Mesa redonda realizada no “Ciclo de Debates: Subjetividade, Descolonialidade e Universidade”.
Debatedoras: Carmen Teresa Gabriel e Lucia Rabello de Castro
Mediadora: Juliana Siqueira de Lara
Juliana Siqueira de Lara – Boa tarde, sejam todos bem-vindos à nossa quarta mesa, intitulada “Os jovens e os velhos: uma atualização de um embate frente a algumas questões nacionais”, do Ciclo de Debates: Subjetividade, Descolonialidade e Universidade, organizado pelas professoras Lucia Rabello de Castro e Sabrina Dal Ongaro Savegnago, com o apoio do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Eu sou Juliana Siqueira de Lara, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRJ, e irei mediar essa mesa de hoje, que conta com a presença mais do que especial das professoras Carmen Teresa Gabriel e Lucia Rabello de Castro.
A proposta da nossa mesa de hoje serve para que possamos criar um diálogo a partir de perguntas que eu farei e, em seguida, as professoras irão responder com um tempo em torno de 10 minutos. Depois dessas perguntas e respostas, o público presente também está convidado a perguntar e participar da mesa.
Para iniciarmos esse diálogo, podemos dizer que se tem constatado que as relações entre jovens e adultos mudaram muito ao longo dos últimos anos. Se antes as crianças estavam submetidas a uma posição de proteção, de cuidado e muitas vezes de subordinação e inferioridade em relação aos adultos, hoje, a distância que separa a geração mais nova da geração mais velha parece que se encurtou. Em muitos espaços, essa distância se tornou quase inexistente. A proposta desse ciclo de debates de introduzir essa temática em uma de suas mesas me parece dizer sobre a necessidade de pensarmos juntos sobre essas transformações, os caminhos e as consequências que essas mudanças têm ocasionado na vida social e política das crianças, dos jovens, dos adultos e também dos idosos, hoje, para o mundo que queremos construir daqui para frente. Nesse sentido, professora Carmen, como você considera a relevância de abordarmos esse tema dos embates entre os jovens e os velhos, hoje, no contexto político e social em que vivemos?
Carmen Teresa Gabriel – Antes de mais nada, eu queria agradecer o convite. Boa tarde a todos e a todas! E gostaria de relatar também a minha perplexidade face a um convite para conversar sobre essa temática. Embora, é claro, a gente associe educação a jovens e à infância, fiquei pensando em como eu poderia contribuir para o debate de hoje. Isso, aliás, foi algo que me ocupou por dias. Parto de algumas inquietações que são minhas e que me atravessam enquanto pesquisadora e que considero importantes. Portanto, são elas, acredito, que vão me permitir encontrar uma porta para entrar nesse debate. Tentei formular isso a partir da seguinte pergunta: como continuar pensando politicamente o campo educacional – isto é, continuar pensando a escola, a formação de professores, o currículo e o aluno – em tempos tão sombrios? E eu uso o adjetivo sombrio para qualificar um tempo no qual nada é possível ou talvez tudo seja possível – eu não sei o que é pior –, no qual algumas certezas herdadas da modernidade estão, hoje, sendo fortemente abaladas no próprio debate epistemológico. E eu não digo isso como se fosse algo necessariamente negativo. Estamos imersos em um momento no qual alguns parâmetros, alguns paradigmas para pensar a escola e a educação têm sido questionados. E eu acho até importante que o sejam.
Tenho trabalhado com uma postura epistêmica que se inscreve no que tem sido nomeado como a teoria social do discurso. Inicio essa discussão olhando para o título da mesa e não podendo deixar de problematizar os próprios significantes que foram mobilizados no título: jovens, velhos, questão nacional e embates. A gente poderia problematizar cada uma dessas palavras. Então foi por aí que comecei a pensar.
Esses termos e esse título poderiam falar sobre o processo de subjetivação que coloca e posiciona os sujeitos nas categorias de velhos e novos. Esses processos de subjetivação estão marcados por conflitos e tensões. A palavra embate me permite pensar isso. E que vivemos hoje questões nacionais que de alguma forma implicam ou induzem a reflexão e a reatualização desses embates. Muito rapidamente, e muito brevemente, estou entendendo e lendo essa questão nacional como uma conjuntura política marcada por uma articulação entre grupos de interesses ultraliberais e ultraconservadores responsáveis tanto pelo desmantelamento do setor público quanto por um recrudescimento de um conservadorismo. É essa combinação aparentemente paradoxal que delineia um contexto no qual nós nos movemos. Então, pensar no embate entre jovens e velhos também requer pensar nesse contexto, a partir de nossos diferentes lugares de fala, a partir do exercício da nossa agência.
Em relação ao termo jovens e velhos, a despeito dos critérios que a gente possa utilizar para definir um ou outro destes termos, o que me interessa sublinhar aqui é a interface entre jovens e velhos com a metáfora do jogo do tempo. Eu tentei pensar dessa forma no sentido do que nos institui como sujeitos que agem nesse mundo. Quando nós falamos de velhos e jovens, estamos trabalhando com continuidades e permanências. Ricoeur nos fala de marcadores no tempo. Ele indica o calendário, os rastros e o conceito de geração como marcadores de tempo muito importantes. Fiz essa escolha de trazer essa ideia de geração para pensar o que eu quero pensar. Então, considero que a relevância do tema proposto consiste em reconhecer sua potência para pensar a dinâmica do jogo do tempo. Isto é, permanências, mudanças, estabilidades, desestabilidades, contingências, heranças – uma palavra que eu acho potente –, em tempos em que presenciamos um acirramento de disputas de memórias e de projetos de sociedade.
Lucia Rabello de Castro – Primeiro, eu gostaria de relatar a alegria e o prazer de poder estar compartilhando aqui a mesa com a Carmen Teresa Gabriel. A gente tem compartilhado muitos trabalhos e raramente temos a oportunidade de estar juntas assim, em um debate mais acadêmico. Eu acho que isso é muito bom. Também com a Juliana coordenando a mesa e de ter essa oportunidade de falar sobre uma temática que tem me ocupado bastante ultimamente. Eu venho dessa área de infância e juventude e, mais ultimamente, as questões intergeracionais têm se colocado como questões muito importantes e prementes em minhas pesquisas.
Eu, assim como Carmen, fiquei na dúvida por onde iria alinhar a minha resposta, porque eu acho que essa resposta dá a oportunidade de várias entradas: a questão de jovens e velhos; a questão dos embates; a questão do contexto político. Acho que talvez eu vá priorizar essa noção de embate entre jovens e velhos, no Brasil, hoje. Então, estou tomando o contexto político a partir de uma leitura sobre a questão de jovens e velhos que a gente está enfrentando nesse Brasil contemporâneo. Eu gostaria de nomear de uma forma mais incisiva essa questão entre jovens e velhos sob a perspectiva de um embate com a expressão de iniquidade geracional.
A iniquidade geracional que hoje presenciamos, ou seja, como uma geração está sendo afetada de uma maneira injusta, ilegítima, ilícita, cruel por outra geração. Para pensar isso, eu tomo alguns exemplos. Em primeiro lugar, algo que está no debate atual, que é o genocídio de jovens pretos e pobres no País. As estatísticas que temos sobre o número de assassinatos no Brasil, que agora está em torno de 60.000 anuais, também nos mostram que cerca de 60% desses assassinatos são de jovens entre 15 e 19 anos. Essa é uma estatística estarrecedora, que nos envergonha como população de adultos. Nessa linha, outros aspectos também se seguem, que é a respeito da própria população carcerária no Brasil, composta basicamente de jovens de origem popular, humilde, também pretos e pobres. E em termos de educação pública, se a gente tem 35 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, temos também mais de 10 milhões que não chegaram até o final do segundo ciclo escolar.
Eu poderia ser questionada no seguinte sentido: afinal de contas, o que significa essa iniquidade geracional? Até porque ela é muito localizada e direcionada para uma determinada população de jovens. Talvez isso nos interrogue, ou nos faça pensar: de que maneira, ou como nós deixamos de construir, ao longo da nossa República, certo imaginário cultural a respeito do que seria uma justiça geracional em relação à nova geração. A gente pode até alegar que as elites, as classes burguesas, têm um zelo, um trato em relação à sua própria prole. Do ponto de vista do cuidado com as novas gerações, as elites são super zelosas com seus filhos, que vão para as melhores escolas. Então, em certo sentido, é como se a gente pudesse constatar que há aí uma preocupação com uma continuidade geracional. Mas essa preocupação não atinge nenhum patamar mais coletivo da sociedade, ela é algo que é absolutamente narcisista, é relativo a você e aos seus próprios descendentes. Não conseguimos chegar a um patamar de discussão e de subjetivação coletiva em que as elites ou os adultos de uma forma geral se sintam responsáveis e dispostos, ou voltados para o cuidado de uma geração que inclua a todos e todas os/as jovens.
Eu fiquei pensando como, no Brasil, o latifúndio não é apenas agrário, mas também familiar e subjetivo. Ou seja, aquilo que é seu e pode ser muito, sendo que as elites têm muito, na verdade é para reproduzir essa própria estrutura, que é iníqua e que não distribui. Eu acho que isso toca em questões de como a gente, os adultos, as elites, de uma forma geral, não conseguimos nos posicionar identificados com qualquer jovem, seja ele o nosso filho ou não; são eles que vão fazer a reprodução societária, que vão continuar no Brasil, e que vão nos suceder.
Eu acho que a própria colocação do que seria o adulto e o jovem, ou o velho e o jovem, está dizendo uma diferença geracional. No que consiste essa diferença, e como a gente dá sentido a esse significante da diferença, eu acho que tem a ver com os nossos problemas, as nossas questões e os nossos projetos também. Diz respeito a que lugares iremos designar para que os adultos possam preencher suas responsabilidades, e também os que os jovens podem assumir de, eventualmente, ter um lugar nessa reprodução societária. A pergunta que a gente pode se fazer a partir dessa colocação do título da mesa é se, no Brasil, temos enfrentado essa diferença geracional, tendo em vista a forma como a sociedade dos adultos trata, não só os seus filhos, mas todos os jovens. Neste sentido, a gente tem uma questão nacional grave, que é essa iniquidade geracional, no meu ponto de vista.
Juliana Siqueira de Lara – Obrigada, professora Lucia, pela sua fala. Assim como a da professora Carmen. As respostas de vocês nos encaminham para a nossa segunda questão de hoje, que gira em torno da reflexão de que, por muito tempo, a geração mais velha foi aquela à qual se era destinada a posição de transmissão, de cuidado, de responsabilidade para com a geração mais nova. Atualmente, temos verificado que essa posição tem sido colocada em xeque pelas transformações culturais, políticas e sociais que temos vivenciado. Então, pensando esse lugar ocupado hoje pela geração mais velha, como vocês avaliam os embates, diante dessas transformações que vivemos, entre a geração mais jovem e a geração mais velha?
Carmen Teresa Gabriel – Penso que caberia, nesse momento da conversa, trazer uma questão que não quer se calar nunca no campo educacional, pelo menos para quem pensa escola pública e a formação de professores: qual é o lugar da escola pública no processo de transmissão cultural, de transmissão de um mundo de valores, de cultura e de conhecimentos de uma geração à outra? A escola, historicamente, desempenhou esse papel, era um dos locus para isso e muitas vezes contribuiu para a reprodução da desigualdade. Esse papel foi, inclusive, objeto de crítica por parte de muitos pesquisadores do campo educacional. Caberia pensar essa escola em nosso presente e como ela está hoje na berlinda, pois, para muitos, ela não serve mais para nada. Eu sou uma defensora da escola pública como um lugar importantíssimo justamente nesse processo de socialização e distribuição de um dos bens culturais mais desigualmente distribuídos nesse País, que é o próprio conhecimento. Mas essa não é uma discussão de fácil trato, hoje, no campo educacional. Até porque a gente tem várias críticas em relação a algumas formas de institucionalização dessa escola. Eu gosto muito de um autor chamado Gert Biesta, que fala que a escola teria três funções importantes: de qualificação; de socialização e de subjetivação. Talvez a gente possa pensar a partir dessas três entradas, um pouco nesse processo que a Lucia está chamando de uma iniquidade geracional: qual seria o papel da escola nesse contexto? Qual seria o papel da escola para tentar evitar, superar, problematizar isso que diz respeito a algumas juventudes e não outras, a quem garantir essa transmissão e esse cuidado?
