Fabiana de Amorim Marcello – É incrível como a gente pode pensar essas questões ligadas à infância e ao cinema, e essa verdade que é a própria da infância, que ninguém tira dela e que ninguém dá para ela porque justamente é ela quem produz. A gente pode pensar isso até para fazer pesquisas com crianças. Não é a mesma coisa, mas é muito semelhante o processo. Por mais que o adulto queira algo, a garantia de que esse algo que ele quer vai acontecer como ele quer é pequena e quase nula. Eu fiquei muito surpresa, confesso, quando li no teu livro, se eu entendi bem, porque tu afirmas que existe uma produção ainda escassa de trabalhos que operam sobre a infância e o cinema hoje. E eu pergunto isso porque, de 15 anos para cá, essa produção aumentou muito no Brasil. Sobretudo nos últimos 10 anos, a produção sobre cinema e educação se ampliou significativamente. O que para nós é muito importante. Eu acho que isso serve muito para poder pensar a própria educação e o que a gente quer com a educação. Quando a educação se coloca para analisar o cinema, tem questões muito singulares ali postas. Como tu dizes, assim: a criança que está na guerra no cinema, em linhas gerais tem uma mesma forma, ela é vítima etc. A criança escolarizada no cinema também, ela é muito parecida. Ela é uma criança oprimida. Ela é uma criança que a escola tolhe do que ela é, enfim. Tudo isso para colocar essa questão que tem a ver com a produção sobre cinema, a produção de pesquisa e bibliografia. Então, eu gostaria que tu falasses um pouco sobre essa ausência, essa lacuna e, sobretudo, na tua opinião, o que se perde com essa ausência?
Camilo Bácares Jara – Essa é uma pergunta muito importante. Eu concordo contigo que tem muita coisa nos últimos 15 anos, mas sobre a relação entre cinema e educação. E sim, aí está inserida a infância. O que não é necessariamente igual à relação entre cinema e infância. No campo do Brasil, sobre cinema e educação, eu realmente não conheço muito, e quando eu estava procurando na internet, também não encontrava, o que é muito curioso, porque quando me disseram que você ia me entrevistar, eu te procurei e encontrei a sua tese, e fiquei fascinado porque eu não a conhecia. É o velho problema das dificuldades das redes de reconhecimento na América Latina. O que eu conhecia mais é o fenômeno da Argentina, principalmente pela Inés Dussel, que trabalhou muito isso. Eu me lembro da tese da María Silvia Serra, que virou um livro, na qual ela faz toda uma pesquisa sobre a relação entre cinema e educação na Argentina. Mas esses avanços não implicam necessariamente que tivesse uma linha de perguntas consolidada em torno da relação entre o cinema e a infância, que era o que eu não encontrava. Sem que eu me propusesse, porque, lembra quando eu te disse que, quando esta pesquisa surge, ela nasce de uma contingência, de um acaso, que era ver filmes em Lima e ver que as crianças apareciam aos montes nos filmes, sem eu saber, além disso, nada de cinema? Isso também foi complicado: eu tive de aprender sobre cinema, saber sobre história do cinema, sobre convenções cinematográficas, sobre teoria das imagens etc. Mas eu diria que esta ausência não é só colombiana, é latino-americana. Eu me arriscaria a dizer isso.
