Chile, a situação da infância em cifras e a Convenção
A situação das crianças no Chile é problemática. Segundo o relatório do Observatório da Infância (2014), 22,8% da população infantil do Chile se encontra abaixo da linha da pobreza e 71% dos lares com crianças não atinge a média da renda nacional. Além disso, o Chile foi caracterizado como um dos países mais desiguais do mundo, situação que gera a conformação de territórios segregados espacialmente (Rodríguez; Arriagada, 2004) que aprofundam estas diferenças. Por exemplo: em setores com alta presença de população indígena, como Araucanía e Biobío, a pobreza aumenta para 38,3% entre crianças de 6 a 13 anos.
Além disso, o Chile é um dos países com as cifras mais altas de maus-tratos infantis e isso sem importar o estrato socioeconômico das crianças. De acordo com cifras do UNICEF Chile (2012), 71% das crianças e adolescentes revela sofrer algum tipo de violência por parte dos pais, 25,9% declara sofrer violência física grave e 29,8% declara ter pais que se agridem.
As cifras expostas nos permitem afirmar que as crianças chilenas vivem cotidianamente uma situação de subordinação que representa para elas algum nível de vulnerabilidade, e isso somente por serem crianças. A esta subordinação por posição (Liebel, 2009) devemos somar aquelas vulnerabilidades de classe, gênero e etnia para compreender a forma como as crianças vivem a infância no Chile.
Se no capitalismo moderno nós todos vivemos algum nível de vulnerabilidade e/ou exclusão, as crianças concentram desigualdades e perdas somente por serem crianças, ao fazerem parte de uma relação social que os situa abaixo do mundo adulto, fato que tem consequências diretas nas suas dinâmicas de vida cotidiana. Estas formas de vinculação desigual foram denominadas práticas adultocêntricas e, tal como propõe Duarte (2012), implicam supor uma relação de subordinação na qual se espera que as crianças sejam obedientes e submissas, especialmente nas instituições fundadoras do ordenamento social, como a escola e a família.
Esta posição é atravessada por uma relação de subordinação em termos dos direitos políticos e sociais das crianças. Llobet (2013), parafraseando Bourdieu (1998) no seu estudo sobre a família, denomina a infância como uma categoria social institucionalizada, justamente porque contribui para a reprodução da ordem social, um certo tipo de ordem social, na qual as crianças experimentam uma relação de absoluta subordinação jurídica e cívica ao Estado nação onde nasceram.
Ante esta relação que expressa um diferencial de poder explícito sobre as crianças, o mundo adulto decidiu reconhecer uma série de direitos que atualmente são conhecidos como a Convenção sobre os Direitos da Criança (a partir de agora, CDC).
O Chile assinou esta declaração em 1990, como parte de una série de mudanças institucionais decididas após o fim da ditadura militar. Com essa assinatura, o Estado chileno se comprometia a garantir a participação das crianças em todos os âmbitos da vida, incluindo a dimensão política. A determinação da CDC indica que as crianças devem deixar de ser consideradas como um objeto de proteção para ser consideradas sujeitos de direito (Cillero, 1994), o que implica reformular abertamente a estrutura jurídica, social e cultural do país, fundada em um modelo tutelar no qual o Estado substitui os pais quando estes não podem ser responsáveis pelas “suas” crianças. Neste modelo os pais “possuem” as crianças, cuja agência é limitada[1].
O cumprimento desta determinação no caso chileno tem sido especialmente problemático e só pode ser entendido em um processo de democratização incompleto, que tem caracterizado os anos pós-ditatoriais, nos quais os pilares do modelo neoliberal não foram tocados[2] e nos quais as crianças continuam vivendo a maior das subordinações.
Um fato especialmente relevante é que um dos objetivos propostos pelo Chile em 2001, através do Ministério de Planejamento e Cooperação (Mideplan), consistia em “gerar espaços e mecanismos específicos de participação efetiva das crianças nas decisões que as afetam, o que seria um claro e rentável investimento na construção da cidadania e no fortalecimento da democracia”[3]. (Governo do Chile, 2000, p. 2). No entanto, não se conseguiu implementar esta política (Conselho Nacional da Infância, 2015) e o comitê de ministros constituído para monitorar a sua implementação deixou de funcionar.