Existem hoje correntes que são fortes no campo educacional, que definem a escola como lugar de diferença. Eu diria que o mundo é o lugar da diferença. Entendo que o que difere a escola do resto do mundo é que essa instituição tem a função de lançar e relançar o que Derrida nomeia de herança. Quer dizer que nós – de cada geração – somos herdeiros e a escola tem essa função de garantir de alguma forma a passagem dessa herança. O problema é saber que herança é essa que vale a pena ser passada adiante. Porque nem tudo necessariamente vale a pena ser passado adiante. Tanto a escola quanto o currículo são percebidos como um espaço de produção de identidade, de diferenças e, muitas vezes, de reprodução das desigualdades. Eu gosto muito de uma definição que diz que a escola é um lugar onde o mundo se torna público para o aluno. Eu acho que a discussão sobre o que é público e o que é comum é sempre uma discussão importante a ser feita. É algo que pressupõe todo um processo de negociação, do que a gente seleciona para entrar numa escola, por exemplo, para entrar como um conteúdo legitimado. Isso não é fácil, isso não está dado, embora muitas vezes se apresente como naturalizado.
Face às múltiplas questões epistemológicas e políticas que se colocam hoje, eu tendo a reconhecer que algumas desestabilizações são boas. A perspectiva decolonial está demonstrando isso. A própria reflexão sobre a produção do conhecimento se reduzia a um único lugar epistêmico. A perspectiva decolonial aponta para essa possibilidade de se pensar a partir de outros lugares, sobre a produção de conhecimento, de outros lugares epistêmicos. A escola republicana francesa, que sempre foi um exemplo da gestão da coisa pública, também está passando por embates e muitas dificuldades, justamente talvez pelo inverso. Ela tem muita preocupação em garantir uma herança nacional e não questiona e não abre espaço para outras subjetividades. O que eu estou querendo dizer é que o lugar da escola, uma instituição que tem as suas particularidades, não é apenas um lugar de socialização qualquer. Seu sentido está diretamente associado à construção de uma relação com o conhecimento, que não pode ser descuidada. Como ela consegue trabalhar essa tensão de universalização de valores e do conhecimento, combatendo a desigualdade e, ao mesmo tempo, não fazer com que o universal seja um processo de homogeneização ou de hegemonização de um sentido particular?
Hoje, no campo educacional, para quem discute escola e currículo, está claro que esses não são dados naturais. O currículo produz identidades, o currículo nos produz, o currículo não é um conjunto de disciplinas neutras; o que está ali, está com uma intencionalidade. Se a gente pensar em várias questões hoje, sobre gênero, por exemplo, a escola produz o sentido de feminino e masculino, ela é um dos dispositivos mais acionados para a constituição disso. Então, considero importante essa reflexão que a mesa está trazendo que fala do lugar de uma juventude, dos jovens como herdeiros, todos os jovens, não fazendo uma distinção de origem social. Mas, ao mesmo tempo, não homogeneizando a juventude, porque existem particularidades que têm que ser respeitadas.
O grande desafio hoje é trabalhar o entendimento de uma escola que está sob rasura. Há pessoas defendendo o fim da escola, a homeschooling. A gente está num momento de extrema necessidade de defesa da escola pública. A Lucia, por exemplo, falou em justiça geracional – eu gosto muito de argumentar em defesa de uma justiça cognitiva. Talvez, essas duas justiças articuladas possam apontar outros caminhos em que a gente consiga de alguma forma assegurar esse lugar crucial da escola. Aqui, valeria um debate sobre o que significa estabelecer uma relação com o conhecimento. Sobre isso – eu não sou conteudista, mas também não sou conteúdo-fóbica –, importa trazer para a discussão o que é importante guardar como um patrimônio do nosso conhecimento, que todos tenham acesso, sem que esse todos seja o apagamento das diferenças. Ou seja, como trabalhar o universal de modo que não seja a partir do apagamento das diferenças? Como trabalhar a garantia de um patrimônio comum em termos de conhecimento, do cuidado, de uma juventude para a qual estamos de alguma forma apresentando esse mundo que ela levará adiante? Você chamou a atenção para a juventude como algo que esteja sendo pouco cuidado. Eu diria que, com a atual reforma da previdência, os velhos também estão completamente desamparados. A gente está em um mundo em que nem velhos nem jovens estão sendo muito cuidados. Isso é interessante porque eu vejo que, talvez por um presentismo que estamos vivendo, nem o futuro que a juventude representa, nem o passado, da vivência da experiência, estão sendo respeitados.
A escola tem muito a fazer nesse trabalho de mediação, mas a escola está sob rasura. Quando eu digo sob rasura, eu digo que ela precisa ser repensada. A sua defesa não é fácil, mas, para mim, ela ainda é indispensável e incontornável para pensar politicamente esse mundo.