Menoridade sexual na legislação penal brasileira e em decisões judiciais
Na legislação penal brasileira contemporânea, o que poderíamos ver como ‘menoridade sexual’ toma forma, de maneira mais restrita, no artigo 217-A do Código Penal brasileiro, que define o crime de “estupro de vulnerável” como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”1. Observa-se que praticar qualquer ato sexual com menores de 14 anos corresponde ao crime de estupro, ou seja, a uma relação sexual não consentida e, portanto, a uma violência sexual. Isso significa que, até certa idade, o menor é visto como ‘objeto’ e nunca como ‘sujeito’ em uma relação sexual, isto é, sua vontade e agência não são consideradas juridicamente válidas.
Em outras condutas também criminalizadas na legislação brasileira, como a prostituição ou exploração sexual e a pornografia envolvendo crianças e adolescentes, a ‘menoridade sexual’ ou ‘idade do consentimento’ é mais elevada (18 anos). Entretanto, não vou me deter nessas diferenças, pois o que me interessa apontar é que a ‘menoridade’ é um elemento importante para invalidar o ‘consentimento sexual’, sendo atualmente representada como uma forma de ‘vulnerabilidade’ que serve de base para desconstruir a autonomia da vontade em decorrência de uma imaturidade biológica e social (ou cognitiva e moral) e de uma condição (ainda que transitória) de desigualdade social (Lowenkron, 2015).
Cabe notar que o tipo penal autônomo “estupro de vulnerável” (artigo 217-A do Código Penal) só foi incluído na legislação penal brasileira a partir da Lei nº 12.015 de 2009. Entretanto, o critério de idade para presunção de violência no antigo delito de estupro e no revogado delito de atentado violento ao pudor não constitui uma novidade, já sendo previsto na redação original do Código Penal de 1940. Este critério era estabelecido na alínea “a” do revogado artigo 224 do Código Penal, que previa a presunção de violência, caso o ato sexual fosse cometido com menores de 14 anos. Além de aumentar as penas mínima e máxima para esse tipo de crime, o objetivo da alteração legislativa que criou o delito de “estupro de vulnerável” era evitar que decisões judiciais pudessem relativizar a presunção de violência, validando o consentimento do menor de 14 anos em certos casos.
A exposição de motivos do Código Penal de 1940 esclarecia que o fundamento da ficção legal de violência e a razão da tutela do menor de 14 anos eram a ‘innocentia consilii’ do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu ‘consentimento’. De acordo com o Manual de Direito Penal Brasileiro de autoria do penalista Luiz Regis Prado,
A presunção da violência nos delitos sexuais, também conhecida por ‘violência ficta’, está prevista na maioria dos Códigos Penais, em face da excepcional preocupação do legislador com determinadas pessoas que são incapazes de consentir ou de manifestar validamente o seu dissenso (Prado, 2006, p. 244).
Julio Fabbrini Mirabete, em seu Código Penal Interpretado, destaca que “embora seja certo que alguns menores, com essa idade, já tenham maturidade sexual, na verdade não ocorre o mesmo com o desenvolvimento psicológico” (Mirabete, 2001, p. 1511).
Até a década de 1990, a maioria dos doutrinadores entendia que a presunção da violência por ‘menoridade’ era absoluta. No entanto, segundo Regis Prado (2006, p. 245), a partir de determinado momento, “passou a entender a melhor doutrina que a presunção da norma em epígrafe é relativa”. Segundo o autor, tal entendimento passou a ser predominante, de modo que se a vítima, apesar de contar com menos de 14 anos, for experiente em assuntos sexuais, ou se já atingiu maturidade suficiente para discernir se lhe é conveniente ou não praticar o ato libidinoso, descaracteriza-se o delito2.
A possibilidade de relativização da presunção de violência em função da experiência ou maturidade sexual do menor de 14 anos passou a ser duramente criticada por defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes, levando em 2009 à alteração legislativa que inseriu o tipo autônomo de “estupro de vulnerável”, entre outras importantes modificações3. Entretanto, conforme esclarece Castilho (2013, p. 138), “a alteração legislativa […] não afastou a polêmica, pois agora se trava o debate sobre ser a ‘vulnerabilidade’ relativa ou absoluta, principalmente nos casos de adolescentes na faixa de 12 a 14 anos”.
Assim, mesmo sendo ancorado na legislação anterior à reforma do Código Penal de 2009, um caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 1996 continua sendo exemplar para ilustrar as controvérsias em torno da ‘menoridade sexual’, tanto pela riqueza dos argumentos quanto pela inovação e excepcionalidade da decisão na mais alta instância do Judiciário brasileiro. Trata-se de um ‘habeas corpus’ cujo Paciente (denominação equivalente a “réu” em ‘habeas corpus’) era um homem de 24 anos, que fora condenado nas duas instâncias do Tribunal de Justiça de Minas Gerais por estupro com violência ficta, por manter relações sexuais com uma menina de 12 anos. No entanto, anos depois da condenação, os Ministros do STF concederam ‘habeas corpus’ ao rapaz, em decisão histórica e polêmica, vencida por três votos a dois.
