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Os “nós” da rede: a construção de ações intersetoriais na prevenção ao uso de drogas com jovens escolares

Introdução

A adolescência é definida popularmente como um momento de transição que conecta a infância à vida adulta. Entre os autores que estudam o desenvolvimento humano, como Vigotski e Piaget, é nesse período que os indivíduos atingem maturação cognitiva suficiente para o surgimento de pensamentos que passam a ser abstratos, possibilitando indagações e reflexões sobre a estrutura da sociedade e a realidade em que está inserido, bem como questionamentos acerca de seu papel no mundo. Nesse estágio, questões como a dependência dos pais e a autonomia começam a ser postas em xeque, uma vez que a construção de uma identidade social é estimulada (Bock, 2018).

Sendo assim, inicia-se um ciclo de ruptura com os valores pré-definidos quando criança, para buscar a construção de uma autoimagem subjetiva a partir do que herdou até então (Corso; Corso, 2018). Todavia, as questões que emergem aos adolescentes podem não encontrar respostas nos grupos em que já transitam, como por exemplo no grupo familiar. A instituição familiar e suas organizações hierárquicas podem dificultar a horizontalidade do diálogo entre os adolescentes e as figuras de referência, dado que nesses espaços há uma delimitação clara daquilo que deve ou não ser feito, estabelecendo uma relação rígida e verticalizada. Desta forma, na busca por uma independência, os jovens procuram recorrer àqueles que parecem passar por situações semelhantes, encontrando nos pares um sentimento de pertença e de compreensão.

A busca pela construção de uma identidade adulta diante da sociedade pode conduzir o adolescente à adoção de condutas características da adultez, a fim de afirmar seu lugar socialmente. Dentre as condutas, destaca-se, entre outros, o consumo de substâncias psicoativas (Braatz et al., 2017). No decorrer da vida, o sujeito terá sua vivência atravessada pelo uso de drogas, uma vez que esse é um fenômeno que acompanha a história da civilização humana (Torossian; Cannas; Amaral, 2020). Ao ser convocado a construir uma identidade social, o adolescente, quando em contato com a droga, poderá construir sua relação com esta a partir da representação cultural do seu território. Em alguns contextos, apesar do conhecimento dos riscos, o uso de substâncias psicoativas pode estar relacionado com a ideia de aceitação e reconhecimento em grupos sociais, que podem não ocorrer em outros espaços, como por exemplo o escolar ou familiar (Torossian; Cannas; Amaral, 2020). A sensação de não pertença aos grupos em que o adolescente está inserido pode acarretar sentimentos de inseguranças e incompreensão, encontrando na relação com pares a aceitação desejada e, em virtude disso, pode tornar-se suscetível à influência do meio em que está inserido (Braatz et al., 2017).

Atualmente, dados nacionais e mundiais acerca da drogadição têm sinalizado a urgência de abordar tal temática. De acordo com o United Nations Office on Drugs and Crimes – UNODC (2020), por meio do Relatório Mundial Sobre Drogas das Nações Unidas, em torno de 35 milhões de pessoas apresentam acometimentos na saúde relacionados ao uso e abuso de substâncias psicoativas. Contudo, o relatório ainda aponta que o acesso e acompanhamento em saúde contempla apenas uma a cada sete pessoas que dele necessitam. Em consonância aos acordos com as agências internacionais, todo país democrático possui uma política nacional de registro e consumo de substâncias psicoativas (Bastos et al., 2017). Em se tratando do Brasil, no III Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, publicado no ano de 2017, fica evidenciado que os programas de prevenção à drogadição devem se debruçar especialmente sobre a população adolescente e jovem adulta, uma vez que compõem o público com maior aumento do uso de drogas em relação a levantamentos anteriores (Bastos et al., 2017).

Além disso, a experiência de isolamento e distanciamento social como medida sanitária em saúde para prevenção contra a infecção viral da Covid-19 tem sido apontada em estudos como um estressor significativo, sinalizando para o aumento do uso de substâncias psicoativas. As medidas restritivas na livre circulação social estabelecidas pelos órgãos sanitários produziram mudanças cotidianas na vida dos sujeitos. Schmidt et al. (2020) destacam que a vivência pandêmica pode ocasionar o desencadeamento de sintomas psicológicos como angústia, solidão, irritabilidade, tédio, desesperança entre outros, aumentando as probabilidades de abuso de substâncias psicoativas.

O Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto setor responsável pela articulação da saúde no território brasileiro, instituiu dentre suas políticas, através do decreto n° 6.286, do ano de 2007, o Programa de Saúde na Escola (PSE). Este programa busca abordar a temática da saúde no ambiente escolar, promovendo ações em saúde e prevenção aos agravos desta. A interlocução entre saúde e educação ocorre no interior das escolas, sendo realizada através de ações da equipe técnica das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Estratégias de Saúde da Família (ESF), correspondentes ao território no qual aloca-se a instituição de ensino. As equipes técnicas das unidades de saúde, para além das ações já realizadas no serviço, são responsáveis pela realização de atividades de promoção e prevenção aos agravos de saúde junto aos adolescentes escolares. O PSE institui, portanto, 17 ações a serem realizadas no contexto escolar, dentre elas: prevenção e redução do consumo do álcool e prevenção do uso de drogas (Brasil, 2007).