Eu acho que essa ausência se dá por várias questões, por vários fenômenos. O primeiro é o que eu chamo de “reiteração de infâncias”, e a crise epistêmica em torno dessa reiteração de infâncias. Isto parece mais ou menos complicado, mas o que eu trato de dizer é que há alguns temas hegemônicos no campo acadêmico e institucional que ofuscam outras infâncias. O que acontece é que essas infâncias, quando se posicionam, se posicionam com marcos metodológicos e com marcos epistêmicos para serem analisadas em si mesmas e de uma maneira fechada. Um exemplo bem simples é o trabalho das crianças. Nas universidades, parece que, em monografias de fim de curso e em teses de pós-graduação, desde o início já se tem a conclusão quando se estuda o trabalho infantil. Porque se parte de que o trabalho é nocivo e prejudica a criança. O que essas pesquisas querem fazer, durante todo o seu percurso, é confirmar a hipótese de que o trabalho é prejudicial para a saúde física e mental da criança, sem se perguntar de onde vêm essas epistemes, quem as criou, o quanto isso tem a ver com a Organização Internacional do Trabalho na promoção dessa ideia, se existem outros contra-discursos que podem te dizer: “não, através do trabalho também é possível desenvolver capacidades pedagógicas, sociais, é possível gerar resiliência etc.”. Então, em primeiro lugar, está isto do posicionamento de umas infâncias hegemônicas que continuam sendo estudadas, mas com as mesmas variáveis. Esta é uma entrada que não se pode perder de vista.
Em segundo lugar, tem um elemento central que é o logocentrismo, e é acreditar que o conhecimento se produz, se organiza, se sintetiza, se reproduz somente por meio da escritura. O que não está escrito não é conhecimento. As imagens sofrem uma enorme discriminação porque não são consideradas fonte de saber. Não são consideradas fonte em si mesmas, são limitadas a ser ilustração. Portanto, não são iguais, nem apresentam o mesmo status. É preciso lembrar que as imagens, quando começam a ser utilizadas, se utilizavam para os chamados “bobos”, os “idiotas”, os que não podiam chegar ao conhecimento que estava nas letras. Por isso, a bíblia, por exemplo, começa a ter tantas imagens, para cativar a atenção e tratar de explicar para quem não podia ler. Não sei se acontece com você quando dá aula, quando você decide passar um filme, o estudante recebe isso como entretenimento, como se o professor não tivesse preparado a aula, porque considera que o filme, que é feito de imagens, não é um material de pesquisa. No campo sociológico do qual eu venho, isso foi também a premisa e o normal, pois são muito poucos os sociólogos que trabalharam com imagens.
Este logocentrismo conseguiu que acontecesse algo muito louco nos estudos sobre infância ao qual pertencemos, e é que esquecemos que até esta conversa não seria possível sem que Phillipe Ariès tivesse escrito História social da criança e da família, um livro que está baseado em imagens, a fonte são imagens, e parece que todos nós, que pesquisamos infância, esquecemos disso. Apesar das críticas que podem ser feitas a Ariès, em relação a como ele interpretou as imagens, nosso campo de estudo nasce metodologicamente da análise das imagens.
Outra coisa que fomentou este esquecimento, esta lacuna, é que os estudos sobre cinema também têm um predomínio de temas que impedem ver outros fundamentos cinematográficos. Por exemplo, aqui na Colômbia, está muito na moda o estudo de públicos. É como pensar em qual cinema existia em Porto Alegre nos anos ‘20, que tipo de filme passava e que tipo de público assistia. O curioso é que se você for ver esses estudos sobre públicos, quem os fez não vê a infância. É uma coisa totalmente ilógica, quando pensamos em todos os discursos destinados a proibir o olhar das crianças. Aqui vem uma coisa fundamental: eu tenho uma tese elaborada a partir disso, e é a de que não pode existir cinema sem infância ou infâncias. Eu estou totalmente convencido disso. No meu livro, está muito presente que todos os movimentos de ruptura, que rompem com todo o cinema anterior à segunda guerra mundial, se fundam na infância, e isto continua acontecendo, inclusive Hollywood está fazendo isso. Se você olhar os últimos diretores independentes, considerando o âmbito dos Oscar, podemos encontrar Indomável sonhadora (2012), Projeto Flórida (2017), Boyhood (2014), Amor bandido (2012) etc.
