Flavia Cristina Silveira Lemos: O Estatuto trouxe rupturas e atualizou práticas, eu o vejo como um diagrama de forças em tensão, múltiplas e heterogêneas. Ele rompeu com a menoridade, com o assistencialismo, com a situação irregular, com a internação massiva de crianças e adolescentes em abrigos e em espaços denominados de correção e com a centralidade da figura do juiz, por exemplo, que estavam presentes no Código de Menores, de 1979. Instituiu o paradigma da proteção integral à criança e ao adolescente como sujeitos de direitos, descentralizou a política de atendimento, priorizou a atenção em meio aberto, estipulou o direito à convivência familiar e comunitária, entre outras transformações. Todavia, a situação irregular tem sido atualizada na noção de crianças e adolescentes em risco, por exemplo. Também ainda há uma visão cada vez mais focada no Poder Judiciário, na figura das intervenções do Ministério Público e na inflação jurídica encaminhada pela criação do Conselho Tutelar. Outro ponto crítico é que as medidas de proteção têm sido pouco aplicadas em função do orçamento não estar sendo definido pela perspectiva de prioridade absoluta prevista no ECA. Um outro problema é o fato de que há ainda resquícios da prática encarceradora de adolescentes autores de ato infracional e de envio de crianças e adolescentes para abrigos por tempo indeterminado em função da pobreza das famílias, não sendo estas ações excepcionais como deveriam ser de acordo com o ECA.
Flavia Cristina Silveira Lemos: Acredito que esta situação pouco permite proteger de fato a criança e o adolescente e acaba burocratizando muito a atenção, fragilizando a rede de garantia de direitos ao potencializar mais uma de suas esferas em detrimento das outras. A judicialização aumenta os índices de encarceramento e pouco favorece a afirmação da criança e do adolescente como sujeito de direitos, pois acaba por torná-los mais objetos das práticas jurídicas do que possibilita sua proteção efetiva pautada em princípios mais democráticos e que não operem pela lógica punitiva.
Flavia Cristina Silveira Lemos: De fato, há impactos na correlação de forças que atualizam cotidianamente as práticas educativas escolarizadas e comunitárias no entrecruzamento entre normas e leis, saberes e poderes, na dinâmica das relações sociais e da produção de subjetividade, no espaço contemporâneo, em termos dos processos de judicialização da infância. Cada vez mais, a escola vem sendo chamada a cumprir um mandato social de identificar e denunciar situações de violência e de violação de direitos das crianças. Leis que obrigam a escola a notificar como e quando, sob pena de ser responsabilizada caso não obedeça a essa encomenda, como ocorre no Projeto Escola que Protege. Por meio do ECA, a partir de documentos de referência da Educação em Saúde e do Conselho Nacional de Justiça, da Secretaria de Direitos Humanos, do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, entre outros órgãos e organismos formuladores de diretrizes para a educação de crianças e adolescentes em direitos humanos, a proteção integral das mesmas se faz operar pela proliferação de práticas denominadas de justiça restaurativa e/ou de justiça por mediação de conflitos, entre tantas outras que emergem em nome da educação para a paz e pela prevenção e punição da violência nas escolas e nas comunidades.