Agostina Gentili – Como você vê o campo de estudos sobre a infância depois de 25 anos da publicação do seu livro?
Claudia Fonseca – Houve um florescimento fantástico. Hoje, temos especialistas nas mais diversas áreas, organizando grupos de discussão nos mais importantes eventos das Ciências Sociais (na Antropologia brasileira, penso em Antonella Tassinari, Clarice Cohn, Fernanda Ribeiro, Flavia Pires, Chantal Medaets…). Temos núcleos interdisciplinares de estudos, revistas especializadas (como Desidades…) e, claro, temos as diversas Jornadas da Infância, tal como aquela que organizamos no Rio Grande do Sul. Fomos inspirados, em grande medida, por aquelas magníficas jornadas da infância que vocês na Argentina organizam de dois em dois anos, com uma mescla interdisciplinar, incluindo historiadores, psicólogos, antropólogos, sociólogos, juristas, assistentes sociais, administradores… Esses espaços são caracterizados por uma abertura de perspectiva que desafia nossos lugares-comuns, que chacoalha nossas perspectivas sedimentadas. Esse lugar de interlocução inquietante é uma coisa fantástica.
No ano passado, aqui em Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil), junto com duas colegas de outros departamentos, a Fernanda Ribeiro e a Paula Machado, editamos uma disciplina sobre a infância na América Latina que acolheu estudantes da Psicologia, das Ciências Sociais e da Comunicação. Nela, tentamos fazer um tipo de resenha sobre estudos especificamente na e sobre a América Latina. É uma área extremamente rica e heterogênea, com abordagens ao tema muito distintas. Tivemos, na bibliografia, material sobre infância e raça, sobre infância e orientação sexual, travestis e transgêneros, sobre infância e classe. A relevância da noção de interseccionalidade se declarava a cada nova leitura.
Nosso esforço foi o de manter uma agilidade nos debates, combatendo os tantos reducionismos científicos que o senso comum emprega para congelar os conceitos, como se fossem verdades universais. Desconstruímos as interpretações do freudianismo primário, da antropologia vulgarizada, das neurociências simplistas9. Cada uma das ciências tem muito a contribuir, mas o estudante tem que saber fazer uma exegese das teorias clássicas, apreciar as críticas e se localizar dentro das análises contemporâneas de ponta. Não é questão de “explicar” a criança a partir disso ou daquilo. É de levar em consideração a complexidade desse fenômeno – que se insere dentro de um determinado lugar e tempo históricos. E, entre outros itens no programa, incluímos a criatividade, nem sempre previsível, das próprias crianças. Assim, questões sobre a “voz da criança” e o “protagonismo juvenil” vieram à tona.
Na verdade, nas minhas pesquisas, eu nunca visei diretamente “à infância”, mas aos espaços “domésticos” – da casa, do bairro. Para mim, as crianças sempre foram interlocutoras ao lado de seus pais e de seus vizinhos. Nunca tentei analisar a voz das crianças como algo a parte. Mas reconheço que existe um campo riquíssimo trazendo essa perspectiva. No livro que acabamos de publicar – Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo10 –, há diversos exemplos, por autores da França, da Argentina e do Brasil.
Agostina Gentili – Voltando ao tema da circulação das crianças, você tem percebido mudanças nas atitudes das famílias a respeito da circulação de crianças, depois de 25 anos do estudo deste fenômeno?
Claudia Fonseca – Agostina, você sabe que foi justamente para responder a essa pergunta que tentei fazer uma revisitação à circulação de crianças – não das mesmas famílias, mas no mesmo bairro – 30 anos depois das minhas primeiras pesquisas. Nunca vi a circulação das crianças como uma “estrutura” atemporal. Desenvolvi uma ideia em determinadas circunstâncias e em uma determinada época e hoje as coisas não são iguais. No entanto, tampouco acho aconselhável cair nas armadilhas de uma dicotomia evolucionista: como se os casos pudessem ser divididos entre o “tradicional” e o “moderno” ou o “hegemônico” e o “popular”. Creio, por exemplo, que – para além da circulação das crianças ou a família nuclear conjugal – há muitos outros arranjos domésticos possíveis. O importante é tentar entender a “economia moral”11 acionada na interação das pessoas, nas suas famílias e comunidades, e com as autoridades estatais.