Desse modo, a pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul1 percorrendo uma trajetória de investigação de mais de dez anos, tendo seu ponto de partida no estudo A realidade do crack em Santa Cruz do Sul – RS (Garcia et al., 2012), busca compreender os sentidos produzidos acerca do fenômeno da droga e da drogadição por adolescentes escolares. Desta forma, quando em contato com o território, a pesquisa supracitada buscou a articulação com os princípios do SUS, reconhecendo o outro dentro da sua cultura e forma de existir. Atualmente vinculada ao Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS), o estudo indaga sobre o lugar que a droga ocupa na constituição do sujeito adolescente e seus efeitos nos laços sociais e afetivos, bem como investiga sobre a prevenção ao uso de drogas e a promoção de saúde propiciada pela intersetorialidade, conforme prevê a Política Nacional de Promoção da Saúde.

O presente artigo constitui um recorte das muitas análises dos dados que a pesquisa possibilita, de modo a facilitar a socialização do conhecimento que vem sendo construído. Aqui o enfoque é a relação estabelecida entre as instituições de saúde e educação. Pretende-se analisar questões relacionadas à intersetorialidade da rede de saúde com a rede educacional do município, a fim de tratar sobre prevenção ao uso e abuso de drogas, assim como a promoção em saúde para com o público adolescente escolar, através do relato de profissionais da atenção básica de saúde do município de Santa Cruz do Sul – RS, Brasil.

Percurso metodológico: (des)construindo narrativas

O estudo apresentado a seguir é caracterizado como uma pesquisa-intervenção, cuja proposta metodológica destaca a influência do pesquisador no campo a ser pesquisado. “Pesquisar-intervir implica em transformar para conhecer, em desestabilizar o instituído e acompanhar os movimentos instituintes” (Amador; Lazzarotto; Santos, 2015, p. 234). A pesquisa-intervenção apresenta um caráter intervencionista, pois entende que todo conhecer é um fazer (Amador; Lazzarotto; Santos, 2015). Nesse sentido, a presença do pesquisador no campo pesquisado rompe com a lógica científica experimental, na ocorrência daquele enquanto participante do cotidiano pesquisado. Conforme Paulon e Romagnoli (2010), pesquisar-intervindo implica o reconhecimento do ser humano em sua totalidade, complexidade e integralidade, compreendendo, ainda, que o pesquisador não se dissocia do seu objeto de estudo.

Este escrito, como um recorte da pesquisa, aborda uma perspectiva a partir da escuta de profissionais da rede de atenção básica em saúde, bem como sua articulação com o ambiente escolar através do PSE. Os dados foram produzidos a partir da realização de entrevistas semiestruturadas com profissionais das ESF e UBS, localizadas nos territórios das escolas indicadas pelo PSE contempladas com o estudo. As questões que nortearam a entrevista buscaram compreender: a percepção dos profissionais sobre a drogadição nos territórios; as estratégias adotadas para o trabalho com a população usuária de drogas; sobre a configuração da problemática na população adolescente; sobre a realização de trabalhos no ambiente escolar e se há um profissional na unidade que integre o PSE. As entrevistas foram audiogravadas e transcritas para posterior análise.

Os dados foram analisados a partir da proposta metodológica de Mary Jane Spink (2010) no que se refere à produção de sentidos por meio da linguagem. Para a autora, os sentidos fazem parte de uma construção social e emergem no contato com o outro. Logo, o pesquisador em contato com a comunidade pesquisada pode potencializar a reflexão acerca das vivências singulares dos sujeitos, produzindo novos sentidos e novas formas de compreender o fenômeno da droga e da drogadição.

Salienta-se ainda que o estudo foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa – UNISC, sob o CAAE n° 60589116.0.0000.5343, e tem como fonte financiadora o Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS)/FAPERGS.

1 – (GABE et al., 2021; GARCIA; MACHADO; FELDMANN, 2020; VIDAL, et al., 2020; FELDMANN et al., 2019; GARCIA et al., 2019a; GARCIA et al., 2019b; SANTOS, et al., 2018; BRAATZ et al., 2017).
Edna Linhares Garcia edna@unisc.br

Psicóloga Doutora em Psicologia Clínica. Docente do Curso de Psicologia do Programa de Pós-Graduação/Mestrado e Doutorado em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Psicologia na mesma instituição.

Mariana Soares Teixeira marianasteix@gmail.com

Graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Atuou como Bolsista de Iniciação Científica PROBIC/FAPERGS no projeto Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Kamilla Mueller Gabe k.mueller.gabe@gmail.com

Acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Bolsista PUIC/UNISC vinculada ao projeto de pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Gabriela da Silva Oliveira gabi2010.gs@gmail.com

Acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Bolsista PUIC/UNISC vinculada ao projeto de pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Denise Vidal dvidal@mx2.unisc.br

Acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Bolsista PROBIC/CNPq vinculada ao projeto de pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Rayssa Madalena Feldmann rayssafeldmann@gmail.com

Psicóloga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Promoção da Saúde pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil.

Letiane de Souza Machado letianemach@gmail.com

Nutricionista. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Promoção da Saúde pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil.