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Os jovens e os velhos: atualização de um embate frente a algumas questões nacionais

Juliana Siqueira de Lara – Realmente, suscita várias questões para a gente pensar. É um consenso a importância da escola como um patrimônio e um legado dessa geração mais velha, que está aí deixando algo para quem chega.

Lucia Rabello de Castro – Eu acho que essa pergunta carrega em si várias possibilidades. Eu fiquei com basicamente duas possibilidades que a Carmen traz nessas noções de transmissão e proteção. Geralmente, essas duas práticas balizaram as relações entre jovens e velhos. Então, eu vou tentar trazer algumas associações em relação a isso porque, vindo da área de infância e tendo trabalhado nesta área, essa ideia de proteção, em primeiro lugar, coloca muitos problemas para a gente hoje. Ainda que seja uma prática e um ideal que ainda orienta como os adultos têm que se portar em relação aos mais novos, a ideia de proteção tem sido muito criticada em função de, muitas vezes, impedir, desfavorecer ou bloquear movimentos emancipatórios de jovens e crianças. É como se a proteção estivesse ligada também a uma ideia de governo e comando das crianças e dos jovens, de falar por eles. Nesse sentido, essa ideia de proteção pode ser criticada ao trazer os jovens e as crianças para poder dizer o que eles pensam. A gente sabe que a ideia de proteção é historicamente construída ao longo principalmente da modernidade. Quando se constrói essa ideia de que o adulto tem que proteger a criança – não estou falando da ideia de cuidado, que é um pouco diferente, mas proteger a criança, assim como o homem tem que proteger a mulher –, essa ideia de proteção também inventa, em contrapartida, uma ideia de dependência, inexperiência, imaturidade, vulnerabilidade e fragilidade. Então, ao adulto protetor, sempre corresponde a criança que não sabe, que precisa do apoio e do amparo do adulto. Eu acho que ainda estamos em um momento e em um contexto em que a ideia de proteção ainda vige de uma forma forte, e eu acho que ela está sendo abalada, na medida em que, por exemplo, se concedem direitos às crianças. E é claro que todo o arsenal de direitos da criança vem ameaçar a posição dos adultos em relação ao que eles fazem e às suas responsabilidades em relação às crianças. Mas eu vejo que há outros encaminhamentos possíveis para pensarmos sem fugir das responsabilidades que os adultos devem assumir em relação às novas gerações. Aí, falamos também de responsabilidade como um significante vazio. Quais vão ser as responsabilidades dos adultos é algo que a gente vai ter que descobrir e construir a cada geração. Além das ideias de quais seriam as reciprocidades. Eu também não estaria falando só da responsabilidade dos adultos em relação às crianças, mas também sobre qual seria a contrapartida de jovens e crianças em relação aos adultos. Não estou deixando de fora as crianças e os jovens como aqueles que também não podem nunca reciprocar os adultos.

Outra ideia que você traz dentro dessa dinâmica geracional entre adultos e crianças é a ideia de transmissão. É algo que pode ser problematizado, e quase que radicalizando para me fazer mais enfática: é que talvez o modelo pedagógico de transmissão já esteja muito desgastado. O modelo pedagógico de transmissão seria esse que nos é tão evidente, ainda presente nas nossas práticas, aquele do adulto que sabe e que é experiente, do adulto que enquadra a criança numa posição de submissão e subordinação, porque ela não sabe. Eu acho que todo enquadramento institucional da escola é feito um pouco nessa base, sobre essa concepção bastante pedagogizada da transmissão. Aí, nós poderíamos perguntar: qual seria o outro modelo de transmissão possível? Existem outras possibilidades. Colocando mais uma provocação aqui, para a gente pensar a respeito do Brasil e da América Latina, assim como em outros países periféricos. Aqui, vivemos em uma situação muito precarizada em vários sentidos, uma democracia precária, de institucionalidades precárias, em termos do sistema judiciário, e talvez essa precariedade nos ajude a ter certa margem de manobra maior para pensarmos em caminhos alternativos que possam ser diferentes daqueles caminhos pensados e já trilhados pelos países do Norte. A gente sabe – a Carmen falou isso e eu vou pegar isso também para o meu argumento – como que uma escola francesa republicana, por ser uma instituição de mais de 100 anos, com aquele peso de um caminho percorrido e tão consolidado, como é muito mais difícil talvez passar por uma reformulação radical, de pensar linhas de fuga revolucionárias. Eu acho que os países do dito terceiro mundo talvez estejam nessa posição. Com toda a nossa precariedade institucional, talvez isso seja um trunfo que temos, de a gente poder ter uma largueza, certo afrouxamento para podermos pensar alternativas.