Para desclassificar o estupro, absolvendo o rapaz, o argumento legal do Relator, Ministro Marco Aurélio de Mello, foi que teria ocorrido “erro de tipo”, ou seja, dado que a relação fora consentida e que o acusado não tinha como saber que a menina era menor de 14 anos, portanto não poderia prever que estava cometendo um crime, então não houve crime. Mas, se o ‘erro de tipo’ é o argumento técnico-jurídico para a concessão do ‘habeas corpus’, inocentando o rapaz pelo fato de não ter tido condições de reconhecer que a menina era menor de 14 anos, os argumentos morais utilizados pelos magistrados para fundamentá-lo buscam desconstruir a ‘menoridade’ da vítima.
Como propus em outro artigo (2007), ao analisar detalhadamente os votos dos Ministros da Suprema Corte sobre esse caso, os magistrados que se posicionaram a favor da absolvição do acusado enfatizaram ora a aparência madura e a experiência sexual precoce da menina, ora a ausência de outras assimetrias além da idade que pudessem configurar o constrangimento e a contaminação da vontade4. Um terceiro argumento mencionado dizia respeito à acelerada mudança dos costumes no mundo contemporâneo, com o consequente anacronismo do Código Penal na definição da idade que se supõe a “innocentia consilii” para o engajamento na relação sexual.
Seja enfatizando a aparência e a conduta pregressa, seja enfatizando a ausência de outras assimetrias além da idade, os discursos dos Ministros que votaram pelo deferimento da ordem de ‘habeas corpus’ desconstroem a ‘menoridade’ da vítima, ao descaracterizar, no caso, a pureza, a inocência e a vulnerabilidade associadas à imagem infantil, ‘lócus’ privilegiado da ‘menoridade’. Os dois votos que indeferem o pedido de ‘habeas corpus’, por sua vez, vão, ao contrário, procurar garantir o direito de proteção legal da menina, reconstruindo a sua ‘menoridade sexual’. Os argumentos procuram fundamentar a invalidação do consentimento da adolescente, ao enfatizar a sua essencial vulnerabilidade, inocência e imaturidade, apesar de sua experiência sexual anterior e aparência física precoce.
Para justificar a tutela, ou seja, o impedimento legal de autogestão da sexualidade, um dos ministros enfatiza, ainda, a ignorância da menor sobre as consequências dos atos e a natureza biológica dos ‘instintos sexuais’ que afloram na adolescência, tornando as meninas púberes mais ‘vulneráveis’. O fenômeno biológico enfatizado nessa argumentação é a puberdade, que estaria associada a um período de perturbação psíquica que, aliada a pouca experiência, tornaria frágil a vontade da ‘adolescente’. Segundo essa visão, a lei deve proteger crianças e adolescentes independentemente de suas condutas e, talvez valesse acrescentar, de suas vontades.
Analisando os acórdãos do STF sobre o tema desde 1996, um estudo recente (Ferreira, 2014) revela que este último entendimento tem sido predominante nessa Corte e se fortaleceu com a alteração legislativa de 20095. As decisões judiciais examinadas pela pesquisadora envolvem situações diversas (abuso sexual intrafamiliar, intercâmbio sexual casual, relações amorosas e estáveis, prostituição ou sexo em troca de benefícios econômicos)6 que foram tipificadas como crime de estupro com violência presumida contra menores de 14 anos (sempre meninas e geralmente entre 12 e 13 anos) e que ao menos uma das partes do processo (a defesa) alega que o sexo fora consensual, frequentemente relembrando a decisão do STF de 1996. Assim, o trabalho revela também que até hoje as controvérsias morais e jurídicas acima mencionadas atravessam processos e decisões judiciais.
2 – Contudo, nesses casos, considera o jurista que há de se ter maior rigor na avaliação, “pois a infância e a pré-adolescência são fases da vida em que o ser humano encontra-se vulnerável e suscetível de abuso, engodo, manipulação e autoritarismos” (Prado, 2006, p. 246), de modo que qualquer dissenso do menor, ainda que não se trate de uma resistência militante é suficiente para configurar o estupro.
3 – A mais importante alteração da Lei 12.015 foi a substituição do título no Código Penal no qual se inserem os crimes sexuais: aquilo que antes era chamado de “crimes contra os costumes” passou a ser denominado de “crimes contra a dignidade sexual”. Além disso, todas as diferenças de gênero e conotações morais dos delitos sexuais foram abolidas. O estupro, por exemplo, passou a incluir não apenas a conjunção carnal (coito vaginal), mas qualquer ato libidinoso praticado mediante violência ou grave ameaça, de modo que homens também passaram a ser possíveis sujeitos passivos deste crime e o antigo delito de “atentado violento ao pudor” foi revogado.
4 – Nos termos de um dos ministros: “poderia, numa situação diversa desta dos autos, entender que houve algum constrangimento […] se não fosse o réu um jovem operário, tão simples quanto a vítima sob todos os aspectos, exceto a menoridade dela”.
5 – Nos termos da autora, “pode-se perceber um movimento claro da jurisprudência do STF no sentido de considerar absoluta a presunção de violência. Esse posicionamento veio a ser confirmado pela lei penal posterior, com reforma de 2009, fato que chega a ser mencionado em processos após essa data” (Ferreira, 2014, p. 79). Segundo ela, apenas na decisão de 1996 por mim mencionada, essa presunção foi efetivamente relativizada pelo Supremo Tribunal Federal, mas esse julgamento é constantemente lembrado nos processos judiciais por aqueles que pretendem defender a possibilidade dessa relativização.
6 – Algumas vezes as decisões judiciais sequer trazem informações acerca da natureza da relação entre vítima e acusado e quase nunca há menção à idade do segundo.