É a partir desta experiência frustrada de política de infância que, durante o segundo governo de Michelle Bachelet, é criado o Conselho Nacional da Infância, que tem como tarefa gerar uma nova política nacional de infância 2015 – 2025, cujo objetivo é responder às observações realizadas pelo Comitê dos Direitos da Criança (organismo internacional que supervisiona a aplicação da CDC pelos seus Estados Partes), que no seu último relatório, emitido em 2007, posiciona o Chile como um dos países que menos avançou na região em relação à incorporação da infância em termos cidadãos e como o único país latino-americano que não conta com uma lei de proteção das crianças.
Tal como menciona Morlachetti (2013, p. 21), “o Chile não tem uma lei de proteção integral e, portanto, também não tem um sistema nacional de proteção integral.” Foi promulgada uma série de normas orientadas ao cumprimento das obrigações que o Chile contraiu ao ratificar a CDC, mas, de acordo com Morlachetti, a maioria destas disposições é abordada a partir de uma perspectiva que não permite um reconhecimento universal de direitos, uma vez que não abandona os aspectos clássicos que caracterizam um Estado tutelar. O Estado continua sendo, portanto, um “pai” diante de uma infância coisificada.
O governo da infância no Chile: que cidadania oferece o Estado Chileno?
Segundo Liebel (2009), ao conceituar a cidadania na infância não é possível se restringir ao direito ao voto. Ele afirma a este propósito que,
[…] implica o direito geral de influir de maneira efetiva e sustentável em todos os assuntos de interesse público. Neste contexto, devemos distinguir entre direitos políticos que formalmente se encontram estabelecidos e a pergunta sobre que ações de uma sociedade devem ser entendidas como manifestação de uma determinada vontade política e aceitas como legítimas. (Liebel, 2009, p. 81)
De fato, o Estado Chileno produz uma ação afirmativa ao assinar a Convenção e com isso reconhece os direitos das crianças. No entanto, é necessário observar neste gesto a efetiva vontade de incluir as crianças como sujeitos de direito. Estas ações realizadas podem ser entendidas como o governo da infância e, ao analisá-las, podemos refletir sobre que possibilidades as crianças teriam de serem consideradas como cidadãs ante uma oferta determinada. Tal como propõe Lister (2007), existe uma relação direta entre as concepções de cidadania atribuídas à infância e a possibilidade de as crianças participarem efetivamente na sociedade, isto é, o Estado contribui para a geração de um tipo de infância. Em Estados de grande investimento social como a Inglaterra, o Canadá e alguns países da União Europeia, é problemática a cidadania da infância, já que as crianças são compreendidas como cidadãos em formação que representariam “cidadãos trabalhadores do futuro”[4] (Lister, 2007, p. 697), o que implica entender a sua cidadania como incompleta e para a qual o Estado deve fornecer as ferramentas e competências que permitam que eles alcancem um status completo, quando adultos. Esta situação é muito diferente do caso norueguês, no qual Kjorholt (2002) observa que as crianças são consideradas como cidadãos completos no presente, peças essenciais da conformação do Estado democrático.
[2] Para maior aprofundamento, sugiro o texto “La Revolución Capitalista de Chile (1973-2003)” de Manuel Gárate Chateau, Ediciones Universidad Alberto Hurtado, Santiago, 2012.
[3] Todas as citações do texto foram traduzidas para o português. (N.T.)
[4] Lister (2007) faz uma clara referência aos fundamentos expostos nas políticas de atenção precoce inglesas, que poderíamos comparar com os discursos presentes em programas chilenos como o Chile Cresce Contigo. Para maior informação ver GONZÁLEZ, A. Chile Crece Contigo: la búsqueda de la igualdad desde la infancia temprana. In: CASTILLO, M.; BASTÍAS, M.; DURAND, A. Desigualdad, Legitimidad y Conflicto: Dimensiones políticas y culturales de la desigualdad en América Latina. Santiago, Chile: Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2011, p. 271-290.