Carmen Teresa Gabriel – Eu queria dialogar com a Lucia a respeito da palavra transmissão. Me parece que nós precisamos repensar e desconstruir a ideia do que seria essa pedagogia, porque existem aí alguns engessamentos de sentidos, e penso que têm outras possibilidades. Trabalhando a ideia do problema da transmissão do como, a partir do entendimento do que é um professor e um aluno na sua relação, há, por exemplo, a visão do Rancière do mestre ignorante, que seria um caminho possível. E existe a ideia com a qual eu venho trabalhando de que não existe aluno e professor fora da relação professor-aluno. Ninguém é professor e aluno previamente, isso se dá na relação, é naquele contexto que a relação pedagógica vai se constituindo. Portanto, quando se pensa em modelo pedagógico no campo educacional, existe uma grande variedade de possibilidades de se entender isso. O que me parece importante aqui na discussão é o papel da escola no que e no como ela deve garantir essa passagem de uma herança. Uma herança tem que ser passada e como se passa essa herança, não no sentido da reprodução, mas do relançar dessa herança? Mas eu concordo que existe uma percepção que gira em torno daquela ideia da escola como lugar de aprisionamento, e isso também precisa ser repensado. A escola não é nada enquanto a gente não está lá dentro trabalhando nela. Essa é a minha posição. Eu acho que, no momento em que você está lá dentro, constituindo uma relação, é que ela se faz. É claro que a cultura escolar apresenta certas estabilidades. A gente pode fazer o mesmo raciocínio com a universidade. Sabemos que existem limites no campo de possibilidades, mas existe uma multiplicidade de possibilidades de invenção e criação que, penso, estão abertas, e a escola pode oferecer isso.

Juliana Siqueira de Lara – Então, vamos para nossa terceira pergunta, que ressoa com tudo o que a gente tem discutido até aqui. Atualmente, muito se fala no embate intergeracional, nos confrontos, nas dificuldades entre adultos e crianças, seja dentro de casa, entre pais e filhos, como também na escola, entre professores e alunos. Diante desse cenário, marcado muitas vezes por agressões e destituições, há alguma aposta de que as relações entre crianças e adultos possam passar pela ordem da cumplicidade, do cuidado mútuo e da solidariedade intergeracional?

Carmen Teresa Gabriel – Bom, depende de como é que a gente está entendendo cada um desses termos: cumplicidade, solidariedade e cuidado mútuo. Essa questão me provoca a repensar talvez três conceitos, ou três ideias sobre as quais já se falou aqui na mesa. Uma é a questão da diferença, de como pensamos essa diferença intergeracional. Também falamos pouco sobre as questões nacionais e das relações de poder assimétricas. A responsabilidade e o cuidado são termos que talvez camuflem relações assimétricas de poder. E penso igualmente que temos que falar de limites. Qual seria o limite da nossa responsabilidade nessa relação? A fronteira é tênue. Eu também fico pensando: qual é o limite da escola no processo de formação desse sujeito, dessa subjetividade de cidadão?

Em relação à diferença, tem algo que talvez seja mais difícil pensarmos. Trata-se de operar com esse termo para além do adjetivo que qualifica os sujeitos: sujeitos diferentes. É pensar a diferença como instituinte do social. Eu tenho muita implicância com a questão da discussão sobre tolerância da diferença, que a gente tem que respeitar as diferenças. Isso tudo ainda me parece pouco para o que isso representa. A maior dificuldade nossa é ser o outro do outro. Porque, quando nomeamos de outro um alguém, a gente já se colocou no lugar da norma. Nós seríamos os normais rodeados de vários outros com os quais nós temos que lidar e tolerar. Então, quem é o outro na relação velho e jovem, velho e adulto, velho e criança? Entendo que a relação de alteridade aí pressupõe pensarmos que nós também somos o outro do outro. E viver dessa forma significa não nos colocarmos no lugar da norma. Então, talvez essa seja uma questão interessante. A relação intergeracional é igualmente atravessada por um padrão de normatividade. Talvez, precisamos pensar sobre o que significa desestabilizar esse tipo de relação.

Tenho apostado muito em um significante, pensando, é claro, na escola, que é o significante comum. Pierre Dardot e Christian Laval publicaram um livro bastante instigante intitulado “O Comum: ensaio sobre a Revolução do Século XXI”. No campo educacional, esse termo é muito utilizado e muito criticado também. Por exemplo, no caso do uso desse significante para nomear a proposta curricular chamada de Base Nacional Comum Curricular, há uma crítica imensa no campo educacional sobre esse comum. Comum, entendido nesse caso como a negação, o apagamento e o silenciamento da diferença. Eu acho que temos que resgatar outros sentidos, outros fluxos de sentidos desse termo que sejam mais potentes, que carreguem uma dimensão política na qual me interessa investir. Refiro-me a esse comum do co-fazer, do co-decidir, de pensar juntos, de decidir juntos, que é um valor extremamente democrático. O comum que se aproxima do que seria para mim o público, que está muito mais num entre, num entre espaços. E que é um ato político, é um princípio político, não é o comum como uma coisa, não é a coisa pública. Além disso, não é aquilo que já está instituído naturalmente como comum, como patrimônio da humanidade, por exemplo, a natureza. É algo que podemos instituir. Então, defendo que esse seria um caminho para pensar o comum nessa relação assimétrica, nessa relação conflituosa. Buscar juntos, através de instâncias como a família, a escola e os vários campos nos quais esses sujeitos circulam e vivem, a construção dessa solidariedade. Não seria isso também a solidariedade, essa cumplicidade, esse cuidado? Essa co-decisão, que é uma decisão política, política não no sentido de uma ação do Estado, mas no sentido da agência, do fazer a partir de um campo de possibilidades e limites.

