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Pesquisa de tipo etnográfico com jovens: uma observação participante com pessoas adultas e jovens sobre o movimento estudantil

5º ENUNE, 2016

Este item relata sobre a atividade investigativa de tipo etnográfica durante o 5º Encontro de Negras, Negros e Cotistas da UNE (ENUNE), em Salvador, Bahia, entre 3 e 9 de agosto de 2016.

Contribuiu para esse relato o texto que membros do Grupo de Estudos sobre a Juventude da UNIFAL-MG haviam indicado para ser debatido, meses antes, de autoria do antropólogo urbano José G. C. Magnani (2009), a respeito da “festa dos surdos”. Magnani diz que são especificidades da etnografia: a prática, a experiência e certa noção de totalidade. A prática se refere aos passos mais ou menos planejados e sistemáticos da etnografia, como o contato, a inserção, o registro e a redação dos diários e relatórios. Sem a prática, não viria o que é talvez mais importante, a saber, a experiência, que são momentos imprevistos e descontínuos, mas reveladores. A totalidade se refere ao conjunto maior de processos, práticas, organizações e sujeitos que conformam o contexto onde se move o grupo ou grupos específicos que são investigados – no caso desta pesquisa, essa totalidade é o chamado movimento estudantil. Na viagem ao ENUNE, principalmente as categorias da prática e da experiência foram vivenciadas pelo autor, enquanto o CONUNE mobilizaria principalmente a noção de totalidade.

Sobre a prática etnográfica, como já anunciado, não houve exatamente uma imersão no cotidiano estudantil, já que estava sendo vivida uma experiência não cotidiana, descontínua. Quase todas e todos iam a um encontro da UNE pela primeira vez, enquanto parte relevante sequer tinha militância prévia. Eram 15 estudantes: 11 mulheres e 4 homens; 6 militantes e 9 não militantes que receberam o convite de militantes; uma pequena maioria se declarou heterossexual e todas e todos se declararam como pertencentes à raça negra – o que era um requisito para participar como estudante no ENUNE. A viagem entre o Sul de Minas Gerais e Salvador, separados por 1.700 km, se deu em meio a belas paisagens do Norte de Minas e do Agreste Baiano, muitas delas completamente estranhas para nós. Foram dois dias para ir, dois para voltar.

O começo da viagem foi bastante monótono e relativamente silencioso. O autor forçou um pouco as conversas e a intimidade, um pouco abusando da sua condição de professor responsável pela viagem, dados os seus interesses como pesquisador, mas também como pessoa desejosa de relações humanas. Logo, porém, percebeu que o melhor era esperar, que as e os estudantes iam saber os motivos de o autor estar ali, e provavelmente iriam tomar a iniciativa de procurá-lo para conversar. Isto realmente se deu, além de que o autor teve várias oportunidades de participar ou de ouvir conversas incidentais muito relevantes. Em boa parte do tempo, estivemos dentro do ônibus a caminho de outro estado, ou então (mal) acampados ao relento em quadras descobertas na Universidade Federal da Bahia, ou ainda nos divertindo em praias soteropolitanas: comemoramos o aniversário de um dos motoristas, no trajeto de ida, em Francisco Sá, Minas Gerais; o autor emprestou dinheiro em espécie para alguns dos viajantes (que pagaram depois), em especial durante a viagem no Agreste Baiano, onde os cartões de débito não funcionavam; o autor foi confidente de relatos das aventuras amorosas de um estudante durante as festas (as Culturais); o autor comeu e bebeu com discentes na praia ou nos restaurantes durante o trajeto, assim como se emocionou, testemunhando o momento em que as gêmeas tomaram o primeiro banho de mar de suas vidas; sofreu a justa ira da estudante feminista por causa de um infeliz comentário machista, mas, além de pedir desculpas, usou de seus conhecimentos da história do movimento estudantil para criar uma boa relação com ela depois; assistiu a decepção de estudantes não militantes quando o grupo mineiro, unido de início, separou-se em dois, cada qual seguindo o coletivo político correspondente; ouviu as queixas das militantes de que homens brancos haviam coordenado mesas de debate e que havia grande número de estudantes que não eram da raça negra no evento (que fizeram uma falsa autodeclaração para poder fazer “turismo”); o autor socorreu estudantes que haviam exagerado na bebida e ajudou a negociar os preços em hotéis e pousadas nos trajetos de ida e volta, ainda que a maior parte dos que viajavam preferisse dormir no próprio ônibus; o autor testemunhou tensões entre militantes de diferentes coletivos dentro do ônibus, assim como uma discussão entre duas militantes do mesmo coletivo; perto do final da viagem, o autor deve ter decepcionado suas e seus informantes, que, felizmente, relevaram a sua atitude, quando ele se desesperou depois de três horas de audição de música sertaneja universitária e pediu para mudarem de estilo.

Assim, boa parte dos dias e noites foi oportunidade de conversas e de entrevistas pouco formalizadas, algumas bastante reveladoras. O contato contínuo foi aos poucos trazendo maiores e melhores conhecimentos sobre estudantes que militam ou vivem a atração pela militância, suas características, interesses, pertencimento social, relações de gênero e afetivas. Mas também trouxe vários dados sobre as relações entre militantes e estudantes que a militância deseja atrair para a organização.4 Nesse tempo, em meados de 2016, estudantes que não militavam ainda recebiam a denominação de não organizadas. Só com a ocupação da universidade, em outubro de 2016, passariam a ter o nome de independentes.

Sobre a experiência etnográfica, Magnani (2009) diz que há basicamente dois tipos dela: a “primeira impressão”, ou seja, o contato com um tema desconhecido, e a experiência reveladora. A primeira impressão e o estranhamento que ela traz se deram com Magnani, por exemplo, quando conheceu uma surdo-cega e seu modo de comunicação, ou quando se deparou com o “mar de mãos” (falando em Libras5) em uma festa de pessoas surdas. Já a experiência reveladora se deu quando o antropólogo sentiu-se isolado na festa de pessoas surdas, quando experimentou algo que antes apenas conhecia racionalmente: o isolamento de pessoas surdas na sociedade de “falantes”.

Também o autor deste texto viveu, durante a viagem a Salvador, esses dois tipos de experiência etnográfica, momentos que significaram – nas palavras de Lévi-Stráuss (apud Magnani, 2009) – oportunidades educativas que alinharam os conhecimentos teóricos e a prática etnográfica em um todo orgânico. Momentos que partiram do estranhamento em relação ao que era pesquisado, estranhamento oriundo da cultura do pesquisador e dos seus esquemas conceituais, os quais permitiram novas formas de conhecimento. Basicamente, o autor conhecia muito dos Congressos da UNE por material bibliográfico.6 Parte relevante do que sabia ou pensava saber racionalmente se comprovou e se materializou nas experiências de campo no ENUNE. Mas a materialização, como experiência sensorial, dota o conhecimento de ainda mais potência, de mais significado.

Uma coisa era ter lido a respeito das tensões e conflitos de bastidores entre as organizações estudantis que comandam e disputam a UNE. Outra era viver essas tensões na qualidade de sujeito que deseja assistir às plenárias e debates das teses, enquanto essas atividades iam tendo seu horário alterado ou eram esvaziadas pela direção. Outra ainda era sentir a decepção de ver um belo discurso parcamente aplaudido só porque a estudante pertencia a um coletivo minoritário ou de oposição à direção da UNE. Mas foi só com a imersão no campo que o autor descobriu o quanto eram esvaziadas ou acompanhadas com pouco interesse a maior parte das atividades de cunho político, enquanto as “Culturais” eram tratadas como prioridade pela organização e por estudantes.

Uma coisa era ter lido a respeito das condições precárias de alojamentos nos eventos estudantis. Outra era passar uma noite chuvosa em uma barraca ao relento, na quadra descoberta oferecida como “alojamento” a estudantes negras, negros e cotistas – ao menos, o autor não teve o azar de ter seu colchonete encharcado. Ainda, foi revoltante descobrir que parte importante da liderança estudantil durante o ENUNE estava bem acomodada, fora deste alojamento. O autor, adulto de classe média e branco, não suportou tais condições e, ainda que indignado, buscou uma pousada para pernoitar nas noites seguintes.

O autor viveu a alteridade e o estranhamento de muitas formas, não apenas porque era professor e adulto, mas também porque era branco e heterossexual. Quando o evento foi se enchendo e o ambiente ficou repleto de jovens negras e negros, o autor, aparentemente uma das pouquíssimas pessoas brancas presentes, ouvindo algumas falas contundentes contra os “brancos opressores”, sentiu medo. Um medo de origem muito profunda, tanto na sua psique quanto na história do seu país, apesar de não ter sofrido nenhum tipo de hostilidade, nem mesmo ter sido alvo de um olhar diferente ou reprovador. Esse medo tem origem no arraigado temor das elites brancas do Brasil em relação à população escravizada, como o medo do haitianismo, ou seja, de uma revolução das pessoas escravizadas similar à que se deu no Haiti no final do século XVIII (Azevedo, 1987). Esse temor legitimou a criação de um enorme aparato civil-militar em nosso país para vigiar e reprimir as pessoas em condição de escravidão, uma das marcas da sociedade brasileira do século XIX e que ainda reverbera fortemente nos dias atuais, como no tratamento discriminatório da polícia ou na maior severidade dos tribunais para com pessoas negras.

Esse medo foi também uma forma de estranhamento que revelou ao próprio autor a condição da branquidade em que vivia, composta de uma série de privilégios e um imaginário repleto de medos enrustidos e preconceituosos (Sovik, 2009). Esse estranhamento surgiu apenas quando o autor se viu envolto por uma multidão de jovens negras e negros, mas não, sintomaticamente, quando esteve na condição familiar de professor diante de um pequeno grupo de estudantes de raça negra, grupo que, aliás, tendia a expressar sua gratidão ao professor por sua presença ter tornado possível a viagem à Bahia.

A condição do autor como branco traria a ele mais um sentimento: a tristeza de se sentir invadindo um espaço que não era seu. Apenas no retorno de Salvador, quando esperava o menino que passou mal ser atendido em uma Unidade Básica de Saúde, uma das militantes lhe explicou o significado do ENUNE ser auto-organizado: era um evento apenas para pessoas negras e cotistas. Quando o autor tinha sido convidado para acompanhar essa viagem, a informação fora diferente: pessoas brancas poderiam ser ouvintes. Ainda assim, o autor sentiu vergonha, mesmo sabendo que, graças à sua presença e à justificativa que encaminhou à reitoria – dizendo que a viagem era importante para os coletivos estudantis, mas também para a pesquisa e as atividades de extensão que o autor coordenava –, fora possível a viagem ao ENUNE.

Além disso, o autor descobriu que o movimento estudantil se tornara um espaço importante de acolhimento da diversidade sexual de jovens no Brasil. No ENUNE, já no final da tarde, anunciando as Culturais, expressões dessa diversidade começaram a marcar o ambiente: alguns grupos formados por homens gays, outros por travestis, aqui um transgênero com uma bela pintura corporal, ali um militante de vestido e saltos altos. O que já se observava no cotidiano da universidade, ou seja, os coletivos estudantis como possibilidade de uma livre expressão da sexualidade, especialmente para Lésbicas, Gays, Travestis, Transgêneros e Transexuais (LGBTTs), se firmava nos grandes eventos do movimento estudantil.

O ENUNE foi muito importante para a entrada do autor, com seu corpo e sentidos – não apenas via bibliografia – no movimento estudantil, esse complexo contexto que conforma a totalidade em que atuam os coletivos estudantis de cunho político da universidade mineira. O CONUNE de 2017 aprofundaria ainda mais esse conhecimento.

4 – Pesquisas internacionais, conforme Brooks (2017), têm chegado a resultados semelhantes aos de nossa pesquisa, no que se refere à importância dos coletivos estudantis para a mobilização de estudantes da Educação Superior.
5 – Língua Brasileira de Sinais.
6 – Um dos relatos mais interessantes é o de Mesquita (2001). Diferentemente do que Coulter (2007) registra sobre a bibliografia acerca das organizações estudantis nacionais, no Brasil, são relativamente fartas as referências à entidade representativa nacional, a UNE. Isso se relaciona, principalmente, ao fato de que a UNE teve papel simbólico e estratégico muito forte nos movimentos estudantis dos anos 1960 no Brasil, enquanto nos demais países as entidades estudantis oficiais nacionais tiveram papel bastante errático.
Luís Antonio Groppo luis.groppo@unifal-mg.edu.br

Professor da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), Brasil. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil.

Mariana Ramos Pereira mariramospereiramrp@gmail.com

Mestranda em Educação pela UNIFAL-MG, Brasil. Bacharel em Ciências Sociais pela mesma universidade.