Amanda Antunes – Como estão sendo conduzidos os estudos sobre o fenômeno das crianças youtubers?
Renata Tomaz – A produção de conhecimento sobre esse assunto é recente, assim como o próprio fenômeno. Nos anos 90, período em que o computador pessoal se populariza e se consolida nas casas, ocorre um certo pânico moral sobre os impactos negativos que essas tecnologias teriam sobre a vida das crianças e dos adolescentes. Buscando dar conta dessa insegurança, surgem pesquisas que se empenham em entender se o problema estaria em ter o computador em casa e a criança ter acesso a ele ou no uso que ela faria dele. Se o uso do computador pela criança, de forma adequada, instruída, supervisionada, seria algo positivo ou negativo.
Nessa época, houve um incremento dos estudos que apontam maneiras de as crianças usarem a tecnologia positivamente. O termo media literacy aparece em 1993, cunhado no livro “Towards new literacies”, escrito por David Buckingham. É o primeiro criado para dar conta dessa ideia de ler o mundo e produzir textos sobre ele por meio de outras formas que não o letramento tradicional. Mas a Unesco utilizava o termo media education desde os anos 1970 para dar conta da necessidade de a escola, em especial, utilizar as mídias nos processos formais de educação. Em 2011, a Unesco passou a adotar o termo media and information literacy, reconhecendo a necessidade de processos voltados para uma alfabetização midiática e informacional.
Começaram a surgir muitos estudos tentando descobrir maneiras de as crianças usarem a tecnologia positivamente. Especialmente nos países de língua inglesa, crescem, no final do século XX e início do s��culo XXI, os apelos a que se invista na educação para os media, pensada muitas vezes de forma sinonímica às expressões literácia mediática, competência mediática, media literacy e, mais recentemente, como proposto pela Unesco, media and information literacy – alfabetização midiática e informacional, em português. No Brasil, essa corrente de estudos ganhou bastante força nos últimos anos – sobretudo no campo da Educação – discutindo o que chamamos de mídia-educação. Essas pesquisas buscam analisar as competências midiáticas das crianças, quer dizer, o que elas podem realizar por meio dessas novas linguagens. Intencionam construir modos de investigar, mas também propor ferramentas que permitam o bom uso das novas tecnologias pelas crianças.
Os usos e as possibilidades que as crianças têm a partir da sua inserção no mundo digital também passaram a ser fortemente tematizados em investigações sobre novas formas de identidade e de inserção social. De repente, aquele menino que não tem tantos amigos na escola, que não consegue fazer tantas amizades, não consegue encontrar um grupo adequado para se aproximar, encontra, no jogo online do Minecraft, um modo diferente de se inserir socialmente. Os jogadores vão procurar por ele no mundo virtual, vão requisitar suas dicas, ele vai ser elogiado, aplaudido.
Por fim, há cada vez mais investigações sobre os riscos que esses usos vão trazer. O que a Sonia Livingstone fala é que não dá para a gente pensar nas oportunidades sem pensar nos riscos que elas trazem. Existe uma produção acadêmica crescente para analisar as questões de bullying, a temática da pedofilia e a superexposição das crianças, entre outros desafios, que seriam os riscos mais potentes no mundo da internet.
Amanda Antunes – Falando justamente dessa visibilidade e sobre exposição pública das crianças, muitas vezes excessivas, que análise que você faz da fama das crianças e das implicações que isso teria para elas?
Renata Tomaz – Um ponto importante que atravessa essa relação é a fama e o mérito. A fama está ligada ao mérito em duas coisas: o mérito porque alguma coisa importante foi feita, você realizou alguma coisa muito importante e por isso você está sendo entrevistado e aparecendo na capa das revistas. O outro mérito é que a pessoa é famosa porque possui um talento, canta muito bem, dança muito bem, interpreta muito bem. Isso te coloca em um lugar de destaque socialmente. Mas, nas últimas décadas, o que a gente pode ver – e as crianças também enxergam isso – é que você amplia muito tudo isso por meio dos aparatos midiáticos. Em um contexto em que você tem uma cultura midiática que pode produzir infinitamente informações sobre alguém, você também amplia a possibilidade dessa pessoa ficar famosa. E o que as crianças perceberam – que não é diferente do que a gente também percebe – é que quanto mais se produz notícia, imagem, texto, narrativas sobre alguém, mais famosa essa pessoa pode ficar!