E tem outra parte da pergunta que é: o que se perde? Eu acho que, para os estudos de infância, o cinema oferece uma oportunidade metodológica maior, imensa para estudar a infância. No meu modo de ver, o cinema é uma fonte de saber, é um dado. Ao dizer que o cinema é um dado ou um vestígio, o que proponho é que, por meio deste relato acerca da sociedade, pode se falar sobre as infâncias num momento sócio-histórico determinado. Isto é, sobre a experiência de ser criança em um momento histórico concreto, mas também sobre os discursos, os saberes e as representações que determinam essa experiência de ser criança. Mas, obviamente, não podemos ser ingênuos, o cinema como dado, como vestígio, como qualquer fonte necessita de um contraste com outras fontes, necessita de uma discussão. Não é simplesmente transpor filmes e dizer que a realidade era assim porque nos filmes acontecia isso. Isso seria cair no erro que Ariès cometeu quando fez o seu livro, que pensava, por exemplo, que quando as pessoas eram pintadas, estavam colocando a roupa do seu cotidiano, sem levar em conta que, na realidade, elas colocavam as suas melhores roupas para o ato de ser retratadas. Não só é preciso contrastar fontes, mas também desmascarar convenções que estão dentro do cinema. Tem uma coisa que me chama muito a atenção: no cinema da infância, sempre aparece como metáfora, como símbolo, os cavalos. Por quê? Não tenho a menor ideia. Teríamos que ir até o mundo clássico para ver qual é a representação do cavalo, ao longo das artes plásticas, até chegar ao cinema. Também sempre aparece o mar. Sempre as crianças e o mar, como se o mar fosse a liberdade verdadeira como metáfora. Tem um monte de coisas para analisar que estão postas aí.
Que outra coisa se perde ou que outra coisa se acrescenta, se colocarmos isso em outra linguagem? A imagem se converte em uma prova. Já não é somente uma fonte, dado e vestígio, mas aparece outra palavra, que é uma prova. Isto é uma coisa mais jurídica. Por exemplo, nos casos das crianças de rua, das crianças da miséria, das crianças da pobreza. Essas crianças se convertem em uma prova de discursos políticos que foram ineficientes. Estou falando do cinema com uma visão mais documental. Esses filmes contrapõem discursos. Aqui na Colômbia, acontece. Por exemplo, quando o presidente Lleras Restrepo, em pleno auge da Aliança para o Progresso, feita com Kennedy, afirma que, em Bogotá não existe miséria, isso pode ser contrastado com um documentário muito famoso, que se chama Chircales (1972), de Marta Rodríguez, uma grande documentarista que mostra como, na periferia de Bogotá, a exploração era permanente e crescia por esses anos. Isto é, que este discurso político é falso.
Queria agregar algo mais que é muito importante quanto ao que o cinema oferece para o nosso âmbito de estudo, e é que o cinema tem uma bondade única para os estudos sociais sobre infância. O cinema tem a capacidade de enganar o próprio narrador. Enganar as convenções históricas e políticas que temos hoje sobre a infância. Isso é o que você me dizia no início que, quando fazemos pesquisa com infância, ela não sai como nós tínhamos planejado no início. É a mesma coisa, tudo se modifica. O cinema tem uma forma diferente de abordar a infância, de trabalhar com a alteridade, de apresentar resultados diferentes, que habitualmente as Ciências Sociais não poderiam fazer. Vou te dar exemplos concretos de filmes: por exemplo, Ninguém pode saber (2004), de Koreeda. Esse filme longuíssimo, fantástico, como todo o cinema de Koreeda, que está fundado na família e na infância. Se baseia em um fato real que aconteceu nos anos 80 no Japão, em Tóquio, quando uma mãe abandonou os filhos por meses no apartamento em que viviam e eles tiveram de enfrentar esse mundo sem adultos. O que destaca é que ele, desde que teve contato com a história, pensou nela com outro olhar durante mais de dez anos. E durante esse tempo, ele dizia que a experiência dessas crianças não pôde ter sido somente traumática, não pôde ser somente negativa. Então, ele se propõe, a partir do cinema, a olhar a outra face da moeda, e assim descobre, por exemplo, que a criança não é tão vulnerável como se lê, que a criança foi capaz de sobreviver ao abandono da mãe, e que criou formas de resistência dentro da própria casa para que os vizinhos não se dessem conta de que elas estavam sendo abandonadas, apesar da morte da irmã etc. A criança, que na teoria é um sujeito de cuidado, também pode ser cuidadora, sob a visão de Koreeda.
Tem um filme do qual eu gosto muito e que também nos ajuda nisso que eu propunha, que se chama Terra de minas (2015), da Dinamarca. É sobre umas crianças, assim que acaba a Segunda Guerra Mundial. As crianças nazistas são enviadas para as praias da Dinamarca para retirar as minas que estão enterradas debaixo da areia. Esse filme é muito interessante para pensar a categoria da alteridade, porque aqui, a criança combatente nazista já não é representada como vitimadora, e sim como vítima. O que Zandvliet, o diretor, faz é mostrar algo que não tinha interessado nem aos historiadores dinamarqueses: que, no final da guerra, obrigaram as crianças que tinham sido as últimas recrutadas pela resistência nazista contra os aliados e contra os soviéticos a praticamente morrer retirando, sem nenhum preparo, as minas antipessoal que as forças de Hitler tinham enterrado nas costas da Dinamarca. Estamos falando de cinquenta mil, oitenta mil crianças e jovens que morreram retirando minas nas praias da Dinamarca. Assim, temos outra entrada totalmente diferente que foi possível graças ao cinema, pois o diretor, na sua pesquisa, descobre que os historiadores não estavam nem um pouco, ou nada, interessados no assunto ou em publicar algo sobre o assunto.
Definitivamente, eu diria que as possibilidades do cinema para os estudos das infâncias são infinitas e inesgotáveis. De fato, eu não leio o livro que eu escrevi como um livro definitivo. Existem milhões de passos para dar, e que outros pesquisadores têm de dar.
Fabiana de Amorim Marcello – O incrível é poder pensar a infância como o próprio sintoma da cultura, como uma lente de aumento histórico-político-social do que acontece e do que aconteceu, como tu dizes, em termos de vestígio de nós mesmos. Mas também pensar em termos de abertura, de rompimento, nada do que é previsto e nada do que é pensável. Pensar o quanto trabalhar com infância e cinema tem relação com esses dois elementos. Tu mencionaste o filme Ninguém pode saber, esse filme japonês coloca a criança em uma outra posição. Obviamente, que não é pensar a criança do Ocidente e do Oriente em uma oposição. Não é isso. Mas será que o Ocidente não tem uma forma mais conformada, em grande medida, de pensar infância do que outras produções? As iranianas, as coreanas, as japonesas, têm uma forma muito particular de narrar infância, muito diferente das nossas ocidentais. Eu me pergunto sobre isso, sobre algo que eu consigo reconhecer como infância, eu, do Ocidente, reconheço aquilo como infância, não é algo completamente incompreensível para mim, então é alguma coisa que me aproxima. Mas, ao mesmo tempo, não é a mesma coisa. Eu não sei se isso faz sentido para você e se você concorda.
Camilo Bácares Jara – Sim, sim, faz sentido. Para responder isso, eu deveria ir à questão metodológica, a como foi configurado o livro. A minha intenção era não repetir o que eu critico nos estudos sobre infância, que é impor categorias aos fenômenos de estudo. Eu não queria fazer isso, neste caso concreto, eu não tinha crianças históricas diante de mim, porque as crianças com as quais eu trabalhei eram crianças cinematográficas. Mas eu também não queria impor categorias para essas infâncias que estavam nas telas. Por exemplo, falar de direitos, eu não queria nada disso. O que eu fiz foi, vendo cinema, decidir e esperar que as categorias aparecessem. Por isso, o livro se chama La infancia en el cine colombiano: miradas, presencias y representaciones. Aparece a categoria do olhar porque eu me dou conta de que as crianças me ensinam a olhar e que as crianças nos olham através dos filmes, ou que as crianças estão olhando sempre fenômenos e que nos convidam também a olhar esses fenômenos. Um exemplo muito simples de como elas nos ensinam a olhar, ou de como se controla o seu olhar, nos dá o filme Adeus, meninos (1987), de Malle. Nele, os padres mostram filmes para as crianças, eles decidem que filmes as crianças devem e podem ver. Acontece a mesma coisa no meu filme favorito: em Vítimas da tormenta (1946), de De Sica. Foi graças a isso que eu tive a ideia de trabalhar com a noção do olhar. Ou também quando em Machuca (2004), Gonzalo, o menino burguês vai vendo como se transforma a sua realidade. Ele não diz nada, mas é através dele que vemos como a sua família é uma família em crise, que tem uma moralidade opaca, apesar de ser uma moralidade burguesa, de família nuclear e de mentiras.