Eu gostaria de dizer que sempre vale a pena apostar. A palavra aposta é uma palavra que eu adoro utilizar, pois tem uma força política. É uma crença, talvez, mas também uma tomada de posição e é um investimento. Precisamos apostar em determinadas leituras políticas de mundo, em determinadas produções. Precisamos resgatar a potência política do termo comum no campo educacional.

Lucia Rabello de Castro – Bom, a pergunta fala de agressões e destituições do cenário atual nas relações entre crianças e adultos e questiona sobre a possibilidade de outras direções, seja da cumplicidade, seja do cuidado. Eu fiquei pensando que, talvez, olhar para essas agressões e destituições seja também olhar um pouco para o que antecede isso. Olhar para essas gerações, dentro de um contexto extremamente competitivo, desse sistema econômico em que a gente se encontra. O individualismo, a competitividade, a busca incessante pela novidade e pelo prazer de alguma forma encaminham as relações não no sentido de uma construção de cooperação e de solidariedade. Na escola, vemos muito isso. Uma escola que está sempre premiando e fazendo, por exemplo, com que os alunos façam uma competição pela maior nota, para alcançarem determinadas posições, ou talvez centrada nesses valores. Tudo isso pouco cultiva o trabalho coletivo, a solidariedade e a ajuda mútua. Da mesma forma, podemos pensar em todo o investimento que se faz hoje em uma gestão escolar muito baseada nos princípios econômicos, em bonificações, onde a escola deve atingir determinadas metas, colocando uma escola contra outra. Dentro dessa métrica, que nós temos chamado de produtivista, também não se encaminha uma busca de soluções de problemas que estejam na contramão disso, na busca de ajudar, de entender o que se passa nessa escola. E também entender se o que se passa em uma escola tem a ver com o que se passa na outra escola, se a gente poderia trocar conhecimentos e experiências. Enfim, o cenário de agressões e destituições de que fala a pergunta está absolutamente relacionado a essa selvageria impetrada pelo sistema econômico em que a gente vive.

Eu lançaria outra ideia também, com a qual venho trabalhando, que é a da ordem da politização das relações intergeracionais. Cada vez mais, há que se pensar, por exemplo, os movimentos, como os de ocupação das escolas que aconteceram no Brasil e em outros países da América Latina. Há de se pensar num certo protagonismo que as próprias crianças vêm demonstrando, não só as crianças brasileiras e latino-americanas, que protagonizam lutas, seja para as meninas estudarem, seja por uma maior percepção de danos ambientais.

Os danos ambientais colocam na pauta o problema geracional. Se não tivermos água amanhã, se não tivermos ar para respirar, se vivermos em um lugar em que as alterações climáticas causarem desastres muito grandes, quem vai sofrer mais certamente serão as próximas gerações. Então, a questão ambiental tem sido uma questão em que, de alguma forma, crianças e jovens têm se colocado como protagonistas com essa pauta.

Falando de Brasil e América Latina, a nossa pauta tem sido a educação. Desde os primeiros congressos da juventude no governo do Lula, a educação tem sido eleita como o maior problema que os jovens apontam como aquilo que constituiria a dívida geracional. Eu acho que é por aí que talvez possamos pensar em outro registro político e subjetivo das relações intergeracionais, no sentido daquilo que eu venho chamando de uma politização das relações intergeracionais em torno da pauta da educação. As crianças e os jovens estão percebendo que a educação é algo que a geração dos mais velhos deve a eles. E talvez eles estejam dispostos a tomar isso como uma luta política, o que significa criar um campo de antagonismos. Eu acho que os adultos estarão sendo convocados para o embate e vamos ver como os adultos irão se colocar. Eu fico pensando em como os adultos vão querer enfrentar essa pauta da educação no nosso País como uma dívida geracional, ou se isso vai ser algo que não vai poder acontecer por conta de se ter de fazer caixa, porque se tem que pagar os rentistas nacionais e internacionais etc. Então, eu acho que essa é a pauta da juventude e é através dela que as relações intergeracionais tendem a se politizar e, nesse sentido, tendem a criar um campo de antagonismos que podem ser crescentes, fortes e intensos.

Carmen Teresa Gabriel carmenteresagabriel@gmail.com
Professora Titular de Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Atua nas áreas de Currículo e de Ensino de História na graduação (Curso de Pedagogia e de Licenciatura de História da UFRJ), no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFRJ) e no Programa de Pós-graduação em Ensino de História (PROFHistória/UFRJ).
Lucia Rabello de Castro lrcastro@infolink.com.br
Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pesquisadora Sênior do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Brasil. Editora Chefe do periódico DESidades – Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude.

Juliana Siqueira de Lara j.siq.lara@gmail.com
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestra em Psicologia pelo mesmo Programa e graduada em Psicologia pela mesma instituição. Integra o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ). Atua como Editora Assistente no periódico DESidades - Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude.