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O problema social da obesidade e sua prevalência entre crianças e adolescentes

Rosangela Pereira – Como você vê o enfrentamento dessa questão da obesidade na infância no plano das políticas públicas? Você tem atuado fortemente em escolas, em que sentido você acha que as escolas podem atuar nesse enfrentamento?

Rosely Sichieri – Eu e você, Rosangela, e vários alunos nossos temos nos debruçado nos últimos estudos nossos sobre isso. A minha posição hoje é que está se exigindo demais da escola, se quer que a escola resolva tudo. A escola não vai resolver se você não tem uma política ambiental que reduza a exposição de alimentos assim que a criança sai dos muros da escola. Dentro da escola, já está sendo oferecido o alimento que a gente não gostaria que eles comessem. Eles saem da escola e existe uma oferta enorme desses alimentos. Para agravar o problema, os produtos de pior qualidade são muito mais baratos, o que leva as famílias a consumirem esses alimentos. Então, não se pode exigir que a escola resolva o problema da obesidade… A gente pode educar a criança e ela comer um pouco melhor. Em todos os nossos estudos, a gente percebe que isso acontece. A gente é capaz de fazer com que a criança entenda o quanto de açúcar tem no refrigerante. Mas para que isso vire uma ação, é preciso que existam ações paralelas super importantes. Por exemplo, reduzir, ou melhor, eliminar, a propaganda de alimentos ultraprocessados; eliminar a venda de bebidas adoçadas e de alimentos ultraprocessados nas escolas, universidades e demais serviços públicos; não permitir venda casada do tipo que induz a compra de um chocolate para ganhar um brinquedinho. Tudo isso faz com que a sinalização para a criança seja extremamente confusa.

Rosangela Pereira – Você considera que os profissionais da saúde estão preparados para lidar com a questão da obesidade infantil? O que poderíamos fazer para prepará-los melhor para enfrentar esse problema?

Rosely Sichieri – Com certeza não estão preparados. Os médicos não sabem nutrição. Então, é supercomplicado e difícil. Os pediatras ainda tinham alguma aula sobre isso. Com todas essas fórmulas e essas evoluções da indústria de alimentos e a ampliação da venda de comida pronta, as pessoas deixaram de cozinhar. Então, para aprender sobre alimentação, a primeira coisa que a pessoa precisa saber é cozinhar, precisa saber como comprar o alimento, como escolher os alimentos na hora de comprar. A formação do médico é muito ruim na área nutricional. Eu sou médica e não tive curso nenhum sobre nutrição. Ainda hoje as experiências que tentam introduzir isso nos cursos de medicina são pequenas, que não alcançam a solução dessa questão. Os profissionais de saúde, inclusive os da atenção primária, são ainda poucos para dar conta da questão nutricional.

Fizemos um estudo, um ensaio comunitário, com o objetivo de avaliar a eficácia de ações para reduzir o ganho de peso excessivo em estudantes do 5º e 6º anos do ensino fundamental, combinando ações na escola e nos domicílios. As ações na escola eram realizadas pelas professoras, após treinamento, e as ações nos domicílios eram desenvolvidas por agentes comunitários de saúde, do Programa Saúde da Família. Treinamos agentes de saúde para, nos domicílios, incentivar melhores escolhas alimentares e aumentar a atividade física em adolescentes com sobrepeso e obesidade. Os resultados dessa experiência foram curiosos, principalmente porque cerca de 90% das merendeiras e das agentes de saúde são obesas. As profissionais da atenção primária que a gente treinou, mesmo não falando nada para elas, com o simples passo de pesar e de acompanhar, perderam peso ao fim de 6 meses. Quando elas foram para a prática junto aos adolescentes e suas famílias, elas tinham que atender uma criança que tinha um pouco de excesso de peso, porque esse é o momento melhor para intervir. Depois que a criança ficou muito obesa, é muito difícil de você fazer intervenções que funcionem. A gente teria que intervir naqueles casos mais leves para não permitir que a obesidade se estabelecesse. Mas a profissional de saúde teria que deixar de acompanhar um paciente hipertenso, um diabético, um paciente idoso, para acompanhar essa criança. Então, concluímos que a gente deveria ter uma gama de profissionais, como há em outros países, que se dedicassem exclusivamente a fazer acompanhamento domiciliar, visando à prevenção da obesidade.

Rosangela Pereira – Para promover um consumo alimentar adequado, ultimamente, como você até mesmo falou sobre produtos processados, envolve fazer frente a lobbies fortes tanto da indústria quanto do comércio de alimentos, que hoje são dominados por grupos econômicos extremamente poderosos. Como os pesquisadores e profissionais poderiam se preparar melhor e como podem fazer frente a essa situação?

