Menoridade e consentimento sexual
O conceito de ‘idade do consentimento’, muitas vezes tomado como um dado nos debates públicos e políticos, “é em si mesmo significante como forma de representação que influencia a compreensão da lei” (Waites, 2005, p. 1). Portanto, para concluir este artigo, abordo as seguintes questões: o que sexo tem a ver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? E quem é considerado capaz para consentir?
É importante notar que o ‘consentimento’, tal qual foi definido no pensamento liberal, pode ser entendido como um ato de vontade e, ao mesmo tempo, como uma capacidade para exercer livremente a própria vontade. Nesse sentido, a capacidade de ‘consentimento’ pressupõe a ideia de autonomia individual, que tem como pré-requisito o autodomínio, isto é, um ‘self’ livre de coações ou constrangimentos e capaz de governar racionalmente a si mesmo. Portanto, desde o Iluminismo, formas particulares de competência associadas à capacidade intelectual de razão e exercício do livre arbítrio foram valorizadas. Segundo Waites (2005, p. 19, tradução nossa), “neste contexto, características atribuídas a alguns grupos sociais foram sistematicamente associadas ao tipo de ação que se imagina ser o consentimento”.
Desse modo, a apreciação das transformações históricas nas desigualdades de gênero é vital para a análise dos debates em torno do significado da noção de ‘consentimento’ no âmbito do comportamento sexual. Em especial, é importante notar a passagem de um contexto patriarcal hierárquico para outro marcado por ideais igualitários. Neste último, a ofensa sexual é entendida não mais como ameaça à honra da família, mas como uma violência contra o corpo íntimo e privado e o ‘consentimento’ passa a ter uma importância maior do que o status social da pessoa ofendida (se é casada, virgem, prostituta, mulher honesta, criança inocente…) no julgamento dos crimes.
Se, por um lado, a noção de ‘consentimento’ pode ser definida como “uma decisão de concordância voluntária, tomada por um sujeito dotado de capacidade de agência, razão e livre arbítrio” (Lowenkron, 2007, p. 735), por outro, esta definição não pode ser plenamente compreendida sem considerar algumas críticas feministas a este conceito. Ao analisar comparativamente os argumentos da cientista política inglesa Carole Pateman e da jurista estadunidense Catharine MacKinnon, Flávia Biroli (2013, p. 130) sintetiza estas críticas nos seguintes termos: “a questão é se há consentimento genuíno, autonomamente definido, quando as preferências e as escolhas definem-se em contextos assimétricos, em meio a relações de opressão e dominação”. Nesse sentido, o ‘consentimento’ é concebido na teoria política feminista, simultaneamente, como um dos principais pilares das democracias liberais e de suas contradições (Pateman, 1980).
Nos anos 1970, algumas campanhas feministas nos EUA enfatizaram a clareza de distinção entre ‘consentimento’ e ‘não consentimento’, como revela o slogan anti-estupro ‘yes means yes’ and ‘no means no’. Outra corrente do feminismo conceitualizou a existência de um ‘continuum’ entre o intercurso sexual heterossexual plenamente consentido e o estupro.
A noção de ‘continuum’ descreve mais adequadamente as experiências de mulheres que podem ceder ao sexo sem necessariamente consenti-lo mais ativamente, o que implica uma maior agência. Essa ideia é útil para conceitualizar as formas e os níveis de consentimento no comportamento sexual envolvendo crianças (Waites, 2005, p. 21, tradução nossa).
Vale lembrar que os conflitos contemporâneos sobre as ‘leis da idade do consentimento’ são localizados em um contexto no qual crianças e adolescentes passaram de um estado de total subordinação à família ou aos tutores para se tornarem “sujeitos de direitos” – a partir da aprovação da Convenção Universal de Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (1989), no plano internacional; e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), no plano nacional. Surge, então, a necessidade de encontrar formas de conciliar a compreensão de crianças e jovens como sujeitos especiais, ou seja, tendo que ser protegidos e formados, mas também compreendidos como indivíduos portadores de direitos. Esse é um dos dilemas que estão em jogo nos debates em torno das ‘leis da idade do consentimento’ nos dias atuais, que discutem formas apropriadas de direitos de crianças e adolescentes em relação à sexualidade (Waites, 2005).