Vendo cinema, também aparece para mim a categoria da presença, que se baseia em uma pergunta: o quanto aparece a criança no cinema? De forma real, de forma arquetípica, de forma idílica. A última é a da representação. Eu estou um pouco cansado dessa categoria de representação social, mas foi muito interessante porque eu descobri que, no cinema, como em todo processo artístico, antes de existir uma representação social, existe uma representação artística, existe um código artístico, uma fórmula narrativa.
Quando eu estava trabalhando no olhar, vi muito neorrealismo e vi muito nuevo cine espanhol. Nesses filmes, para mim, as crianças são testemunhas. Aí aparece outra categoria sociológica que é fantástica. Com isso, estão trabalhando muito, por exemplo, no Chile: a criança como testemunha da ditadura através das cartas e diários que escreveram durante essa época. No caso pontual do cinema, a criança serve como testemunhante porque foi testemunha de algo. Tem um filme chamado A culpa dos pais (1944), de Vittorio De Sica, o mesmo de Vítimas da tormenta (1946) e Ladrões de bicicleta (1948). Em A culpa dos pais, tem um menino que testemunha, que sempre vê, apesar de que tratam de esconder dele, como a mãe mente para ele, ele sempre olha tudo e ele sempre é testemunha de tudo. É o que acontece em Ladrões de bicicleta, quando Bruno vê o pai roubando, pai que ele considerava honrado, e que continua considerando, porque também entende a situação de opressão em que eles vivem. Igualmente, no nuevo cine espanhol, eu vi muito cinema onde as crianças olhavam as mentiras dos adultos: Cría cuervos (1976), de Carlos Saura, Segredos do coração (1997), de Montxo Armendáriz, até A língua das mariposas (1999), de Cuerda, onde, por exemplo, não se pode falar da morte para a criança. A morte é um tema tabu, mas a morte está lá o tempo todo, e elas vão descobrindo, vão reconhecendo. É algo que também acontece em um filme francês belíssimo que se chama Brinquedo proibido (1952), de René Clément. Esse filme, inclusive, foi vetado em 1952, não o permitiram em Cannes e alguém escreveu que Brinquedo proibido deveria ser proibido porque mostrava a infância em relação com a morte.