Rosely Sichieri – É difícil a gente preparar o profissional para individualmente intervir nisso. A diretora geral da Organização Mundial da Saúde falou que o grande problema das doenças crônicas era a indústria de alimentos2, assim como foi a indústria de cigarro. Continua sendo, mas se a gente conseguiu aprender como resolver e minimizar os efeitos do cigarro, o lobby das indústrias de alimentos é muito forte e esse enfrentamento muito mais complicado. Eles dominam os congressos e dominam inclusive as agências internacionais. Quem dá dinheiro para fazer pesquisa hoje, na verdade, é a iniciativa privada que define a pauta até da OMS. Por exemplo, se o Bill Gates não der dinheiro para isso ou para aquilo, não vai ser pesquisado. Então, ou a gente faz um pacto de todas as instituições internacionais para de fato levar isso a sério, ou isso nunca vai acontecer. Os congressos vão parar e vão votar grandes medidas de prevenção da obesidade? Não vão. A gente pode fazer isso enquanto indivíduo, enquanto aquele que vota, enquanto aquele que se associa, enquanto aquele que pede para as nossas associações, muitos estão fazendo isso. Enquanto pesquisador também, pesquisando as causas. Considero que é importante que os profissionais de saúde sejam informados sobre as questões éticas e políticas que estão envolvidas na relação com a indústria de alimentos, assim como ocorre com a indústria farmacêutica.

Rosangela Pereira – São as organizações da sociedade civil que poderiam estar atuando mais fortemente na conscientização e na divulgação dessas informações. Há diversas organizações, como o projeto O joio e o trigo3, a Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada4 e a ACT Promoção da Saúde5, que fazem um trabalho importante de desmistificar as informações sobre os alimentos e mobilizar a sociedade em prol de políticas que promovam a alimentação saudável.

Rosely Sichieri – Ah, eles fazem um trabalho excelente.

Rosangela Pereira – Obrigada, Rosely, pela entrevista e pela reflexão interessante sobre a questão da obesidade no País.

2 – Dra Margaret Chan, Diretora Geral da Organização Mundial da Saúde de 2006 a 2017, na abertura da 8th Global Conference on Health Promotion, Helsinki, Finlândia, 2013. Disponível em: . Acesso em: 29 mai. 2020.
3 – http://ojoioeotrigo.hospedagemdesites.ws/
4 – https://alimentacaosaudavel.org.br
5 – https://actbr.org.br/sobre-a-act-promocao-da-saude

Resumo

A entrevista traz à discussão a multiplicidade dos fatores sociais e ambientais associados à obesidade na infância e adolescência, que dificilmente são investigados e que passam ao largo das ações educativas. No Brasil, este problema de saúde pública atinge um terço das crianças menores de 10 anos e se mostra preocupante na medida em que se apresenta de forma cada vez mais precoce. A entrevistada aponta para a necessidade de uma abordagem que tome a obesidade como um problema social e ambiental, que ultrapassa em muito as questões individuais. Trata-se de abordar de forma ampla os sistemas de produção e de consumo alimentar, que impactam a saúde pública e a infância, de modo a tornar mais efetivas as ações de prevenção e controle da obesidade.

Palavras-chave: obesidade infantil, obesidade na adolescência, saúde pública, má nutrição, sistemas alimentares.

Data de recebimento: 04/03/20
Data de aprovação: 29/05/20

Abstract

The social problem of obesity and its prevalence in children and teenagers

The interview brings the discussion of the multiplicity of social and environmental factors associated with child and teen obesity, which are rarely investigated and that are largely ignored by public policies in Education. In Brazil, this public health problem affects one third of children under the age of 10 and is concerning insofar as it presents itself evermore precociously. The interviewee points towards the need for an approach that understands obesity as a social and environmental problem, surpassing individual issues. It is about approaching the systems of food production and consumption that affect public health and childhood in an ample manner, allowing for more effective preventative and regulatory measures relating to obesity.

Keywords: child obesity, teen obesity, public health, malnutrition, food systems.

Rosely Sichieri rosely.sichieri@gmail.com
Professora Titular de Epidemiologia Nutricional do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Médica sanitarista, doutora em Nutrição em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil, pós-doutorado em Harvard, Estados Unidos, Departamento de Nutrição.

Rosangela Alves Pereira rpereira@uol.com.br
Professora Associada do Departamento de Nutrição Social e Aplicada, Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Nutricionista pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil, com mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. Na docência universitária desde 1981, atua na área de Epidemiologia Nutricional com foco em pesquisas sobre o consumo alimentar e condições de saúde e nutrição.