Foto: Hélio Oiticica

Crianças e adolescentes indígenas e imigrantes no contexto escolar argentino.

Entrevista de Kelly Russo com Gabriela Novaro

Kelly Russo – Você atua com a questão das crianças imigrantes indígenas, na Argentina. Gostaria que nos falasse um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e sobre como chegou ao tema da educação de crianças indígenas imigrantes no contexto escolar.

Gabriela Novaro – Chego ao tema da interculturalidade e educação e, mais especificamente, aos coletivos imigrantes e educação, a partir da minha tese de doutorado, em 2002, na qual faço uma análise do tema do nacionalismo nas escolas. Alguns coletivos que aparecem fortemente interpelados pelo discurso nacionalista são os grupos imigrantes. Nos últimos anos, tem sido principalmente imigrantes latino-americanos, mais especificamente, provenientes da Bolívia, onde, como vocês sabem, as questões de pertencimento nacional se cruzam com as questões de pertencimento étnico. Além disto, fiz parte de espaços de gestão educativa no Ministério da Educação e integrei, entre 2000 e 2005, um projeto de educação intercultural e bilíngue particularmente dirigido à população indígena. Depois trabalhei em programas de desenvolvimento curricular, em programas de capacitação docente e na definição de políticas educativas. Na Argentina continua tendo importantes vazios em nível de políticas e de investigação sobre como abordar a educação de coletivos como os indígenas e migrantes latino-americanos.

Kelly Russo – A sua experiência está conectada à definição de políticas educativas. Você aborda o contexto argentino, nessa discussão sobre multi e interculturalidade, a partir dos imigrantes bolivianos, que é um grupo latino-americano muito grande. Gostaríamos de saber um pouco, então, dos grupos de maior visibilidade na imigração, no país.

Gabriela Novaro – Na Argentina, a migração começou a ocorrer mais fortemente ao final do século XIX e no princípio do século XX. Entretanto, se tratava de uma população imigrante que respondia ao convite do Estado argentino, sobretudo dos países europeus, principalmente Itália e Espanha. É uma população que vinha apoiar o desenvolvimento nacional e a qual, em geral, os discursos do Estado e as representações do senso comum associam a um processo de civilização. Atualmente, os latino-americanos constituem o principal grupo de imigrantes na Argentina, principalmente paraguaios e bolivianos. Há muitas representações sobre esta migração e as populações que têm traços fenotípicos associados aos indígenas sofrem bastante com imagens discriminatórias, seja por parte do senso comum, seja por parte dos meios de comunicação.

Assim, diversas investigações na Argentina assinalam que a relação com a imigração se construiu sobre dois relatos: o relato da imigração europeia, como civilizatória, e o relato da imigração latino-americana, associada a um problema. E isso tem uma correspondência clara dentro do sistema educativo. Esta representação tem uma relação direta com as imagens que o sistema educativo constrói nos conteúdos, por exemplo, das ciências sociais. Atualmente, começaram a aparecer tentativas de reformular a imagem da imigração latino-americana como aquela que vem invadir, usurpar territórios ou apenas buscar trabalho. Embora se anunciem intenções de reformular as visões tradicionais, na prática isto tem tido alcance bastante relativo, tanto a nível de quem planeja as políticas educativas, quanto nas escolas.

Kelly Russo – Você tem feito aproximações sobre a situação destas crianças indígenas e imigrantes bolivianas, principalmente, e sobre como a imagem pejorativa dessas crianças se reflete no sistema público educativo da Argentina. Existem movimentos organizados desses grupos demandando algo específico da escola?

Gabriela Novaro – Os grupos indígenas, sobretudo, formulam demandas mais específicas ao sistema educativo, como as propostas de educação intercultural bilíngue. As políticas educativas argentinas são um pouco a resposta a estas demandas vindas de movimentos indígenas sustentados por um reconhecimento dos espaços educativos. A diferença é que a população imigrante e suas associações têm um lugar de reivindicações educativas e escolares não tão visível. A população imigrante, em especial a boliviana, tem uma tendência a criar associações, ligas, comunidades, cooperativas, muito fortes. Nestes casos as reivindicações educativas são menos visíveis, menos explícitas que entre os grupos indígenas. Creio que isso também tem relação com uma história mais antiga de grupos indígenas reivindicando tanto uma mudança nos enfoques educativos dominantes, oficiais, na direção de um enfoque intercultural na educação, como também as demandas de grupos indígenas em torno de propostas educativas e autônomas. Por exemplo, os Mapuches, no sul da Argentina, são grupos que têm posições mais organizadas quanto a propostas de uma educação mais autônoma.

