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Adoção e circulação de crianças na atualidade

Agostina Gentili – As hierarquias de gênero e as violências a elas associadas estão ocupando um espaço singular na esfera pública atual e internacional. Nos seus trabalhos, você tem mostrado uma preocupação especial por outros tipos de hierarquias, as de classe. Como você pensa as relações entre as hierarquias de gênero e classe nesse marco das dinâmicas familiares?

Claudia Fonseca – Essa é uma pergunta fundamental. Em primeiro lugar, acho importante não reduzir as mulheres a “vitimas” passivas. No meu livro Família, fofoca e honra17, fiz questão de ressaltar a força feminina que eu encontrava nas famílias do bairro popular onde pesquisava. Às vezes, era uma matriarca, às vezes era uma mulher que se apresentava como “valente”, que sabia lutar pelas coisas que ela considerava certas. Acho que qualquer pessoa que tenha trabalhado nos bairros populares sai com uma admiração diante da liderança e do ativismo comunitário absolutamente impressionante das mulheres. É evidente que as crianças tampouco são passivas. Basta prestar atenção à voz delas para apreciar o quanto são capazes de fazer análises sutis de sua situação e de inventar, com apoio de suas redes, saídas para problemas difíceis.

Contudo, devemos reconhecer que a violência doméstica é uma constante inegável nas diferentes classes, em nossos diferentes países, e no mundo como um todo. Em qualquer unidade fechada, impermeável ao olhar comunitário, existe a ameaça da violência contra os membros mais fracos da família: mulheres; velhos; crianças; pessoas com deficiência. Por isso, fico perplexa diante de políticas públicas familistas que promovem, por exemplo, homeschooling e educação à distância, inclusive para as primeiras séries. Atrás dessa campanha, parece existir uma aposta na família nuclear, com a mulher inteiramente dedicada aos filhos e com um pai que permanece como autoridade final. Na minha opinião, esse tipo de família que vive num ambiente enclausurado, que não se abre para uma certa normalização pelo olhar público, é o que há de mais preocupante. Deixa a mulher, os velhos e as crianças expostos aos humores de quem detém a força bruta e financeira dentro desse núcleo.

Assim, é um grande orgulho, tanto na Argentina quanto no Brasil, que a luta das feministas contra a violência doméstica tenha penetrado em todos os setores. Hoje, existem delegacias especiais para todas essas categorias mais vulneráveis. E é difícil qualquer delegado recusar levar a sério uma denúncia de violência doméstica (ou violência em qualquer espaço) perpetrada contra essas categorias desfavorecidas. A duras custas, com esforços sustentados ao longo das últimas décadas, a luta contra o antigo poder patriarcal tem penetrado na vida institucional da sociedade. Temos que zelar para manter e fazer avançar esses efeitos.

Mas não podemos nos esquecer de que estamos geralmente lidando com situações que conjugam diversas formas de violência. Assim, me arrisco a dizer que a análise enfocando apenas uma forma de violência é insuficiente. Corre o risco de reforçar um tipo de preconceito para combater outro – por exemplo, de alimentar a discriminação de classe para combater a violência de gênero. Fernanda Ribeiro nos traz um exemplo desse risco no campo da infância ao relembrar o assassinato do “menino Bernardo” (no Rio Grande do Sul)18. Sua análise mostra como, já que o pai era médico da classe média alta, os serviços de proteção à infância puderam exercer uma espécie de cegueira seletiva, simplesmente ignorando os apelos de Bernardo por socorro. Ribeiro sugere que não só os profissionais nesse caso sucumbiram a preconceitos de classe, mas de fato a própria legislação sobre proteção infantil é sutilmente dirigida para o controle, antes de tudo, de famílias pobres.

Pergunto-me se nossas pesquisas acadêmicas não têm contribuído para os preconceitos de classe – a ideia de que a violência doméstica, por exemplo, se concentra nos setores pobres da população. Nós, pesquisadores, escolhemos locais de estudo que propiciam uma concentração do material que nos interessa. Assim, para entender a violência doméstica, adentramos as delegacias de polícia; para investigar o abuso sexual, passamos a frequentar alas especiais da cadeia, ou de hospitais públicos. Mas, gostaria de lembrar que, em muitos (talvez a maioria dos) casos, as famílias abastadas lidam com esses dramas sem jamais passar pelos serviços públicos. Pagam um aborto em clínica particular para abafar as evidências de abuso; contratam um advogado habilidoso para negociar uma suspensão da queixa ou inquérito policial. Ou seja, escapam com certa facilidade da mira indiscreta dos pesquisadores, ficam longe das estatísticas oficiais. Certamente, as práticas criminosas devem ser prevenidas e, quando ocorrem, castigadas. Porém, não devemos esquecer que quem fica definhando na cadeia, culpado e condenado por esses crimes é, em sua grande maioria, negro e pobre.