Um conceito que uso da crítica da mídia é o conceito de sociabilidade automatizada, da crítica de mídia holandesa, José Van Dijck. Ela afirma que a diferença desse tipo de sociabilidade é que a gente vem de uma época em que o importante era saber quem você conhece. Mas, na contemporaneidade, ocorreu uma mudança em que o importante é saber quantas pessoas você conhece, ou melhor, quantas pessoas conhecem você. Nas plataformas digitais, eu posso saber quantas pessoas estão me vendo. E é possível fazer isso enquanto estou produzindo essas narrativas e informações a meu próprio respeito.
A implicação imediata dessas possibilidades é a responsabilização das crianças pela produção de conteúdo que vai não só produzir fama, mas mantê-la, dependendo do caso. É muito comum elas se preocuparem por não estar produzindo seus vídeos. Quando saem de férias ou estão em semana de prova, por exemplo, elas se desculpam com sua audiência: “Olha, gente, desculpe por não estar postando vídeos”; “Eu estava viajando”; “Eu tive prova”, explicam. É perceptível que elas se sentem extremamente responsabilizadas em administrar, gerir e produzir essas informações a respeito delas mesmas. Afinal, a fama não é um dado, a fama é resultado da produção dessa informação. A fama é uma condição que depende dessa produção contínua. A responsabilização, por sua vez, acaba provocando uma grande competição entre as crianças produtoras de conteúdo, por mais visualizações, mais curtidas, mais inscritos, mais likes e assim por diante.
Amanda Antunes – Como você avalia o papel dos pais e da escola em todos esses acontecimentos?
Renata Tomaz – Bom, nesse universo digital, eu diria que eles são muito coadjuvantes, mas têm um papel importante em determinados aspectos. Nenhuma dessas meninas que fazem os canais que investigo pode abrir mão da presença de um responsável para ajudá-las nisso. É um trabalho muito grande. É um trabalho hercúleo: conceber uma ideia, produzir, gravar, editar. Elas precisam o tempo todo da presença dos pais.
A escola também vai colaborar com esse processo de alguma forma. A partir do momento em que essas crianças têm infinitos compromissos, a escola acaba se adequando à vida digital delas. As crianças começam a justificar as faltas para a escola, que passa a colaborar e a contribuir com essa jornada das crianças youtubers na produção do seu protagonismo social e de sua fama.
Amanda Antunes – O que você diria sobre as consequências desse processo de visibilidade na interação da criança com a escola e a família?
Renata Tomaz – A gente vive em um mundo em que ser e estar visível é desejável, agradável, valorizado. As crianças percebem isso, elas não estão alheias. Elas estão tentando se valer de seus recursos, poucos ou muitos, com poucos ou muitos brinquedos, muito ou poucos dispositivos para gravar, elas estão se valendo do que é possível para produzir modos de estar visíveis no mundo. Essas crianças estão criando um modo performático de ser. Performático no sentido de que elas estão no mundo e estão aprendendo que tudo que fazem é para alguém ver. Alguém está observando e, se não está, é preciso fazer alguma coisa para que isso aconteça. É preciso estar visível! Certa vez, a mãe da youtuber Juliana Baltar precisou explicar que não estava divorciada do marido. A informação começou a circular nos comentários do canal depois que, em outro vídeo, Juliana disse que tinha uma bicama para a mãe dormir com ela. Mãe e filha esclareceram, então, que o pai tem um trabalho que exige periodicamente sua ausência de casa. Tudo que a família faz e vive entra na pauta dos vídeos, ampliando a interação social de todos os membros da família.
Amanda Antunes – As novas mídias desencadeiam um processo de configuração de novas subjetividades infantis? Ou seriam apenas novos espaços para essas afirmações?
Renata Tomaz – Eu acredito que existem, sim, subjetividades sendo produzidas nesse movimento das novas mídias. Como são essas subjetividades? Quais são as variáveis que estão inseridas na sua estruturação? Entender a construção histórica da infância moderna e de um indivíduo invisível é fundamental para compreender as mudanças que ocorrem atualmente. As crianças estão buscando formas de se tornar gradativamente mais vistas, o que incide na forma delas estarem e serem no mundo. Essas mudanças vão influenciar no tipo de brincadeira das crianças e no tipo de roupa que elas usam.