O princípio que fundamenta a ‘menoridade sexual’ não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que este não desenvolveu, ainda, as competências consideradas relevantes para consentir uma relação sexual. Supõe-se que a competência para tomada de decisões vem com o tempo, através de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (con)formado. De acordo com o atual entendimento majoritário da lei e da jurisprudência do STF, para os quais o critério etário na definição da ‘menoridade sexual’ é absoluto (Ferreira, 2014), crianças e adolescentes até 14 anos são considerados sujeitos incompletos e incapazes. Sendo assim, o exercício de sua vontade deve ser tutelado pela lei até que ele ou ela tenha se tornado um sujeito pleno para consentir livremente a relação sexual.
No entanto, é importante lembrar que, se, por um lado, a periodização da vida é um modo de institucionalizar as transições das pessoas, instituindo idades ideais para cada coisa (Souza, 2005), por outro, para compreender as formas de regulação da conduta sexual, não se pode tomar a ‘idade’ como critério único e absoluto. A ‘idade’ está associada a moralidades diferenciadas de acordo com o gênero. Além disso, por vezes, as assimetrias de ‘idade’ são articuladas a outras assimetrias, como aquelas relativas às posições sociais e à classe. Sendo assim, a análise dos entrecruzamentos de categorias parece ser o melhor meio para entender os processos de regulação social e jurídica da sexualidade no contexto político contemporâneo.
Entretanto, pensar a idade como uma categoria de diferenciação articulada a outros marcadores sociais de diferença/desigualdade é importante, mas insuficiente para compreender as controvérsias jurídicas em torno da ‘menoridade sexual’. Como foi possível observar a partir dos argumentos dos magistrados que defenderam a absolvição do rapaz na histórica e polêmica decisão do STF de 1996 (que relativizou a ‘menoridade sexual’), eles não só destacavam a inexistência de outras assimetrias entre o maior e a menor além da idade, mas conferiam particular importância à aparência e à conduta pregressa da “menina”, ou melhor, “daquela que, considerada destituída de inocência, passou, então, a ser vista como ‘moça’ de 12 anos” (Lowenkron, 2007, p. 738).
Nesse sentido, assim como o gênero, e articulada ao gênero, a idade pode ser entendida como um efeito performativo e uma performance, ou seja, como algo que os sujeitos devem se tornar continuamente por meio da estilização repetida de atos, nos termos de Judith Butler (2003). Isto é, para ser reconhecido como ‘menor’ e, portanto, ser considerado e tratado como legalmente incapaz para realização de certas práticas (neste caso, o ‘consentimento sexual’), nem sempre basta ter certa idade, é preciso ‘parecer’ que a tem. A meu ver, essa decisão judicial foi inovadora e controversa justamente porque desconstruiu a articulação imediata e naturalizada entre ‘cronologização da vida’ e ‘estágios de maturidade’ (Debert, 1998), pressuposta na noção jurídica de ‘idade do consentimento’.
Se isso, em geral, não tem ocorrido mais nas decisões do STF, como mostra a análise de Ferreira (2014), é porque a imagem idealizada da inocência infantil ameaçada tem sido eficazmente (re)construída por meio de artifícios retóricos daqueles que defendem que a ‘menoridade sexual’ seja absoluta. A questão relevante a ser investigada a partir disso é se esses artifícios têm sido realmente efetivos para proteger crianças e adolescentes de carne e osso do abuso e da violência ou se tem servido antes para resguardar o ideal moderno de infância pura, inocente e vulnerável, que historicamente tem servido ora para legitimar a exclusão dos menores que não correspondem a esse ideal do direito de proteção, ora para disciplinar o exercício da sexualidade juvenil, justificando o controle (algumas vezes violento) em nome da proteção.
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Resumo
O artigo aborda o principal modo jurídico de regular a conduta sexual de acordo com a idade, analisando a manipulação de dispositivos legais que definem a ‘menoridade sexual’ ou ‘idade do consentimento’, bem como as controvérsias jurídicas e morais em torno do tema. O objetivo é desnaturalizar as premissas que servem de base para essa regulação, dando ênfase à dimensão social e performativa das categorias etárias e ao seu entrecruzamento diferenciado de acordo com gênero, classe ou ‘status’ social. Por fim, serão examinadas as seguintes questões: o que sexo tem a ver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? Quem é considerado capaz para consentir?
Palavras-chave: menoridade, consentimento sexual, leis, decisões judiciais.
Data de recebimento: 21/09/15
Data de aceite: 04/03/16