Creio que a maioria das minhas colegas hoje em dia – especialmente no movimento feminista em que existe um rico diálogo com os estudos pós-colonialistas – tem forte consciência desses paradoxos. O contexto contemporâneo é inegavelmente complicado. Mas é por isso que precisamos das pesquisas sendo realizadas sobre a vida de pessoas em carne e osso – nas suas famílias, nas suas comunidades e em interação com os agentes das diferentes instituições que nos circundam. A combinação de engajamento moral e rigor metodológico nos acompanha ao longo dessas pesquisas, tornando esse tipo de diálogo que estamos tendo aqui um convite estimulante à auto-reflexão crítica.

Agostina Gentili – Bom, encerramos a entrevista por aqui e te agradeço muitíssimo, Claudia.

17 – FONSECA, C. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.
18 – RIBEIRO, F. B. O nome da lei: violências, proteções e diferenciação social de crianças. In: FONSECA, C.; MEDAETS, C.; RIBEIRO, F. B. (Org.), Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo. Porto Alegre, Sulina, 2018. p. 41-65.

Resumo

Esta entrevista busca atualizar algumas questões tratadas pela antropóloga e pesquisadora Claudia Fonseca, autora de Caminhos da Adoção (1995), livro importante por lançar um olhar inovador sobre o cuidado e a circulação de crianças nas camadas populares brasileiras. Nesta entrevista, realizada pela professora Agostina Gentili, é possível entendermos o ponto de partida da pesquisadora e a forma como foi possível questionar e rever o olhar reificado sobre a infância pobre, que via na circulação de crianças um índice de abandono e desestruturação familiar. Podemos também ter notícias dos desdobramentos da pesquisa em termos de análise da estrutura jurídica das instituições e políticas públicas no campo da proteção da infância, bem como reflexões acerca da “adoção à brasileira” e sobre as hierarquias de gênero e classe presentes nas dinâmicas familiares.

Palavras-chave: adoção, circulação de crianças, proteção da infância, Antropologia do Direito.

Data de recebimento: 19/02/2020
Data de aprovação: 29/03/2020

Adopción y circulación de niños en la actualidad

Resumen

Esta entrevista busca actualizar algunas cuestiones tratadas por la antropóloga e investigadora Claudia Fonseca, autora de Caminhos da Adoção (1995), libro importante para lanzar una mirada innovadora sobre el cuidado y la circulación de niños y niñas en las clases populares brasileñas. En esta entrevista, realizada por la profesora Agostina Gentili, es posible entender el punto de partida de la investigadora y la forma como es posible cuestionar y rever la visión cosificadora sobre la infancia pobre, que veía en la circulación de niños y niñas un índice de abandono y desestructuración familiar. Podemos también anoticiarnos de los desdoblamientos de la investigación en términos de análisis de la estructura jurídica de las instituciones y políticas públicas en el campo de la protección de la infancia, así como reflexiones acerca de la “adopción a la brasileña” y sobre las jerarquías de género y clase presentes en las dinámicas familiares.

Palabras clave: adopción, circulación de niños, protección de la infancia, Antropología del Derecho.

Adoption and the circulation of children in contemporary times

Abstract

This interview intends to update some questions discussed by the anthropologist and researcher Claudia Fonseca, author of Caminhos da Adoção (1995), an important book that shares an innovative perspective on the care and circulation of children in brazilian working class. In this interview, conducted by professor Agostina Gentili, it is possible to understand the starting point of the researcher, and the way in which it was possible to question and review a reified outlook on poor childhood that saw in the circulation of children an indication of abandonment and lack of family structure. We can also learn of the research’s results in terms of an analysis of legal structures of institutions and public policies in the field of child protection, as well as considerations on “brazilian style adoption” and hierarchies of gender and class present in family dynamics.

Keywords: adoption, circulation of children, child protection, Anthropology of Law.

Claudia Fonseca claudialwfonseca@gmail.com
Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e do Doutorado em Antropologia (IDAES) pela Universidad Nacional de San Martin, Argentina. Seus interesses de pesquisa incluem parentesco, gênero, ciência e direito, com ênfase particular nos temas de direitos humanos e tecnologias de governo. 
Agostina Gentili agosgentili@gmail.com
Historiadora e docente da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Integra o grupo de pesquisa Historia de las Familias y las Infancias en la Argentina Contemporánea do Instituto de Estudios de Género da Universidad de Buenos Aires, e a Red de Estudio de Historia de las Infancias en América Latina.