Nesse caminho, a criança é exposta a múltiplos significantes que, muitas vezes, geram conflitos e tensões. Por exemplo, uma youtuber vai mostrar a boneca que ganhou de presente de Natal, ela diz: “Olha, gente, eu ganhei essa boneca da minha avó… ou… uma loja me mandou”. Mostrar brinquedos é uma coisa que essas crianças youtubers fazem muito. No entanto, quando a gente vai ver a repercussão nos comentários, vai ter muitas crianças parabenizando, mas também comentários dizendo que essas meninas são muito exibidas, metidas, que elas se acham melhores do que as outras. É claro que alguns pais vão colocar filtros para tentar amenizar esses inúmeros sentidos que serão produzidos a partir da imagem das suas filhas na internet. Mas não há um controle sobre isso e essas crianças vão ter que lidar com as múltiplas imagens que são produzidas a partir de si mesmas.
Amanda Antunes – O que se observa com o aumento do protagonismo infantil na televisão e na internet é um processo de influência social das crianças como um papel de referência para os seus pares, sobretudo em relação ao consumo. Como você avalia esse papel das crianças enquanto influenciadoras de seus pares?
Renata Tomaz – É muito perceptível como as crianças vão se tornar também essa referência para outras crianças no mundo do consumo. Cresci em um tempo em que as minhas principais referências de ser alguém eram adultos: mãe, tias, professoras, amigas da mãe. O adulto era essa figura influenciadora da criança. Que tipo de pessoa você quer ser? Que tipo de adulto você vai ser? Esses são tipos de pergunta que a gente faz para a criança. Mas, nas últimas décadas, a gente vê uma valorização muito grande da figura do jovem. Quer dizer, existe uma juvenilização da sociedade que faz com que os mais velhos queiram parecer mais novos e vão em busca desse tipo de comportamento. Isso tudo também vai produzir um movimento na outra ponta: as crianças que irão parecer jovens. Mas aí, do lado das crianças, o movimento é diferente, porque para elas ser como os jovens, elas precisam crescer. Esse processo de juvenilização da sociedade vai fazer com que as crianças queiram ser adolescentes. O que a gente pode observar com essa presença cada vez mais massiva das crianças na internet é elas próprias se tornando essa referência para outras crianças.
Quando a gente perguntava para as crianças o que elas queriam ser, elas diziam que queriam ser youtubers, igual à Bel ou à Júlia Silva. É claro que, em alguns momentos, elas diziam que queriam ser como figuras um pouco mais adultas como a Kéfera, do canal 5Minutos. Mas, uma maioria significativa dizia que queria ser igual aos seus pares. Por que isso acontece? Porque elas perceberam que, embora essas meninas sejam crianças como elas, conseguiram um lugar de protagonismo social. Elas chegam à conclusão de que não precisam crescer. A pergunta da minha tese é essa: o que você vai ser antes de você crescer? Porque é claro que você vai ser alguém quando crescer. Mas a criança também pode ser alguém antes de crescer.
É evidente a associação disso tudo com a prática do consumo. As crianças não mostram apenas produtos que elas recebem de empresas para fazer uma forma de merchandising dos fabricantes, das marcas. Também estão fazendo, de uma forma diferente, uma prática bem mais antiga que é mostrar o que elas têm. Quem convive com criança sabe que quando você chega em uma casa onde a criança tem um quarto, a outra criança pergunta: “posso ver seu quarto? Posso ver o que você tem?” Isso vai levando as crianças a influenciarem umas às outras no sentido de ter um comportamento parecido e produtos consumidos de forma semelhante. Um dos vídeos que analisei era sobre um brinquedo que uma das youtubers havia recebido de um fabricante. Uma menina escreveu assim nos comentários: “gostei muito do seu anúncio. Vou pedir pra minha avó comprar”. Mas ninguém tinha dito que aquilo era uma propaganda ou que aquilo era um conteúdo publicitário. Duas coisas ficaram claras nesse depoimento. Primeiro, há uma influência clara nos padrões de consumo das crianças sobre outras crianças. E, em segundo lugar, mostrou que elas facilmente detectam intenções mercadológicas.