Dito isso, se voltarmos para esta ideia que eu propunha da criança como testemunha do mundo, isso supõe que o seu olhar não pode ser negado, pois ele próprio tem conteúdo e mensagens. A criança, ao ter todo esse conhecimento, nos transmite ele através da tela. Isso, para mim, era fundamental e, nesse ato de olhar, as crianças nos repreendem, nos discutem como adultos. E nos lembram de que somos autoritários, que mentimos, que controlamos, que impomos coisas, que existe uma relação conflitiva que se enquadra, que se esconde no discurso romântico rousseauniano. Mas eu acho, justamente, que também tem algo contrário ao que você pergunta. Eu acho que isso não é o que acontece normalmente, o que predomina é o cinema idílico, que esconde o olhar da criança, ou que o enquadra em uma convenção ou em uma fórmula que não é problemática para nós, como adultos ou como espectadores. Isto é, se vemos os filmes clássicos onde a criança, por exemplo, era apresentada como child star – a criança estrela – aí não tem nenhum problema nem reclamação para o mundo adulto. Essencialmente, porque não é a mesma coisa dizer que a criança é vulnerável, como ela é apresentada em todo o cinema idílico, onde normalmente tem que ter um adulto que cuide e a proteja, que diz que ela é vulnerabilizada e que existe uma relação social onde tem outro que violenta a criança; isso é totalmente diferente em relação a outro cinema mais próximo da realidade. Justamente assim ocorre, por exemplo, no neorrealismo, na nouvelle vague, no nuevo cine espanhol, no free cinema inglês, em algo do nuevo cine latino-americano. Além disso, em cada uma destas correntes, estão presentes umas formas concretas e históricas de considerar e de olhar a criança, as quais apostam numa visão da infância que se funda na diversidade, no reconhecimento de muitas maneiras de viver a experiência de ser criança. O neorrealismo, neste caso, o que nos oferece é a possibilidade de compreender como a Europa, entre outras coisas, se reconstruiu a partir da infância trabalhadora e da atuação das crianças, em suma, como as crianças foram atores chave para essa reconstrução. Essa é uma forma de ler o que há nesses filmes.
O cinema iraniano, por exemplo, é um cinema que tem a capacidade que os outros cinemas não tiveram para mostrar os problemas das crianças. Não estou dizendo que os problemas das crianças sejam problemas infantis, isto é, sem importância. De fato, são problemas reais e determinantes para elas. E são evidentemente complexos, porque, por exemplo, se não recuperarem os sapatos, vão apanhar, vão ser castigados como acontece no filme de Majidi, Filhos do paraíso (1997). Ou o professor vai castigar se não levarem o dever de casa, como no filme de Kiarostami, Onde fica a casa do meu amigo? (1987). Ou simplemente não vão ter onde dormir nem poder estar com a mãe, como em Los niños del fin del mundo3 (2004), de Meshkini, no qual as crianças querem cometer um crime para poder estar na prisão com a mãe e acompanhá-la. Então, aí tem um cinema que está muito interessado nisso: em ver as problemáticas das crianças a partir das crianças, a partir dos seus próprios universos.
Além disso, a criança no relato cinematográfico recrimina o adulto. Tem um filme do Koreeda que se chama Depois da tempestade (2016), que é o filme dele do qual mais gosto. Neste filme, o menino sabe tudo o que acontece, não é nenhum bobo, ele entende que o pai é um fracassado, mas ainda assim o ama, sem que isto queira dizer que ele seja passivo e que não nos exponha essa situação. Por outro lado, também é importante dizer que existem narrativas e temáticas que estão se perdendo. Teríamos que voltar a olhar para trás, para o que foi feito anteriormente por cinematografias como a latino-americana para voltar a começar a pensar a infância. Existem casos memoráveis. Antecedentes que são de revisão obrigatória. Eu gosto muito e recomendo o grupo Chaski do Peru, eles fizeram três filmes – dois longa-metragens e um curta-metragem – fundamentais para a infância dos anos 80, um que se chama Gregorio (1984), outro que se chama Juliana (1989) e um terceiro intitulado Encuentro de hombrecitos4 (1987). Eu acho que estas três obras são chaves para entender o fenômeno na América Latina da criança trabalhadora. Tem que resgatar Rio, 40 graus (1955), tem que resgatar o cinema novo brasileiro, Crónica de un niño solo5 (1965), de Leonardo Favio, na Argentina. O que acontece é que, na América Latina, esses filmes não são tão orgânicos, não estão associados a movimentos, são de diretores isolados ou de experiências cinematográficas que não estão associadas a uma organicidade. Mas aí sim há formas diferentes de olhar. Aqui, na Colômbia, o que predomina é a figura tutelar, a figura da criança inocente, a figura da criança que precisa de cuidados. Até no campo da guerra, a criança é reduzida a um inútil, a uma vítima inerte.
4 – Encontro de homenzinhos (tradução livre).
5 – Crônica de um menino só (tradução livre).