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Educação democrática, sem medo e sem mordaça

Andréa Martello – Sim, nós estamos criando pilares para o fascismo. Professor, e se o Projeto de Lei for aprovado, qual seria o papel do Supremo Tribunal Federal, considerando suas recentes decisões sobre a autonomia universitária? A gente pode entrar em um processo de judicialização da vida educacional e de grandes discussões no tribunal sobre essa forma de ver a educação?

Gaudêncio Frigotto – Sem dúvida! Não acredito que o Supremo vá cometer essa indecência e essa insensatez caso um dia este projeto seja aprovado. Agora foi barrado. Até pela prerrogativa, pelo parecer do Luís Roberto Barroso, não acredito. Mas, como nós ouvimos o Eduardo Villas Boas falar ao jornal o Estado de São Paulo que houve uma interferência militar para que o Supremo Tribunal Federal não concedesse liberdade a Lula da Silva, pois seria o caos, tudo é possível. E o presidente do Supremo “colocou” lá um militar general como assessor! Este general será, pelo que se informou, ministro da defesa. Mas foi substituído por outro para estar junto ao presidente do Supremo. Também uma tutela perigosa para a sociedade e para a instituição militar. Há, nisto, uma inversão do Estado democrático de direito.

Mas como me referi acima, também há uma reação forte da sociedade. O editorial do Globo de domingo, por exemplo, é surpreendente nesse sentido, defendendo pluralismo. Por isso, não acredito que isso prospere indefinidamente. O Supremo vai se pronunciar em breve, do ponto de vista de interpretação da Constituição. Evidentemente, neste caso, teria que mudar a Constituição e dizer que não existe liberdade de expressão no Brasil.

De todo modo, acho também que está se criando uma conscientização. Existe um movimento da escola democrática com um site organizado pelo professor da Universidade Federal Fluminense Fernando Penna. Este professor, Felipe Queiroz e eu organizamos o livro: Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido. A violência do lado de lá despertou e acendeu um sinal do lado de cá. A não aprovação do Projeto de Lei que legalizava o Escola sem Partido na atual legislatura prova o vigor dessa resistência. Nós temos que continuar e ampliar o trabalho com os alunos e os pais e a sociedade. Aqui na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, temos feito isso. Mostrar o quanto isso é perigoso para a sociedade.

Andréa Martello – Professor, estamos nos encaminhando para o fim da entrevista, mas gostaria de apresentar mais algumas perguntas. Como estamos no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO, Brasil, o tempo todo estamos debatendo certas questões. Como fica para o senhor a questão da formação do professor? Ou ainda, qual o papel dos movimentos sociais nesse processo? Por fim, quais trabalhos e pesquisas o senhor indica que auxiliem e possam contribuir para entender esse fenômeno?

Jane Santos da Silva – Inclusive, quando Andrea coloca aqui a questão dentro dos cursos, principalmente de formação de professores, uma coisa que me incomoda muito é que parece que a questão das subjetividades ganhou mais evidência.

Gaudêncio Frigotto – Isso está ligado àquilo que a gente falava em relação a como essa massa de professores que formamos – hoje, grande parte à distância – percebe sua formação e como esta os prepara para uma leitura crítica da realidade. Os movimentos sociais sempre tiveram grande papel nas lutas prodireitos, mas no momento, parece-me que há uma espécie de paralisia que revela que ainda não nos damos conta da gravidade do momento que vivemos em relação ao retrocesso em todas as áreas que dizem respeito a direitos e, portanto, à vida digna. Entendo que o grande desafio é o de buscar uma agenda de tarefas, lutas e formas como pauta permanente. Uma dessas é exatamente de como está sendo liquidado o espaço público, o trabalhador público e o espaço público, de tal sorte que tudo aquilo que é direito universal some. O historiador Eric Hobsbawm sublinha que nem a igreja, nem as empresas ou nenhuma organização não-governamental pode garantir direitos universais. Só o Estado pode fazer isso, ainda que não esse Estado, pois nós temos que democratizá-lo mais para que efetivamente garanta esses direitos. Então, essa é uma agenda dos movimentos sociais, das organizações docentes, das instituições científicas e culturais pelo resgate do espaço público, dos direitos universais e a garantia de satisfazer as necessidades básicas.

Outro ponto incide exatamente sobre aquilo que é fundamental na sociedade: a liberdade de pensamentos, contra qualquer forma de doutrinação, seja religiosa ou outra. Então, nós teríamos que discutir o que está acontecendo na mídia empresarial, na manipulação psicossocial, política e cultural. Enfim, temos que criar mecanismos, barreiras e resistência ativa. A educação, a saúde, a cultura não podem ser mercadoria, pois são direitos universais. Para isso, entendo, também, que no plano político há um grande papel do campo de esquerda brasileiro. O campo de esquerda hoje tem que fazer uma profunda reflexão na sua diversidade. Não vamos querer unidade forçada, mas uma unidade sob pontos que convergem e que são a maior parte. Ou seja, qual é a pauta que une as forças democráticas, mesmo que alguns grupos não pertençam à esquerda? Que não sejam socialistas, que não sejam, enfim, marxistas. O ponto em que nós estamos tem que partir dessa unidade. Porque o campo conservador e de direita construiu essa unidade nacional na sua diversidade. O Movimento Todos Pela Educação e o Escola sem Partido são expressões não só de educação, mas da educação na sociedade. Porque aí é fundamental o controle das cabeças. Perguntaram ao professor Leandro Konder (in memoriam), quando voltou do exílio, como ele via a direita brasileira. Ele dizia que a direita brasileira tem uma unidade profunda, substancial e inabalável, seja ela cientificista ou não, seja ela agnóstica ou  religiosa. Ela tem uma unidade substancial, profunda e inabalável para que o povo não se organize e construa uma democracia. Sempre recorro a isso nas minhas falas: qual é a nossa unidade, profunda e substancial e inabalável?

Em relação a essa agenda, vejo hoje alguns caminhos. No campo mais amplo, acho que a Frente Brasil Popular tem essa característica, pois congrega, aproximadamente, 60 organizações políticas, sindicais, movimentos sociais, movimentos populares, sindicatos etc. Os campos específicos têm que confluir para uma força que seria um arco democrático, seria um arco em defesa da democracia, da esfera pública e dos direitos básicos, sociais e subjetivos. Percebo que esse é o desafio e nosso papel fundamental. E por quê? Porque se o eleito fosse, digamos o Fernando Haddad, nós teríamos outra agenda, que seria revogar as contrarreformas. Essas que liquidam com a esfera pública e o trabalhador público. Nesse momento, temos que pensar que o estrago seja menor. Não vejo, em curto prazo, a não ser que os erros brutais que estão sendo cometidos se ampliem e mostrem à sociedade que foi uma eleição ganha com notícias falsas, calúnias e a negação ao debate público. Mas eles verão que o céu não é de brigadeiro, porque as contradições são profundas, externas e internas e já estão sendo vistas. Com a força do Estado, violência das leis e das armas, você pode conter essas contradições, mas não indefinidamente.

E nas nossas instituições, na linha que eu coloquei antes, nós temos que organizar um currículo que viabilize a formação de gerações de professores que tenham o domínio para entender, na expressão de Antônio Gramsci, como funciona a sociedade das coisas (mundo físico, biológico, etc.), mas também como funciona a sociedade dos seres humanos. Neste particular, o estudo da sociologia, economia, psicologia, filosofia, literatura, arte etc., são imprescindíveis. O capitalismo está destruindo as duas bases da vida: a natureza e o trabalho. Sim, é um diálogo muitas vezes difícil, porque a academia também formou igrejas que quase não se falam. Então é essa questão de isolar a subjetividade da objetividade. Tem um texto que eu gosto muito, do Karel Kosik12, em que ele diz: como se constitui o ser social? O ser social se constitui primeiro, necessariamente produzindo a sua existência para o trabalho. É pelo trabalho que o ser humano produz os bens e produz as instituições. E nessas relações sociais de produzir a sua subsistência e as instituições, dependendo das relações sociais que você está posto aí, se são escravistas, se são capitalistas etc., você vai construindo a subjetividade. Então, ele vai dizer que não tem sentido os sujeitos sem as coisas, mas não tem sentido também as coisas sem o sujeito. Então o que é a realidade humana? É a unidade do objetivo e o subjetivo! Percebo que esse é o grande problema de determinadas posturas chamadas pós-modernas, ou do pós-modernismo. Para mim, o fio para aprofundar isso é dado por Fredric Jameson, quando ele indica que o problema não é condenar ou celebrar o pós-modernismo, mas de entender o porquê de seu surgimento e o que significa política, social, econômica e culturalmente.

Entendo que o que se apresenta hoje na sociedade brasileira tem que nos colocar não em  nocaute, paralisados, mas numa profunda reflexão no campo acadêmico, no campo político, no campo das nossas crenças, etc. E não abrirmos mão do horizonte daquilo que é fundamental: lutar para que se construam relações sociais onde haja efetivamente oportunidades para que as pessoas desenvolvam as suas capacidades e dar a elas o direito ao conhecimento historicamente produzido, à cultura, à arte, ao lazer. Hoje, a ciência poderia liberar o ser humano para trabalhar cinco ou seis horas no máximo, por dia, para termos tempo de cultivar o humano. E é essa a grande luta hoje, entre a forma que o capitalismo assume destruindo, ou dar um salto além do capitalismo, chame de “sociedade do bem comum”, “sociedade do sol”, ou “sociedade do bem viver”, como outros dizem. É que o capitalismo não tem nada mais a oferecer. Ele só está destruindo direitos e a natureza. E as forças que vocês estavam chamando atenção, que estão avançando no mundo e no Brasil, atualmente, são as que aprofundam o caráter destrutivo do capitalismo. Os seres humanos não foram criados para isso, como lembra o historiador Erick Hobsbawm. Eles não podem ser sacrificados. Essa é a consciência que temos que criar. Tudo ao contrário ao ideário do ódio, da eliminação dos que assim pensam, protagonizado pelos defensores do movimento Escola sem Partido. Nossa luta é outra, não é do ódio nem da eliminação do outro, mas da luta pela justiça.

Andréa Martello – Professor, muito obrigada!

Jane Santos da Silva – Ficaríamos aqui conversando por muitas horas.

Gaudêncio Frigotto – De nada!

12 – KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

Resumo
Nesta entrevista, o Projeto de Lei “Escola sem Partido” é abordado por diversos aspectos, por exemplo, ao analisar os efeitos da chamada pedagogia do medo. A reflexão vai se desdobrar em discussões sobre a corrosão que a educação, os partidos, a sociedade e o povo brasileiro têm sofrido diante das investidas neoliberais e do avanço do ultraconservadorismo no Brasil contemporâneo. A exploração tão pertinente desse tema não foge à complexidade das encruzilhadas ético-morais e teóricas que ora paralisam ora revitalizam os educadores brasileiros nesse contexto. Assim, a entrevista traz contundentes reflexões sobre a propagação do discurso de ódio entre crianças e adolescentes na escola, a crescente redução da educação aos interesses do mercado privado e o fundamentalismo religioso.

Palavras-chave: escola sem partido, controle ideológico, educação democrática.

Data de recebimento: 21/11/2018
Data de aprovação: 22/12/2018

Gaudêncio Frigotto gfrigotto@globo.com
Graduado e Bacharel em Filosofia e graduado em Pedagogia pela UNIJUI, Brasil, mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Brasil, e doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, e professor Titular (aposentado) em Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.
Jane Santos da Silva jane64santos@gmail.com
Bacharel e licenciada em História e em Ciências Sociais. Mestre em Política Social e Trabalho e doutora em Serviço Social.
Atualmente é docente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Brasil, no Departamento de Fundamentos da Educação da Escola de Educação. Sua pesquisa concentra-se na área de história das políticas educacionais.
Andréa Martello deamartello@gmail.com
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação, na Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil. Realiza pesquisa e extensão na área da infância, juventude e formação de professores.