Os grupos e as famílias imigrantes têm reivindicações associadas tanto a um reconhecimento do sistema educativo, ao valor de certos pertencimentos e de certas identificações, quanto uma demanda muito forte por serem integrados em condições de igualdade com as outras crianças. Esta tensão entre demandar um acesso igualitário e demandar que, nesta educação, haja um espaço de reconhecimento por manter espaços formativos diferenciados, poderíamos dizer, simultaneamente, pelo direito à igualdade e à diferença, resulta em questões centrais para abordar as reivindicações educativas destes grupos.

Kelly Russo – Suas pesquisas têm-nos feito refletir sobre o próprio termo “inclusão”, sobre essa ambiguidade entre ser incluído e também reconhecido no espaço escolar. Você poderia falar um pouco sobre estes processos que identificou como “inclusão subordinada”?

Gabriela Novaro – As políticas na Argentina, e certamente em outros países da região, podem ser pensadas como uma alternância entre as políticas mais assimilacionistas e de integração, que supõem que os sujeitos, crianças indígenas ou imigrantes, para estar presentes e poder estar na escola, têm que renunciar às suas marcas de origem. Assimilação tem a ver com deixar de ser o que é para ser outra coisa. Existe uma alternância entre estas políticas e o que não se registra, sobretudo nos últimos vinte anos. É um discurso da valorização da diversidade e o que corresponde ao enfoque é a noção de inclusão e de interculturalidade. Estas perspectivas de assimilação, de integração e de inclusão, na verdade, não se posicionam em uma linha progressiva; muitas coexistem. Em muitas escolas há, ao mesmo tempo, posições assimilacionistas, propostas de integração e discursos retóricos sobre inclusão e interculturalidade.

O que denominamos inclusão subordinada é, em parte, efeito desta coexistência de paradigmas distintos. A ideia de que as crianças imigrantes estão incluídas no sistema educativo apenas considerando que, na Argentina, 94% das crianças entre 6 e 12 anos estão no sistema educativo primário nos coloca a seguinte pergunta: isto é condição suficiente para se falar em igualdade educativa? O que temos visto, transitando por escolas tanto da cidade de Buenos Aires quanto da província de Buenos Aires, ou mesmo em escolas da zona rural, é que esta presença ocorre em situações de desigualdade. E esta desigualdade se manifesta de muitas formas. Uma das mais evidentes é a existência de circuitos escolares diferenciados. Quero dizer que a diferença educativa e a desigualdade educativa, mais que estarem vinculadas ao fato de serem escolas públicas ou privadas, passam pelo nível de exigência e pelo nível dos conteúdos que se transmitem em distintos tipos de escolas públicas. Então há uma grande fragmentação educativa entre escolas públicas em que existem pessoas com uma condição econômica favorável e escolas públicas que se localizam em bairros com muitos problemas de acesso a serviços básicos e que têm, como correlato, um espaço escolar bastante degradado. E a população indígena e imigrante frequenta estas escolas que, de modo geral, apresentam condições que agregam fatores de desigualdade. Agregam-se fatores que, embora não sejam muito visíveis nem explícitos, também favorecem a subordinação e a exclusão. Algumas de modo mais evidente, como as que encontramos com crianças imigrantes que chegavam de outro país, basicamente da Bolívia e do Paraguai. Estas eram rebaixadas de série porque se supunha que os níveis escolares em outros países não garantiam que tivessem o conhecimento necessário para a série que correspondia às suas idades.

Algo que é bastante complexo nas escolas é que se desconhece a trajetória escolar prévia das crianças. Sobre o sistema educativo na Bolívia, por exemplo, há muitos preconceitos sobre a docência e muito pouco conhecimento, ainda que o sistema educativo na Bolívia esteja mudando e seja muito dinâmico e heterogêneo. E, por outro lado, algo que eu considero central na escola é a baixa expectativa de desempenho e êxito. Um dos aspectos mais difíceis de modificar está nas questões da subordinação e da inclusão. Está, por exemplo, em professores que supõem que os conhecimentos que vão propor às crianças não sejam muito complexos e, antes de conhecer as crianças, supõem que elas não tenham um nível suficiente de abstração e a capacidade de aprender; isso é uma das questões mais complicadas de modificar e questionar sobre a docência na Argentina.

 

Gabriela Novaro gabriela.novaro@gmail.com
Doutora em Antropologia. Pesquisadora independente do CONICET. Professora da Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Pesquisa sobre Antropologia e Educação, interculturalidade, migração e educação. Participou de programas de Educação Intercultural e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação entre 2000 e 2008.
Kelly Russo kellyrussobr@gmail.com
Doutora em Educação Brasileira. Professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, da Universidade do Rio de Janeiro, Brasil. Integra o Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas e coordena o Programa Movimentos Sociais, Diferenças e Educação, e o Núcleo de Estudos sobre Povos Indígenas e Educação.