Essa pesquisa mais recente que realizo com a antropóloga Lucia Scalca ainda está em andamento. E o que nós estamos vendo? Uma observação bastante óbvia, mas que deve ser lembrada: trinta anos atrás, a população brasileira ainda estava num processo de mobilidade entre a zona rural e a zona urbana. Marcia Serra – uma demógrafa da Unicamp – fez uma análise daquele momento histórico, mostrando uma correlação entre a mobilidade geográfica e o fato de as crianças ficarem espalhadas entre diferentes casas12.
Estamos vendo na pesquisa atual que, em praticamente todas as famílias, as mães nasceram no próprio bairro onde estamos conduzindo as entrevistas. Elas têm os pais, as mães, os filhos, os irmãos morando perto. A família extensa continua fundamental, mas o afastamento geográfico dos membros da família não acontece mais como acontecia há 30 ou 40 anos atrás. As avós, em particular, seguem criando os netos, e achando de certa forma isso normal. Mas, em geral, elas moram relativamente perto dos pais dos seus netos. Assim, se você pergunta para certa mulher ou certo casal se suas crianças estão sendo criadas por outra pessoa, a grande maioria vai dizer que não. Inclusive, podem se surpreender com a pergunta. Mas, se você procura ver quem leva e busca as crianças na creche… vai ver que, em muitos casos, é a avó, ou a tia, ou a vizinha. E essa pessoa explicará que está “só cuidando” da criança durante alguns dias, ou durante aquela semana…
Minha impressão por enquanto é que houve, de fato, uma relativa “normalização” da vida familiar através dos suportes institucionais. Vejamos, por exemplo, o Programa Bolsa Família, que atribui a responsabilidade pelos filhos à mãe. Claro que é possível transferir o benefício para a avó ou outra pessoa, mas o processo é complicado. Então, existe uma série de estruturas legais e políticas públicas que têm contribuído para certa estabilização da composição doméstica. Em todo caso, na América Latina, em todas as classes, a família extensa continua fundamental para a criação de novas gerações.
O que as crianças pensam disso tudo? É impossível generalizar, pois praticamente todos os sentimentos fazem parte do repertório. Dependendo de seu interlocutor, muitas dirão que elas decidiram “por vontade própria” seguir certo rumo; a partir de certa idade, assumem a responsabilidade de decidir do que gostam e do que não gostam. Mas também existem aquelas que vão deixar entender que não foram devidamente acolhidas (por seus próprios pais ou por alguma família substituta). E não devemos nos esquecer de que, hoje em dia, existe entre jovens da rede pública de acolhimento o fantasma da “devolução” por pais adotantes. Cabe mencionar um projeto muito interessante, organizado pela Corregedoria da Infância no Rio Grande do Sul: CPAAJ, Comitê de Participação de Adolescentes Acolhidos na Justiça. Recente estudo mostra como os jovens abrigados chamados a manifestar suas opiniões sobre sua própria “circulação” trazem perspectivas inesperadas13.
Agostina Gentili – Você tem percebido mudanças nas atitudes das autoridades públicas e dos agentes estatais frente ao fenômeno da circulação de crianças?
Claudia Fonseca – Essa questão das políticas públicas de proteção da infância é de suma importância. Sou da geração da “reabertura democrática”. Depois da promulgação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente, esse documento virou praticamente Bíblia entre profissionais do campo. Na época, eu tinha certo desconforto com tamanha sacralização, mas hoje estou com saudades daquela época. O Estatuto era sustentado em dois princípios fundamentais que deviam andar juntos: o do interesse prioritário da criança e o da justiça social. Isso significava que assegurar a proteção da criança devia envolver um trabalho de colaboração com os pais ou outros cuidadores do entorno. A intervenção era dirigida tanto para o fortalecimento de uma rede de serviços públicos e comunitários quanto para a fiscalização das famílias. Remover a criança da família e torná-la disponível para a adoção era uma medida que existia só como último recurso. De fato, desde 1989, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança deixava claro que – em qualquer lugar do mundo – a adoção devia ser acionada apenas em casos excepcionais.
Minha sensação é a de que, pelo menos no que diz respeito à adoção, o modelo de justiça social tem definhado ao longo da última década14. É algo que tenho visto não só no Brasil, mas no mundo inteiro, me dando uma sensação de impotência. A desigualdade econômica e social tem se exacerbado, trazendo junto uma visão moral que se arrasta desde o século XIX – uma visão que apresenta os “pais indignos” como principais responsáveis pela vulnerabilidade infantil. Parece que estamos em um processo cíclico. Voltamos a perspectivas que eram comuns nas políticas de governo uns quarenta anos atrás, quando a família pobre era tacitamente vista como tóxica para as crianças. Fazendo abstração de séculos da discriminação e dos estragos da violência estrutural contra determinados setores da população, a tendência era culpar os pais desamorosos pela situação precária de seus filhos15.
É verdade que algumas das crianças chegando aos serviços de proteção vêm de situações dramáticas – que podem incluir, além da pobreza, problemas de violência doméstica, de desemprego crônico, doença, alcoolismo etc. Sugiro que, no bojo do novo clima político, a garantia dos direitos da criança implica em tirá-la o mais rapidamente possível dessa situação. E já que qualquer forma de acolhimento institucional (quer seja família de acolhimento, casa-lar, abrigo residencial ou outro) é demonizada, a única saída é a colocação em família adotiva – o que, conforme a lei em vigor, representa uma ruptura total e irrevogável de laços travados durante a trajetória anterior do jovem.
Hoje em dia, vejo uma nova geração de profissionais – que tem as melhores intenções, que se identifica com causas progressistas – batendo nessa tecla da adoção. A adoção deve ser realizada o mais rápido possível, antes que a criança se torne indesejável para os pais adotantes (a grande maioria de emendas legais introduzidas na lei nesses últimos anos é no sentido de “encurtar prazos” – dos trâmites processuais, da estadia máxima no acolhimento institucional etc. – para facilitar a adoção16). O único problema é que esse “mais rápido possível” significa atropelar os processos usuais originalmente previstos no ECA – os estudos sociais, as avaliações técnicas, a procura por membros da família extensa ou na comunidade original prontos para acolher o jovem… E, apesar de reconhecer que a “reintegração familiar” exige muito trabalho dos profissionais da rede institucional, que é demorada e pode acabar não dando certo, a “celeridade” do processo de adoção, para mim, beira um desrespeito perigoso pelas famílias em grande vulnerabilidade.
Trata-se de filosofias políticas distintas: por um lado, a tentativa de reconciliar justiça social com os direitos da criança por profissionais que, tal como eu, apostam na possibilidade de construir um ambiente propício ao desenvolvimento integral da criança na sua família extensa ou bairro de origem; e, por outro, a opção pela facilitação da adoção de crianças em situação de grande vulnerabilidade em nome do “interesse da criança” acima de tudo. De qualquer forma, numa sociedade de tamanha desigualdade como a nossa, não tem solução mágica. Cada situação deve ser ponderada em toda sua complexidade. E, para tanto, é fundamental estender pontes de diálogo para todos os lados.
10 – FONSECA, C.; MEDAETS, C.; RIBEIRO, F. B. (Org.). Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2018.
11 – FASSIN, D. Toward a critical moral anthropology. In: FASSIN, D. (Org.), A Companion to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012.
12 – SERRA, M. O Brasil das muitas mães: aspectos demográficos da circulação de crianças. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2003.
13 – PEIXOTO, B. Deixa o amor te surpreender: campanhas de adoção de difícil colocação nas atuais políticas brasileiras. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2020.
14 – Para uma elaboração mais detalhada sobre essa hipótese, ver FONSECA, C. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Runa: Archivo para la ciencias del hombre, v. 40, n. 2, p. 17-38. 2019.
15 – Ver FONSECA, C. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas ‘alternativos’ de educação para a primeira infância. In: FONSECA, C.; ROHDEN, F.; MACHADO, P. (Org.). Ciências na Vida: Antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012. p. 253-275.
16 – Ver, entre outros, AZAMBUJA, M. R. F. de; RODRIGUES DA SILVA, D. L. Projeto de Lei do Senado nº 394/2017: avanço ou retrocesso? Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, v. 3, n. 19, p. 99-109. 2018.