TIP foram legalmente proibidos.

Enfim, legislações e políticas públicas tendem a construir visões universais de infância e de trabalho, que se tornam eixo de mobilização dos diversos agentes sociais comprometidos com a campanha de combate das formas de violência, negligência e exploração infantil. Essas visões universalistas desconsideram especificidades dos contextos econômicos e socioculturais em que as crianças rurais e seus familiares vivem e trabalham.

1 – Este artigo é resultado de um projeto de pesquisa desenvolvido em parceria entre as Universidades Federais de Goiás (UFG), de Santa Maria (UFSM) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro para a realização da pesquisa de campo e à Capes pela bolsa de pós-doutorado, que muito facilitou a elaboração deste artigo. Agradeço também aos agricultores familiares de Itapuranga pelo acolhimento em suas casas e pela disponibilidade para relatar sobre a socialização de seus filhos. As lacunas remanescentes e as opiniões expressas no artigo são de minha inteira responsabilidade.
2 – O projeto de pesquisa teve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, Brasil, e o levantamento de dados foi realizado em junho de 2010.
Joel Orlando Bevilaqua Marin bevilaquamarin@gmail.com

Doutor em Sociologia; Pós-doutor pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Paris – França; Professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria e do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil.