Foto: Pxhere

“Sinto que renasci”: a inserção de adolescentes em um Programa de Proteção

Bianca Orrico Serrão
Universidade do Minho, Instituto de Educação, Braga, Portugal
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-2777-9881

Juliana Prates Santana
Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Salvador, Brasil
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-3352-9598

Maria Jorge Santos Almeida Rama Ferro
Universidade de Coimbra, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Coimbra, Portugal
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-5349-0961

Introdução

Este estudo tem por objetivo analisar os sentidos subjetivos atribuídos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) por adolescentes em proteção no estado da Bahia, Brasil. Os estudos relacionados ao PPCAAM, em geral, apresentam aspectos referentes às legislações e experiências em diferentes estados (AZEVEDO; FERNANDES, 2016; REIS, 2015) e, nesta pesquisa, o intuito é abordar a perspectiva dos próprios adolescentes sobre os sentidos que atribuem à experiência de ingressar nesta modalidade de proteção.

A adolescência pode ser compreendida, acima de tudo, como um fenômeno social, histórico e cultural, que apresenta diferenças para cada indivíduo (OZELLA; AGUIAR, 2008), sendo importante considerar as questões relacionadas ao gênero, raça e classe social quando se busca investigar essa fase do desenvolvimento. No âmbito do presente estudo, será investigada a experiência de adolescentes ameaçados de morte e, nesse sentido, é importante compreender as características da violência letal no contexto brasileiro. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência é um fenômeno multifacetado, podendo ser definida como o:

[…] uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (KRUG et al., 2002, p. 5).

A violência letal contra adolescentes no Brasil tem se constituído como um grave problema social e de saúde pública e, de acordo com Cerqueira et al. (2017, p. 5), “em três semanas são assassinadas no Brasil mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques terroristas no mundo”. Esta letalidade tem um rosto/perfil discriminado: adolescentes e jovens, em sua maioria homens e negros, moradores das periferias de regiões metropolitanas, são os mais atingidos por esta violência (WAISELFISZ, 2015). Em 2012, o país registrou o maior número de assassinatos, com a taxa mais alta de homicídios desde 1980. Foi identificado que, a partir dos 13 anos, o número de vítimas de homicídio chegou à maior percentagem na análise do índice a partir da faixa etária (71,1% de adolescentes e jovens que morreram de causas externas). A partir dos 24 anos, o número de homicídios diminui de forma lenta e gradativa (WAISWLFISZ, 2015). O Atlas da Violência (2017) aponta que 71,9% dos homicídios no Brasil são cometidos por armas de fogo, indicando que o país responde por cerca de 10% dos homicídios no mundo, mesmo que menos de 8% da população mundial habite na América Latina1.

É possível identificar a existência dessas desigualdades e violações de forma mais evidente em alguns locais do país. De acordo com o Atlas da Violência de 2019, o Norte e o Nordeste foram apontados como as regiões com maior incidência de violência letal, e a Bahia (estado escolhido para a realização desta investigação) encontra-se em 7º lugar no gráfico apresentado com a taxa de homicídios de jovens por estados do Brasil (CERQUEIRA et al., 2019, p. 26). Melo e Cano (2017, p. 28) afirmam que “em 2014, a Bahia foi o que apresentou o maior número de municípios dentro desse ranking. Itabuna, Camaçari, Vitória da Conquista, Feira de Santana e Salvador apresentaram índices entre 6,87 e 11,88”. Isso reforça que uma parcela significativa de adolescentes, negros/as, residentes de regiões periféricas e em especial da região Nordeste encontra-se em situação de risco concreta e têm, além do direito à vida ameaçado, todo um histórico de vulnerabilidade social ao longo de suas trajetórias.

Diante dos dados apresentados sobre o aumento de violência letal de adolescentes e jovens, a Secretaria de Direitos Humanos do Brasil criou em 2003 e instituiu em 2007 o Decreto 6.231/07 (atualmente Decreto Nº 9.579/2018), que estabelece o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte – PPCAAM. De acordo com o art. 111º do decreto, “O PPCAAM tem por finalidade proteger, em conformidade com a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, crianças e adolescentes expostos a grave ameaça no território nacional”. Além disso, o Programa também fomenta investigações e contribuições políticas que buscam minimizar a letalidade infanto-juvenil, participando da constituição do Programa de Redução da Violência Letal (PRVL) e na elaboração de indicadores através do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA).

Em situações de risco real e iminente de morte, qualquer pessoa, incluindo a própria criança ou adolescente acompanhado ou não dos pais ou responsáveis, pode se dirigir a uma das Portas de Entrada (Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário ou Defensoria Pública), órgãos responsáveis em receber esses casos, para acionar o Programa. O princípio fundamental do PPCAAM é garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, respeitando os direitos estabelecidos no ECA (1990). Outros princípios em destaque no Programa referem-se à brevidade e à excepcionalidade:

A brevidade é o princípio no qual a proteção deverá alcançar o menor período possível da vida da criança e do adolescente, considerando que, mesmo estando assegurada a proteção integral e a inserção no Sistema de Garantia de Direitos, a condição de protegido significa a restrição de alguns direitos. Ainda que o objetivo dessas restrições seja a garantia da integridade física de crianças e adolescentes ameaçados, bem como de seus familiares, tais direitos devem ser restabelecidos no menor prazo de tempo possível. […] A excepcionalidade se refere ao caráter da medida protetiva. Isto é, ser incluído no PPCAAM deve ser considerado como a ÚLTIMA medida de um percurso, após todas as demais alternativas terem sido esgotadas (PPCAAM, 2014, p. 12).

Tendo em conta as características do PPCAAM e considerando os impactos que a inserção em um programa dessa natureza tem na trajetória de vida de crianças e adolescentes, é crucial compreender como adolescentes vivenciam essa experiência. Para isso, foi utilizado o conceito de sentido subjetivo proposto por González Rey. Para o autor, “todo sentido subjetivo tem a marca da história de seu protagonista” (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 138). Ou seja, um sentido subjetivo é construído a partir de um processo histórico, cuja expressão comportamental do sujeito é o resultado de um longo caminho percorrido de vivências, que apenas se conformam em sentido subjetivo na medida em que trazem consigo essa dimensão histórica da experiência subjetiva individual. A constituição subjetiva dos sujeitos é realizada a partir da sua trajetória, e os sentidos surgem como elementos de ordem emocional em conjunto com os significados e peculiaridades que se revelam ao longo do desenvolvimento (OLIVEIRA, 2015).

González Rey (2010, p. 168) definiu o sentido subjetivo como a “relação inseparável do emocional e o simbólico, onde um evoca ao outro sem ser a sua causa”. O sentido subjetivo representa a soma de uma história individual do sujeito e a emocionalidade que ela reproduz, situando-se tanto em um sentido delimitado em termos de sujeito concreto quanto de um grupo social. O sentido subjetivo, portanto, detém em si próprio um potencial de mutualidade e constância entre o simbólico e o emocional (GONZALES REY, 2012). Através dessa perspectiva, esta investigação buscou analisar o PPCAAM na perspectiva dos/as adolescentes, bem como compreender os sentidos subjetivos elaborados por eles/as sobre precisar ter sido protegido nesse Programa.

Método

A pesquisa foi realizada em quatro cidades, três localizadas no estado da Bahia e a quarta em outro estado (transferência para outra instituição de acolhimento), no Brasil, e estas não serão identificadas para garantir o sigilo e a integridade dos/as participantes e respectivos locais de proteção.

Conforme a Tabela 01, participaram da investigação 16 adolescentes, com idades entre 13 e 17 anos, sendo 6 do gênero feminino e 10 do gênero masculino. Em relação à cor desses participantes, 11 afirmaram se identificar como pardos/as e 5 se identificam como pretos/as. Os nomes foram alterados para garantir o anonimato e, na tabela abaixo, foi descrito o motivo da inclusão, sem informações adicionais, com o intuito de preservar a integridade e segurança dos/as entrevistados/as.

Dos participantes, 15 encontravam-se protegidos na modalidade do acolhimento institucional, e apenas um adolescente residia com seus pais/responsáveis. A coleta foi realizada nos momentos da visita técnica, sendo que, após a reunião com a equipe do Programa e apresentação da investigadora, era cedido um espaço seguro para a realização das entrevistas.

Como instrumento de coleta de dados, foi utilizada uma entrevista semiestruturada composta de duas partes, a primeira com informações sócio demográficas e a segunda composta de nove questões norteadoras, com o objetivo de investigar a experiência da inserção dos adolescentes no PPCAAM. Além disso, foram realizadas conversas informais, que foram registradas em diário de campo.

Tabela 01 – Participantes da pesquisa

É válido salientar que a pesquisa seguiu a Resolução de Pesquisa com seres humanos (Resolução 510/16)2, elaborando um termo de consentimento e assentimento livre e esclarecido com todas as informações necessárias para a participação na pesquisa, sendo garantido o sigilo das informações. As pessoas responsáveis pelas instituições onde os adolescentes estavam acolhidos e a família de um adolescente entrevistado assinaram os termos de consentimento e os/as adolescentes assinaram os termos de assentimento. A presente investigação foi apreciada com parecer favorável pela Comissão de Ética e Deontologia da Investigação em Psicologia da Universidade de Coimbra.

A análise das entrevistas foi pautada na construção dos Núcleos de Significação. Estes consistem em analisar os “sentidos e significados constituídos pelo sujeito frente à realidade” (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015, p. 58). A proposta utiliza como referência aspectos fundamentais da teoria sócio-histórica apresentada por Vygotsky e da Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey. Nesta investigação, será apresentado o núcleo “Aceito qualquer coisa” – Sentidos subjetivos sobre o ingresso no PPCAAM.

1 – Disponível em: https://www.br.instintodevida.org/
2 – Resolução atual (nº580/2018): https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso580.pdf.
Bianca Orrico Serrão bianca.orrico@gmail.com

Psicóloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de Coimbra, Portugal. Aluna de doutorado no Centro de Investigação em Estudos da Criança no Instituto de Educação da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Juliana Prates Santana julianapsantana@gmail.com

Psicóloga, Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Maria Jorge Santos Almeida Rama Ferro mariajorgef@fpce.uc.pt

Psicóloga, Professora Auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal. Mestrado e Doutorado em Psicologia na Universidade de Coimbra, Portugal. Suas linhas de investigação envolvem as áreas de Multiculturalismo, Teoria Crítica e Modelos de Aconselhamento.